DOI: 10.18441/ibam.21.2021.78.135-151

 

 

 

 

Nas vésperas da Revolução de Abril e logo após. Censura ao cinema em Portugal

On the Eve of the April Revolution and Soon After. Censorship of Cinema in Portugal

Ana Bela Ramos Conceição Morais

Universidade de Lisboa, Portugal

anabmorais@campus.ul.pt
ORCID Id: https://orcid.org/0000-0001-6728-1319

Introdução

Embora a investigação sobre a censura legislada ao cinema, a nível mundial, esteja consideravelmente desenvolvida (Biltereyst e Vande Winkel 2013, Douin 2001, Marwick, 1998, Muller e Wieder 2008), em relação a Portugal só há relativamente poucos anos as investigações académicas começaram a ganhar uma maior relevância. Após os livros pioneiros de Cândido de Azevedo (1999) e Lauro António (2001), o grande impulso foi dado com o projeto de investigação financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), portuguesa “Censura e mecanismos de controle da informação no Teatro e no Cinema antes, durante e depois do Estado Novo”, liderado por Ana Cabrera, de 2010 a 2013. Algumas publicações, centradas especificamente na censura ao cinema, decorreram dessa publicação (Cabrera 2013a, 2013 b e 2014, Morais 2017), para além de artigos e capítulos dispersos de alguns dos investigadores que fizeram parte desse projeto: Ana Bela Morais, Leonor Areal, Maria do Carmo Piçarra e Paulo Cunha.

Mas ainda muito há a investigar sobre o cinema e a censura, no período do Estado Novo português, como demonstram o dicionário de Jorge Seabra, O cinema no discurso do poder. Dicionário. Legislação cinematográfica portuguesa (1896-1974) (2016), e diversos livros acabados de publicar, como o de Maria do Carmo Piçarra, Projectar a Ordem - Cinema do Povo e Propaganda Salazarista (1935 - 1954) ou ainda no prelo, como o de Eurydice da Silva, a ser publicado ainda este ano (2021), The Impact of Censorship in Adaptations. The case of Portugal during the New State (1933-1974).

Um dos capítulos do livro Censura nunca mais! A Censura ao Teatro e ao Cinema no Estado Novo (Cabrera 2013a), “A censura depois da censura: o caso dos filmes eróticos e pornográficos (1974­76)”, de Paulo Cunha, constitui uma das poucas investigações que existem sobre o que sucedeu após a Revolução de Abril com alguns filmes que estrearam em Portugal, no caso específico do género erótico e pornográfico. O objetivo do presente artigo é precisamente perceber o que sucedeu imediatamente antes, aprofundando a investigação efetuada por Morais (2017) e dando a conhecer documentação inédita referente aos processos de censura aos filmes, nacionais e estrangeiros, nos primeiros meses de 1974, até ao dia 25 de Abril, verificando se existem processos de filmes imediatamente posteriores à Revolução.

A investigação aqui apresentada desenvolveu-se nos arquivos do Secretariado Nacional da Informação e Turismo, nomeadamente nos Processos de Censura aos filmes, nacionais e estrangeiros, que estão depositados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), em Lisboa. Esses processos revelam informação sobre os modos de atuação dos censores, os pareceres em relação aos filmes e acerca dos recursos apresentados, bem como os relatórios dos processos de censura.

Num primeiro momento será feita uma breve contextualização sobre o funcionamento da Comissão de Censura portuguesa no Estado Novo português, incidindo no período marcelista, para em seguida serem apresentados e comentados os processos de censura aos filmes depositados no ANTT. Que filmes continuaram a ser censurados na véspera da Revolução de Abril? Quais os temas que continuaram a ser mais censurados? Verificou-se alguma mudança de atitude por parte da Comissão de Censura nestes últimos meses de vigência do regime marcelista? Houve filmes censurados ou proibidos após o 25 de Abril de 1974? Estas são algumas das perguntas para as quais será procurada uma resposta.

A censura aos filmes no Portugal marcelista (1968-1974)

Na sequência de um acidente vascular cerebral, sofrido por Salazar a 3 de agosto de 1968, Marcello Caetano substitui-o na Presidência do Conselho de Ministros em Setembro de 1968. Nesse momento foi notória a esperança de que uma maior abertura política pudesse conduzir a uma mudança de regime, no qual a censura deixasse de existir. Como refere Ana Cabrera, “nas comunicações ao II Congresso Republicano de Aveiro que se realizou em 1969, o fim da censura surgia como um símbolo de toda a luta política” (Cabrera 2008, 36). Nesses primeiros anos, sensivelmente de 1969 a 1971, na denominada “Primavera Marcelista”, ainda se acreditou nessa perspetiva de mudança que, posteriormente, veio a revelar-se um logro.

De facto, embora a Assembleia Nacional admitisse refletir sobre o regime de censura prévia a partir de 1970, passados apenas dois anos, uma nova lei era regulamentada, na qual os limites anteriores impostos à liberdade de imprensa eram atenuados apenas na forma: a Direcção dos Serviços de Censura era substituída pela Direcção-Geral da Informação que impôs a impressão obrigatória, em todos os periódicos, da frase “exame prévio”, onde antes estava escrito “censura” (Ó 1996, 141). Outra das primeiras medidas tomadas por Marcello Caetano consistiu na extinção do Secretariado Nacional de Informação (SNI), substituindo-o pela Secretaria de Estado de Informação e Turismo dirigida por Moreira Baptista, presidente da Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos nos anos 60.

De qualquer modo, o ano de 1969 é consensualmente considerado o período de maior abertura do governo marcelista, como o estudo de Ana Bela Morais (2017) vem confirmar relativamente à análise dos processos de filmes, sob a perspetiva do erotismo e violência no período marcelista. O ano de 1969 é o de transição, no qual estariam ainda em preparação os novos quadros legais e Marcello Caetano ainda se encontrava numa fase de adaptação, tentando pôr em prática a ideia que sempre norteou o seu pensamento e que consistiria em associar, na política, a emoção à ação: “a sua preocupação principal parecia ser a de manter um equilíbrio entre autoridade e liberdade e quando tomou posse da Presidência do Conselho reiterou o desejo de restaurar algumas das liberdades perdidas” (Morais 2017, 25).

De qualquer forma, como sugere António Reis, afigura-se pertinente distinguir dois momentos no governo marcelista: um primeiro caracterizado por uma abertura relativa e de expectativas sobre medidas que conduzissem a uma maior liberalização, num clima político de adaptação e adiamento de escolhas estruturais que definissem o futuro do regime e num equilíbrio de poderes instável entre o chefe do Governo e o do Estado, que se prolonga até finais de 1970; e um segundo momento, que se prolonga de 1971 a 25 de Abril de 1974, caracterizado por uma “progressiva crispação repressiva, radicalização das oposições, e isolamento e degenerescência das instituições, em consequência do impasse colonial” (Reis 1996, 546).

Ainda que possam ter existido pequenas alterações ao longo do tempo, o sistema censório procedia primeiro a uma censura denominada “prévia”, dos argumentos dos filmes; posteriormente, todos os filmes concluídos eram sujeitos à Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos, que podia impor cortes e mesmo a proibição. A autocensura era mais uma forma de censura, que acompanha o sistema censório desde o seu início. Os realizadores e produtores eram desde logo incitados a adotá-la, para evitar que os seus filmes fossem rejeitados (Areal 2011, vol. I e Morais 2017, 34). Quanto ao funcionamento da Comissão de Censura, esta estava diretamente dependente do SNI que, como referido acima, passou a ser designado por Secretaria de Estado de Informação e Turismo, e era constituída por uma dezena de censores nomeados pelo Presidente do Conselho. Estes visionavam e sancionavam (ou não) todos os filmes e outros espetáculos públicos. Como refere Leonor Areal, “ao longo dos anos, o número total de vogais variou entre 8 e 18 (além do Presidente, Vice-presidente e Secretário), mas o seu modo de funcionamento manteve-se essencialmente o mesmo” (Areal 2014, 35).

Apesar de proibido pela Comissão de Censura, os distribuidores dos filmes tomavam a iniciativa de os cortar antes de os apresentar à censura, ou pediam cortes para poderem baixar a classificação dos filmes. Os distribuidores podiam também reclamar, apresentando cartas de recurso. Os recursos eram caros e só lhes era devolvido metade do valor, caso tivessem provimento. Nessas cartas os distribuidores recorriam dos mais variados argumentos, bem como os próprios realizadores dos filmes.

Uma mudança legislativa dá-se com o Decreto-Lei nº 263/71 de 18 de junho de 1971. Este quadro legal aprova o novo regime de classificação de espetáculos, reformulando os quadros etários vigentes. A partir desse momento, a classificação A corresponde a espetáculos para maiores de 6 anos, a B significa que são aptos para maiores de 10 anos, a C para maiores de 14 e a D classifica os espetáculos aprovados para maiores de 18 anos. A constituição da Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos fica também alterada por este Decreto-Lei, passando a subdividir-se em dois grupos de vogais diferentes: um para a avaliação do cinema e outro para as peças de teatro. É também estabelecido por este diploma a criação de uma comissão de recurso, independente da Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos, na qual passem a figurar os representantes da corporação dos mesmos (Cabrera 2008, 38).

Após esta breve incursão sobre o contexto histórico e o funcionamento da Comissão de Censura no período do governo de Marcello Caetano (1968-1974), serão em seguida apresentados e comentados os processos de censura aos filmes, nacionais e estrangeiros, guardados no ANTT, nos últimos meses da vigência do Estado Novo em Portugal.

Os processos de censura aos filmes

Antes da análise e exposição dos processos de censura, algumas considerações prévias devem ser feitas. Os números de processos e os seus conteúdos podem não ser exatos, ou porque alguns estão incompletos, não especificando os cortes, por não possuírem relatório de censura ou decisões finais e / ou sem conterem a lista de legendas.

Como nos explicou Paulo Tremoceiro, responsável pelos arquivos da censura ao cinema no ANTT, se existem processos registados todos têm relatório de censura, podem é estar perdidos ou extraviados. Esta situação deveu-se à “eliminação” praticada nos momentos seguintes ao 25 de Abril de 1974, período onde a documentação sofreu grandes extravios. Ou seja, alguns realizadores portugueses, ou até mesmo cidadãos comuns, na conjuntura instável da revolução do 25 de Abril de 1974, ou imediatamente a seguir, terão levado processos de censura dos filmes com eles, o que explica que o maior número de processos incompletos corresponda a filmes portugueses.

Segundo Tremoceiro, em termos documentais, e no que se refere à censura a obras cinematográficas, podemos encontrar processos e relatórios de filmes submetidos à censura desde 1932 a 1974 e até um pouco posteriores. Existem pelo menos 3000 processos de filmes que podem ser encontrados na base de dados e no catálogo que existe na Sala de Referência do ANTT.1

A presente investigação começa com a consulta, no ANTT, da caixa com a designação “1973– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 460” e termina na caixa “1976– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 500”. Entre estas caixas existem algumas que não contêm quaisquer processos, é o caso da 1975– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 489, da 1976– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 493 ou da 1976– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 497. A partir da caixa 1976– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 501, inclusive, não existem processos de censura. Ou seja, embora a investigação apresentada incida em processos de filmes de janeiro de 1974 até depois de 25 de Abril desse ano, a consulta da documentação foi iniciada numa caixa de 1973 e terminou numa com a indicação de 1976, pois nelas encontram-se processos correspondentes a 1974.

A data dos processos de censura tida em conta no presente artigo é a do ofício já passado à máquina e não a do relatório porque, muitas vezes, a caligrafia dos censores é indecifrável. De qualquer modo, se percetíveis e sempre que considerámos as observações do relatório importantes ou exemplificativas de algum aspeto relevante, estas foram transcritas, bem como observações dos censores no argumento dos filmes que, muitas vezes, vem anexo aos processos de censura.

Entre os meses de Janeiro e Abril de 1974 encontrámos um total de 100 filmes censurados e 4 proibidos.2 Os proibidos são: O mal amado, realizado por Fernando Matos Silva, proibido a 20 de Fevereiro de 1974; Bob & Carol & Ted & Alice, realizado por Paul Mazursky foi proibido a 4 de Fevereiro de 1974; Último tango a Zagarol (Último tango em Zagarol), realizado por Nando Cícero e curiosamente proibido no dia a seguir ao 25 de Abril: 26 de Abril de 1974 (já tinha sido proibido em 28 de Março de 1974) e Belle de jour (A bela de dia), realizado por Luiz Buñuel.

O processo deste último filme é um exemplo de persistência de proibição ao longo dos anos. Foi proibido a 3 de abril de 1968 e a 24 de Abril de 1968. Foi negado provimento a um recurso e, por isso, continuou proibido a 22 de dezembro de 1971. A 21 de fevereiro de 1973 foi indeferido um outro requerimento e o filme continuou proibido; o comentário foi seguinte: “A Comissão entendeu não ser possível alterar a decisão tomada em 1968 por não se terem entretanto alterado as circunstâncias que a determinaram”. Foi negado provimento a um novo recurso e, por isso, continuou proibido a 23 de abril de 1974. Segundo a Comissão de Censura, a história do filme não podia ser mais “censurável”: uma mulher da burguesia que esconde o segredo de ser uma prostituta e ainda por cima masoquista.3

De entre os filmes proibidos em anos anteriores, mas aprovados apenas para sessões especiais em 1974 encontrámos um filme. Referimo-nos a Jules et Jim (Jules e Jim), realizado por François Truffaut. A primeira proibição do filme ocorreu a 12 de abril de 1962, foi de novo proibido a 25 de fevereiro de 1972, continuou proibido a 3 de abril de 1973 com a indicação: “[o filme] não é suscetível de revisão, por entretanto não se terem alterado as circunstâncias que motivaram a sua reprovação”. Foi de novo proibido a 27 de dezembro de 1973 e ainda a 27 de fevereiro de 1974. Só a 24 de abril de 1974, nas vésperas do 25 de abril, a Comissão de Recursos refere que “deliberou aprovar o filme, classificando-o no grupo D, ficando a sua exibição limitada aos cinemas Estúdios”.4 Se nos anos 70, a Comissão já admitia que certos filmes fossem exibidos, muitos deles só o poderiam ser em salas de cinema-estúdio, de pequena lotação, reservadas para públicos instruídos; a exibição em cinemas de grande lotação desses filmes específicos continuava proibida para o público em geral (Areal 2011, Vol. I 45 e Morais 2017, 47).

Filmes censurados em anos anteriores, mas cujos cortes foram levantados em 1974, encontrámos 3. Este foi também o número de filmes censurados em 1974, mas aprovados sem cortes no mesmo ano. Dos filmes censurados em anos anteriores e levantados em 1974, o filme Belle (Amor louco), realizado por André Delvaux, é um exemplo de filme cujos cortes foram semi-levantados. A 14 de Novembro de 1973, o filme foi classificado do Grupo D,

com os seguintes cortes: 1) na 1ª parte: redução substancial da cena de cama entre as legendas 27 e 34; - supressão dos grandes planos do quadro da mulher nua, entre as legendas 101 a 127; 2) na 3ª parte: supressão da cena de cama e dos nus cerca da legenda 76; - redução da cena na palha, cerca da legenda 97; 3) na 7ª parte: supressão da apresentação dos objectos com fins eróticos, de modo a não se apreender qual seja a sua finalidade, por volta das legendas 69 e 79. PS – trailer aprovado para o Grupo D, com os cortes mandados efectuar no filme [Sublinhados do censor].5

A 17 de Janeiro de 1974 foi concedido, em parte, provimento a um recurso “levantando os cortes indicados, com exceção do corte das imagens do nu, em que se vê a pélvis da mulher, cerca da legenda 76 da 3ª parte. Mantém-se o corte indicado na 7ª parte.6 Este processo não deixa de ser interessante também porque censura a imagem de objetos eróticos, por forma a que o espectador do filme não saiba que existem e para que servem.

Filmes proibidos e aprovados com cortes no mesmo ano de 1974 foram encontrados dois e o mesmo número de processos corresponde a filmes proibidos em anos anteriores, mas aprovados sem cortes em 1974. Filmes Proibidos em 1974, mas aprovados sem cortes no mesmo ano encontrámos um, mas filmes proibidos em anos anteriores, que depois foram aprovados com cortes em 1974 encontrámos seis.

Um exemplo significativo de filme que foi proibido em 1974 e aprovado nesse mesmo ano com cortes é The way we were (O nosso amor de ontem), realizado por Sydney Pollack. O filme foi proibido a 25 de janeiro de 1974. Porém, a 21 de fevereiro 1974 a Comissão de Recursos decide aprovar o filme e classificá-lo

para maiores de 18 anos (Grupo D) com os seguintes cortes: a) legendas 14 [‘Continuamos na mesma… Há café?’ – legendas anteriores aludem ao mercado negro], 28 [Estou farto disto.] e 44 [Esses rapazes andaram em combate.]; b) legendas (e imagens) 70 a 80 [a legenda 77: ‘Fascista!’ e a legenda 80, em maiúsculas: ‘GREVE PRÓ PAZ’ – as outras legendas são alusivas as questões políticas deste género]; c) legendas (e imagens) 111 a 148 [discurso de estudantes que refere a Guerra Civil Espanhola e o apoio russo comunista aos espanhóis; apela também contra o apoio aos americanos e refere na última legenda que aquele é um ‘comício pela paz’]; d) legendas (e imagens) 1066 A a 1113 [diálogo que descreve o que se vive em Portugal, embora a acção do filme se passe noutro país: referência aos delatores, à falta de liberdade, à não existência da liberdade de expressão e referência à inutilidade de lutar contra a situação, porque leva à prisão e / ou morte; referência às semelhanças entre os regimes fascistas e comunistas].7

A 7 de Março de 1974, em resposta a um requerimento,

foi deliberado o seguinte: Aceitam-se as [alterações] das legendas 14, 28 e 44 (alínea a) do requerimento e as relativas às legendas (e imagens) 70 a 80 (alínea b) do requerimento). Não se aceitam as sugestões das alíneas c) e d). Os cortes deverão ser feitos na cabine destes Serviços nos precisos termos em que a Comissão de Recursos os indicou. Não se aceita, igualmente, a nova tradução da legenda 151. Concorda-se com as alterações das legendas 1066 e 155, isto é, com a supressão das palavras ‘comunista’ e ‘fascista’, respectivamente. Trailer aprovado para o Grupo D.” A 21 de Março de 1974 a classificação do filme é confirmada para o Grupo D.8

O processo deste filme é revelador dos conteúdos políticos considerados mais censuráveis nestes últimos meses antes da Revolução de Abril. Para além do mais, é curioso ser catalogado como pertencendo ao género “história de amor” e todos os cortes mandados efetuar serem de cariz político ou afim.

Caso idêntico sucedeu com o filme Lucky man (Um homem de sorte), realizado por Lindsay Anderson. Em nome do primeiro grupo de censores, no relatório de censura, a 27 de dezembro de 1973, afirma-se: “Quanto a mim o filme é uma crítica mordaz às diversas estruturas da sociedade actual, marcando com um ridículo contundente muitas das instituições que a mantêm: polícia, justiça, valores religiosos, familiares, morais, etc. Por esta razão reprovo o filme.” De facto, o filme foi proibido a 10 de janeiro de 1974. Porém, a 8 de março de 1974 foi decidido conceder provimento a um recurso e o filme foi classificado para o grupo D com inúmeros cortes. A 10 de Abril de 1974 a classificação do filme foi confirmada para o Grupo D,

mais informo V. Exª de que não está em conformidade com a decisão da Comissão de Recursos o corte referente à cena da actuação dos polícias no desastre de automóvel, na 2ª parte. Neste corte devem suprimir-se ainda os planos finais em que os polícias metem diversos objectos na mala do seu carro. Trailer aprovado para o mesmo grupo.9

Qualquer alusão a contestações políticas e / ou aos valores éticos vigentes era motivo de proibição ou censura de um filme. Este é também o caso de The condemned of Altona (Os sequestrados de Altona), realizado por Vittorio de Sica. O filme foi proibido a 19 de setembro de 1963. Porém, a 9 de abril de 1974, o filme foi classificado “no grupo D, com a não gravação das palavras ‘todos a fazerem ressoar as armas’, na legenda 822 (14ª parte)”.10 O mesmo sucedia a sequências que pusessem em causa figuras de autoridade, como o que sucede no filme Slaughter’s big rip-off (Violenta desforra era o título em português, porém foi substituído a 6 de Junho de 1974 por A cólera do indomável) realizado por Gordon Douglas, no qual é mandada cortar uma única legenda: o filme foi classificado, a 23 de abril de 1974, “do Grupo D, com supressão da legenda 361 na 9ª parte [“Nunca confies num polícia”]. Trailer aprovado para o mesmo grupo”.11

Dos 100 processos censurados, um deles corresponde a um filme que foi censurado para o Grupo D (maiores de 18 anos) sem cortes ou para Grupo C (maiores de 14 anos) com cortes. O filme é The mackintosh man (O misterioso Mr. Mackintosh), realizado por John Houston, e a 11 de Janeiro de 1974 foi classificado “no Grupo D, sem cortes, ou para o Grupo C, com o com o corte da sequência correspondente às legendas 369 a 382, inclusive. Trailer aprovado para o Grupo C”. A sequência mandada cortar corresponde ao diálogo de alguém que esteve preso durante muito tempo e, por isso, o que pede primeiro é uma mulher.12

Curiosamente encontrámos o processo de um filme cujos cortes mandados efetuar em 1974 ainda foram maiores do que os mandados executar no ano anterior; este processo é também o exemplo de censura ao erotismo e a imagens do corpo nu. Referimo-nos a The man who gave up smoking (O homem que deixou de fumar), realizado por Tage Danielsson. A 30 de outubro de 1973, o filme foi classificado:

do Grupo D, nos seguintes termos: a) redução da sequência da ‘dolce vita’ entre as legendas 326 e 333, exclusive (6ª parte), que inclua, além do encurtamento das cenas, a supressão dos seios nus e da cena de cama; b) redução substancial da cena de cama, a partir da legenda 341 (6ª parte); c) não gravação da parte final da legenda 347, na 6ª parte (‘[volta para o quarto] vais exercer a tua verdadeira profissão’); d) redução da cena de cama, entre as legendas 349 e 352, exclusive (7ª parte); e) redução substancial da cena de cama, a partir da legenda 438 (8ª parte); f) corte da imagem da mulher com os seios desnudados, entre as legendas 469 e 470 (9ª parte); g) redução da cena de cama entre as legendas 488 e 489 (9ª parte); h) corte das imagens do par nu entre as legendas 530 e 531 (10ª parte); i) corte da sequência do campo de nudistas, no final da 10ª parte.13

A 9 de janeiro de 1974, a classificação do filme foi confirmada no grupo D, “devendo ainda ser eliminadas as imagens de seios nus, entre as legendas 329 e 330, 343 e 344, 439 e 441, 469 e 470 e 530 e 531. Por sua vez, a sequência do ‘Paraíso’ deve ser reduzida por forma a suprimir as imagens em que se vê mais nitidamente o corpo nu de ‘Beatriz’. Trailer aprovado para o Grupo C”.14

O filme Era notte a Roma (Era noite em Roma), realizado por Roberto Rossellini, tem a particularidade de ter sido mandado censurar apenas nas imagens do trailer que são de um outro filme do mesmo realizador. O processo refere que a 4 de abril de 1974, o filme foi classificado “do grupo D. Trailer aprovado para o mesmo grupo, com corte de todas as imagens respeitantes ao filme Roma Cidade aberta, em virtude de este se encontrar reprovado pela Comissão”.15

Curiosamente, encontrámos um processo de filme que o censura um dia após o 25 de Abril de 1974. De facto, como referem Paulo Cunha e Maria do Carmo Piçarra, foi apenas no dia 29 de abril de 1974 que uma Comissão de Cineastas Antifascistas ocupou o Instituto Português de Cinema, o Sindicato dos Profissionais de Cinema e a Inspecção dos Espectáculos, reclamando e conseguindo a abolição da censura aos filmes e a sua substituição por uma comissão ad hoc para os espetáculos, sendo que dias antes o Movimento das Forças Armadas (MFA) já tinha manifestado a intenção de pôr fim ao regime de censura como uma medida política imediata incluída no seu programa tornado público a 26 de abril (Cunha e Piçarra 2013, 76).

O filme encontrado é Un amour de pluie (Amor passageiro), realizado por Jean Claude Brialy. No processo é referido que foi classificado “do grupo D, nos seguintes termos: a) corte das imagens desde a legenda 452 até final da 6ª parte [diálogo entre uma rapariga e um rapaz em que esta refere que é fácil fazer amor se a pessoa quiser e que ela só fará depois dos 15 anos, e que os fará depois de amanhã]; b) redução substancial da cena em que intervêm os dois jovens, entre as legendas 540 e 543, inclusive (8ª parte) [está escrito a caneta azul, ao lado: ‘cena entre os dois jovens na cama’]; c) corte da imagem correspondente à legenda 605 (9ª parte) [Talvez estejas grávida.]. Trailer também para o grupo D, com corte da imagem correspondente à legenda nº 6, que não aparece no filme [Tiveste amantes?] e da cena entre os dois jovens na cama, a seguir à legenda nº 7”.16

No que respeita a modificações na tradução de títulos de filmes é necessário sublinhar que tal não significa necessariamente que tal sucedesse por serem alvo de censura. Ainda atualmente essas modificações ocorrem por motivos relacionados com as audiências, tentando tornar o título do filme mais apelativo. É o que parece ser o caso do título do filme mencionado acima, Slaughter’s big rip-off (título definitivo em português A cólera do indomável, a 6 de junho de 1974), ou o de Delightful forest, realizado por Chang Cheh e Pao Hsueh Li, cuja primeira versão do título em português, A floresta das delícias, foi riscada e substituída por: Punhos mortais do kung fu. Este último ficou o título definitivo a 1 de julho de 1974, já após a Revolução de 25 de Abril.17

Outro exemplo é também o processo do filme Ooh… You are awful, realizado por Cliff Owen, que foi um dos filmes censurados a 20 de fevereiro de 1974 e cujo título era Este homem é de morte. Este primeiro título foi substituído por O rabo tatuado, este ficou o título definitivo a 17 de abril de 1974.18 Ou seja, mesmo durante o período final do marcelismo a preocupação em atrair as audiências coexistia com a existência da censura, o que explica a alteração do título em português para uma versão muito mais arrojada do que a pré-existente.

Quanto aos temas mais censurados, convém mencionar que num mesmo processo podem ser censurados vários e diferentes temas. Tal como demonstrado em Morais (2017, 142), embora para o conjunto de processos que abarca a vigência do regime marcelista (1968-1974), o erotismo / cenas de cama é o mais censurado em 48 processos, seguido de imagens do corpo nu em 34. Intimamente relacionada com estas duas temáticas está a censura a questões éticas e morais, encontrada em 29 processos. Legendas e imagens relacionadas com política e que ponham em causa figuras de autoridade foram mandadas cortar em 21 processos, cada um dos dois temas. Crime e corrupção foi alvo de censura em 19 processos e temas relacionados com a religião foram censurados em 10. Sequências e imagens de violência física / sangue foram mandadas cortar em 18 filmes, e temas relacionados com a guerra e a paz em 9. Por fim, a homossexualidade foi mandada censurar em 4 processos, gestos obscenos em 3, palavrões em 2 e o incesto em 1.

Um dos processos de filmes que mais revela a censura a imagens e legendas que podem pôr em causa a moral tradicional relacionada com o casamento, é 40 Carats (40, idade perigosa – note-se já os juízos de valor inerentes à tradução do título em português), realizado por Milton Katselas. A 13 de janeiro de 1974, a censora Mariana Rita Nova Goa comenta no relatório:

Ora bem, eu acrescento qualquer coisa… [em relação ao parecer anterior] Este filme é, a meu parecer, completamente amoral. Também nele não há uma única pessoa de carácter, nem séria, nem com vergonha. Se o aprovo é unicamente por, tristemente ter a certeza de que se for visto por outro grupo é logo aprovado e… sem cortes (aliás não é isto uma crítica maldosa, cada qual é como é, alguns são mais liberais e eu… é o que se sabe) Aprovo de muito má vontade. Para pessoas com pouca formação moral é uma maneira de entusiasmar a levar uma vida como a destes: desrespeitar a moral, ignorar a responsabilidade que merece o casamento etc. A maneira incrível, estúpida, como a mãe e a filha do protagonista agem repugna-me, nem falando no palerma do marido. Aceitar amores de uma mulher de 40 anos com um miúdo de 20 é horrível, ignóbil. Muito se aprende de mal com esta arma de dois gumes que é o cinema!19

A 9 de Janeiro de 1974 o filme foi classificado “no Grupo D, com o corte das últimas cenas e respetivas legendas, a partir da 1651 ou da 1655 inclusive de forma a que a protagonista… perca o avião e não chegue à Grécia. Trailer aprovado para o Grupo D.” Porém, a 17 de Janeiro de 1974, “a Comissão de Recursos deliberou conceder provimento ao recurso, levantando o corte recorrido”20

Outro processo de filme no qual é revelado de um modo subtil esta preocupação com os aspetos éticos e morais é o de L’altra faccia del padrinho (A outra face do padrinho), realizado por Franco Prosperi, no qual é mandada substituir uma palavra por outra por se assemelharem a nível de sonoridade: o filme foi classificado, a 5 de Março de 1974, “do grupo D, devendo gravar-se a palavra ‘feitiço’, em vez da palavra ‘fetiche’ na legenda 752”.21

Como enunciado acima, intimamente relacionada com a censura a aspetos éticos / morais está a censura ao erotismo / cenas de cama e embora a maioria dos processos encontrados apenas refira o número das sequências a cortar apenas com a designação “cortar a cena de cama”, no processo do filme La vallée (O vale dos perdidos), realizado por Barbet Schroeder, o censor descreve e justifica o porquê de mandar efetuar os cortes. A 9 de Novembro de 1972, o filme foi classificado no grupo D, com os seguintes cortes: “a) corte das imagens entre as legendas 120 e 121 (2ª parte), em que se vê um casal deitado na cama, nu; b) eliminação dos ruídos que se ouvem entre as legendas 150 e 151 [em frente está escrito a caneta azul: ‘ruídos do casal na cama (espécie de suspiros)’]; c) corte da cena de cama, entre as legendas 216 e 217 (2ª parte); d) supressão de todas as imagens a seguir à legenda 788 até final da 11ª parte [por baixo aparece escrito a caneta azul: ‘O ‘Gaitan’ apresenta-se totalmente nu; cena de amor entre ele e Viviane’]”.22 A 21 de Março de 1974 foi confirmada a classificação do filme para o Grupo D.

Existem casos em que, embora o filme seja classificado como sendo do género “terror”, curiosamente, a legenda mandada cortar refere-se ao corpo nu. Trata-se de The satanic rites of Dracula (Dracula tem sede de sangue), realizado por Alan Gibson. A 20 de fevereiro de 1974, o filme foi classificado “do grupo D, com o corte da imagem do nu, entre as legendas 177 e 178, na 3ª parte”.23 A 5 de abril de 1974, a classificação do filme foi confirmada para o Grupo D e o trailer foi também classificado para o Grupo D.

Estes resultados, quanto aos temas mais censurados e também no que respeita ao género e nacionalidade dos filmes, comprovam as conclusões que respeitam à totalidade dos processos de censura que se encontram no ANTT (com as ressalvas mencionadas acima) no tempo do governo marcelista (Morais 2017, 142). Assim, e embora em dois casos o género fílmico não venha especificado nos processos, estreitamente relacionado com sequências mandadas cortar de imagens e legendas eróticas e cenas de cama, o género fílmico mais censurado é, sem sombra de dúvida, o drama, com 42 filmes censurados, seguido da comédia com 11, do género Policial com 9, “aventura” com 8 e dos filmes de Acão com 7. Dos filmes de género Farsa encontrámos 6 processos de censura, 4 de género Terror, o mesmo número de Western, 2 de “História de Amor”, 2 de Sátira e, por fim, cada um dos géneros com um filme censurado, temos Ficção Científica, Suspense e Epopeia dramática.

O género Ação é aquele no qual a descrição das legendas e imagens mandadas cortar são mais detalhadas, com um pormenor tal que quase conseguimos ver o filme à nossa frente. O processo do filme The Chinese boxer (O boxeur chinês), realizado por Wang Yu, é um bom exemplo deste tipo de descrições. A 25 de Janeiro de 1974, o filme foi classificado

do Grupo D, nos seguintes termos: a) corte das imagens do rosto ensanguentado no fim da 3ª parte; b) corte da imagem do rapaz no caixão, entre as legendas 172 e 173 (4ª parte); c) redução das sequências das lutas, que deverá abranger as imagens dos corpos ensanguentados dos dois ‘alunos’ e do ‘mestre’, este deitando sangue pela boca, entre as legendas 185 e 189, na 4ª parte; d) redução da sequência da luta, entre as legendas 296 e 299, que deverá abranger as imagens que mostram o vomitar sangue e as bocas e os olhos ensanguentados, excepto a última (homem encostado ao tabique); e) idem das sequências das lutas, entre a legenda 334 e o final do filme, com supressão dos planos dos rostos ensanguentados e das bocas, vomitando sangue, e daquele plano em que se vê sair sangue do ventre de um dos lutadores. Trailer para o Grupo D, com supressão da imagem do homem, deitando sangue pela boca, entre as legendas 12 e 13.24

Quanto à nacionalidade dos filmes, a americana é a predominante com um total de 26 filmes, seguida pela inglesa e francesa, com 21 cada uma e a italiana com 18. De seguida surgem outras nacionalidades com números bastante inferiores de filmes: japonesa 3, portuguesa 3, Hong Kong 2, canadiana 2, espanhola 2, israelita 1, origem italiana versão inglesa 1 e sueca 1.

Os dois filmes portugueses censurados e o proibido são bastante reveladores dos temas que mais incomodavam o regime político nesta fase da história portuguesa. Neles são censuradas uma série de imagens e legendas que são uma premonição da Revolução de Abril e denunciam, de maneira metafórica ou não, a situação política e social portuguesa de então. O mal amado, realizado por Fernando Matos Silva e proibido a 20 de fevereiro de 1974 é o que levanta mais problemas à Comissão de Censura.25 Este foi o último filme português a ser proibido pelo Estado Novo e o primeiro a ser permitido depois do 25 de Abril de 1974 e é bastante exemplificativo das temáticas que o marcelismo considerava impróprias para exibição nas salas de cinema portuguesas. A acta da reunião da Comissão de Recursos, que data de 28 de março de 1974, encontra-se no ANTT e apresenta todo o debate que suscitou o filme (Morais 2017, 115-117).

O filme Meus amigos, realizado por António da Cunha Telles foi classificado a 15 de fevereiro de 1974 “do Grupo D, nos seguintes termos: a) supressão das imagens correspondentes às palavras que no texto vão indicadas a lápis azul, nas legendas 2, 3, [1 – Pá, aquele gajo… os gajos da polícia lá do… do serviço… 2 – especial… 3 – especial, não é (…)] 7 [(…) e eu dizia que afinal o… o carrasco de Anselwitz [sic] também não tinha culpa, não é?... porque… cada um faz o seu trabalho.] e 549 [‘Estás a brincar comigo?... pá… isto, pá, é uma… sub-agência, pá, da banda americana, pá. Com a França, igual, a mesma coisa… a mesma porcaria de todos os países onde eu estive… Simplesmente aqui, cheira muito mais mal… e faz muito mais mal ao coração…’ - toda a legenda está envolvida num rectângulo a lápis vermelho e a parte sublinhada corresponde a um rectângulo a lápis azul]; b) supressão das imagens correspondentes às legendas 647 a 684 inclusive [diálogo que usa a metáfora dos ratinhos que são obrigados nos exames de laboratório a seguir o sinal verde, se forem pelo vermelho levam choques e o amarelo significa transgressão – tal e qual o que sucederia com a vida das personagens se desobedecessem às regras políticas e sociais do regime marcelista], 744 [É preciso apossarmo-nos da propriedade privada.], 807 [806 – Os capitalistas…são os… 807 - …têm os fuzileiros…], 3089, 3090 [3089 – O Cristo-Rei. 3090 – Matamos o Cristo-Rei. Espera aí, espera aí…], 4014 a 4019 inclusive [Uma personagem pergunta que monumento é aquele que está a ver e outra responde-lhe: ‘é a cara de Portugal feia’], 4029 [Brr…brr… a Igreja, pá! Brr… Brr…], 4373 [Tens razão, pá… Isto, está tudo podre. Devíamos deitar tudo fora.] 4517 e 4518 [4517 – É preciso estar dentro das coisas. É preciso uma acção disciplinada. À margem não se faz nada. Voltei porque quis. 4518 – Sim, pela revolução, pelo interior, não é?]”.26

A 21 de fevereiro de 1974 foi negado provimento, pela Comissão de Recursos, a um recurso, “mantendo a decisão recorrida, ou seja, mantendo todos os cortes indicados.” A 9 de Março de 1974 é referido que “devem ainda ser suprimidas as imagens correspondentes às legendas 704 a 710 [704 – Os Portugueses estão lá, porque … foram deportados. 705 – Os portugueses estavam lá porque o capitalismo monopolista… 706 – Foram deportados para lá… 707 - …de facto deu um grande salto, e esta malta teve oportunidade de ter um mercado de trabalho, foi… foi uma porta aberta que se criou e criou-se porque houve um grande avanço, quer dizer… 708 – Eu acho que vocês deviam falar mais baixo… 709 – mais baixo? 710 – anh…], inclusive, as quais por lapso que muito lamentamos, não foram indicadas no referido ofício [o de Fevereiro]”.27

Quanto ao filme Malteses, burgueses e às vezes, realizado por Artur Semedo foi classificado, a 26 de março de 1974,

do grupo D, com redução da sequência do ‘streap-tease’, que deverá incidir nos seus planos finais, a páginas 4, e supressão das imagens do par desnudado junto ao duche, também a páginas 4. Trailer aprovado para o mesmo grupo, com o corte da imagem indicada na alínea b), relativa ao filme.28

Podemos verificar que os processos de filmes portugueses englobam censura a todos os temas elencados acima, de sequências relacionadas com o amor erótico e o corpo nu, àquelas que questionam os valores políticos e socias do regime marcelista. Em seguida serão apresentadas algumas conclusões baseadas nestes últimos processos de censura a filmes nacionais e estrangeiros.

Considerações finais

Nos últimos meses do regime autoritário português podemos concluir que a Comissão de Censura continuou a proibir e a censurar todos os filmes, nacionais e estrangeiros, que entrassem em território nacional.

Apesar de todas as mudanças de mentalidade que se processavam na Europa e no mundo, ao longo da década de sessenta – movimentos pacifistas, lutas pelos direitos das mulheres e das minorias, Maio de 68, só para enumerar alguns acontecimentos – a resistência à mudança continuava a fazer-se sentir e a censura ao cinema era considerada fundamental, pois através dos filmes chegavam aos portugueses todas as inovações e mudanças de estilo de vida que sucediam além-fronteiras. Por este motivo, embora alguma expressão da sexualidade fosse já tolerada, como podemos constatar, o tema mais censurado continuou a ser o erotismo, mais concretamente cenas de cama (48 processos), seguido de imagens do corpo nu (34 processos), temas estes acompanhados de perto pelas questões éticas e morais (censuradas em 29 processos) e que explicam o género cinematográfico mais censurado: o drama (42 processos).

Podemos também verificar que nestes primeiros meses de 1974, apesar de existirem filmes proibidos em anos anteriores que foram permitidos sem cortes, o seu número foi apenas de 3; comparativamente, os filmes proibidos em anos anteriores, que depois foram aprovados com cortes em 1974 foram em número de 6, ou seja o dobro. Surge também o caso de um filme classificado para maiores de 14 anos com cortes, mas com a opção de ser para maiores de 18 anos sem cortes. Apesar desta opção revelar já uma mudança de mentalidades, surge também o caso de um filme cujos cortes mandados efetuar ainda foram maiores em 1974 do que no ano anterior.

Comprovando o que refere João Bénard da Costa, à medida que as liberdades externas se expandiam, mais a ditadura portuguesa se tentava reforçar, tentando evitar a influência daquelas, o que se traduziu numa censura mais rigorosa aos filmes estrangeiros, sendo a origem nacional mais censurada, como observámos acima, a americana: “Embora não se conheçam números rigorosos, as estimativas mais fiáveis dizem-nos que, para cerca de 14000 longas-metragens (contas redondas) submetidas à censura nesses 46 anos [de 1928 a 1974], cerca de 1000 foram totalmente reprovadas e cerca de 5000 aprovadas com cortes” (Costa 2000, 455).

Dois dos achados mais curiosos desta investigação são: a descoberta de um filme proibido no dia a seguir ao 25 de Abril: 26 de abril de 1974 (já tinha sido proibido em 28 de março de 1974): Último tango a Zagarol (Último tango em Zagarol), realizado por Nando Cícero, e de um processo de filme que o censura um dia após o 25 de Abril de 1974, este último é Un amour de pluie (Amor passageiro), realizado por Jean Claude Brialy. Como referido acima, foi apenas no dia 29 de abril de 1974 que uma Comissão de Cineastas Antifascistas ocupou o Instituto Português de Cinema, o Sindicato dos Profissionais de Cinema e a Inspecção dos Espectáculos, reclamando e conseguindo a abolição da censura aos filmes e a sua substituição por uma comissão ad hoc para os espetáculos (Cunha e Piçarra 2013, 76).

Assim, nesta fase final do Estado Novo, podemos comprovar que, no que respeita à censura cinematográfica, a ditadura continuava a utilizar todos os meios que tinha ao seu alcance para tentar controlar o povo português, constituindo “um instrumento para condicionar consciências e manipular ideias e comportamentos (…)” (Azevedo 1999, 24).

Outra conclusão a que pudemos chegar é a de que o poder económico constituiu sempre uma constante no controlo do que podia ou não ser exibido, tanto no teatro como no cinema e tanto no tempo do Estado Novo como na sociedade atual. A alteração na tradução dos títulos dos filmes para português é disso prova, como observámos nos dois processos referidos acima.

Os acontecimentos políticos influenciaram muito a censura que era feita aos filmes e explicam flutuações nos aspetos que eram mais censurados em certas alturas e menos noutras. Para dar a ideia de abertura no regime marcelista atribuiu-se uma maior valorização dos Festivais de Cinema e criaram-se as já referidas “salas estúdios” em finais dos anos sessenta – foi encontrado um processo de filme que permitia a sua exibição apenas nessas salas. Nestes espaços havia menos censura aos filmes do que nas outras salas e os que neles passava não ia para as salas de cinema comuns: dada a vertente paternalista do regime, o público, sobretudo o provinciano, era considerado pouco culto e, de facto, o analfabetismo era elevado nesta época da história de Portugal.

Como tentámos demonstrar ao longo desta investigação, podemos concluir que até ao fim do regime marcelista, a censura ao cinema se mostrava rigorosa, apesar de alguma tendência de adaptação à inevitável abertura de Portugal à Europa e ao mundo em geral que se processou, de um modo acelerado, nos anos 60.

Referências

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Recebido: 29.08.2020
Versão final: 03.06.2021
Aprovado: 05.07.2021

 

 

 


1 Entrevista concedida no dia 3 de fevereiro de 2020 e a ser publicada sob o título “How is a Portuguese Film Documentation Archive structured? Interview with Paulo Tremoceiro”, num livro que está em preparação.

2 Várias foram as Distribuidoras de Filmes neste primeiro trimestre de 1974. A que distribuiu mais filmes foi Filmes Castello Lopes, Ldª com um total de 14, seguida da Filmes Lusomundo, Sarl, com 11. Cada uma com 8 filmes surgem Sofilmes – Sociedade de Produção e Distribuição de Filmes Ldª, Distribuidores Reunidos, Ldª e Columbia & Warner Filmes de Portugal Ldª. Espectáculos Rivus, Ldª distribuiu 7 filmes e, com 5 filmes cada uma, temos Sonoro Filme Ldª, Filmitalus Ldª, Doperfilme e Talma Filmes, Ldª. As seguintes Distribuidoras distribuíram 4 filmes cada uma: Mundial Filmes, Sarl, Exclusivos Triunfo Ldª e Rank Filmes de Portugal Ltª. As que distribuíram 3 cada uma foram Animatógrafo – Produção de Filmes, Ldª e Filmes Ocidente, Ldª. Por fim, Astória Filmes Ldª e Internacional Filmes Sarl distribuíram 2 filmes cada uma e a Distribuidora SACIL apenas 1.

3 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Fundo do SNI Processos da Direção Geral dos Serviços dos Espetáculos. Processos de Censura 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 469.

4 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 475.

5 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 464.

6 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 464.

7 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 465.

8 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 465.

9 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 466.

10 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 475.

11 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 472.

12 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 463.

13 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 464.

14 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 464.

15 ANTT, Processos de Censura, 1975– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 486.

16 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 472.

17 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 473.

18 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 474.

19 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 463.

20 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 463. Para mais informações sobre a censora Mariana Rita Nova Goa e a subjetividade que caracteriza os seus comentários aos filmes nos relatórios de censura, cf. Morais (2020).

21 ANTT, Processos de Censura, 1976– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 492.

22 ANTT, Processos de Censura, 1975– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 482.

23 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 467.

24 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 463.

25 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 467.

26 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 465.

27 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 465.

28 ANTT, Processos de Censura, 1974– SNI, IGAC (2ª inc), cx. 467.