DOI: 10.18441/ibam.22.2022.79.149-170
Fabrício Antônio Antunes Soares
Universidade Federal do Amapá, Brasil
fabricioantunessoares@gmail.com ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-6132-803X
Esse artigo analisa a operacionalidade que o lugar social (Certeau 2007, 66-77) tem na escrita da história. Portanto, o objeto de investigação é a narrativa historiográfica. A fonte que será investigada é a obra historiográfica O sentido brasileiro da Revolução Farroupilha do militar e historiador Emílio Fernandes de Souza Docca publicada em 1935. A partir dessa obra procurarei avaliar como o lugar social se articulou e determinou a escrita da história sobre a Farroupilha, em outras palavras, como é possível perceber o lugar social, na historiografia sobre a Farroupilha.
Assim sendo, parte-se do pressuposto que não há como suprimir a particularidade do lugar de onde o(a) historiador(a) escreve e do campo científico no qual desempenha uma pesquisa. O lugar de produção é um indício permanente da produção do(a) historiador(a). Examinar a história como uma operação –ou seja, a operação historiográfica– significa analisá-la como a articulação entre a) um lugar social, b) práticas científicas e c) a escrita de um texto (Certeau 2007, 66). Porém, dos três elementos da operação historiográfica elencados por Michel de Certeau, aprofundarei o lugar social.
Para compreender, portanto, a história da historiografia sobre a Farroupilha, parte-se do pressuposto de que qualquer investigação sobre a narrativa histórica (Ricoeur 1994) se encadeia com um lugar e suas determinações tanto sociais e culturais como políticas e econômicas. Isso acarreta uma forma de proceder na historiografia limitada por condições inerentes ao lugar de sua produção. Assim, é em relação a um determinado lugar social que se organizam os métodos, que se constituem os documentos e se apresentam os problemas da pesquisa. Além disso, o lugar é uma instituição do saber (Certeau 2007, 69) que tem, por um lado, uma extensão externa, associada a outras instituições e conjuntos corporativos, e, por outro, uma extensão interna, o estabelecimento de um saber inseparável de uma instituição social. Esse é, então, um dos requisitos do desenvolvimento científico da operação historiográfica. Portanto, além de fornecer a solidez social à escrita da história, a instituição também a torna possível.
Logo, O sentido brasileiro da Revolução Farroupilha foi produzido no Rio Grande do Sul na década de 1930, sob os auspícios do Instituo Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS), instituição que abrigava a produção do conhecimento histórico à época. Esta obra historiográfica, no bojo do lugar de operação textual, apresentou uma interpretação extremamente nacionalista da Farroupilha. Também, há nessa obra um viés de comemoração em relação ao movimento político e militar dos farroupilhas. Contudo, isso foi possível, pois no período de sua publicação década de 1930 e, no lugar (espaço) de sua publicação, o Estado do Rio Grande do Sul e, principalmente, o IHGRGS, eram espaços simpáticos a esse tipo de compreensão histórica. Desse modo, a Farroupilha, era um passado que precisava ser nacionalizado e comemorado dentro do projeto político e intelectual varguista.
Ademais, a Farroupilha, ou Revolução Farroupilha ou Guerra dos farrapos,1 foi um conflito militar e político na Província de São Pedro entre 1835 e 1845. Ela faz parte de um duplo movimento histórico, a montante, faz parte das revoltas regenciais que assolaram o Império Brasileiro em seu início de consolidação e, a jusante, faz parte dos conflitos platinos que varreram essa região na constituição de seus Estados-nacionais. Desse modo, a Farroupilha começou como um movimento de autonomia política da Província, como as demais províncias brasileiras, para um ano depois, tornar a Província de São Pedro2 uma República separada do Brasil. Também, a Farroupilha se tornou o pilar central da identidade do sul-rio-grandense pelas mais variadas práticas simbólicas ao longo de um século.
Desse modo, pensar a Farroupilha como objeto historiográfico alude a que a historiografia é a obra de um lugar e, entre suas hierarquias e seus códigos, entre a seleção da documentação até a escrita do passado, o fazer do(a) historiador(a) é referente à estrutura da sociedade que permite e impõe os usos do passado no presente (Hartog e Revel 2001). E, desse modo, a historiografia se definiria “por uma relação da linguagem com o corpo (social) e, portanto, também pela sua relação com os limites que o corpo impõe” (Certeau 2007, 76).
Portanto, para atingir o objetivo aqui proposto, dividiu-se o artigo em duas partes. A primeira investiga o lugar social em seu contexto político e intelectual da década de 1920 e 1930 no Estado sulino, o período em que se ambientou a escrita da obra aqui analisada. A segunda parte foi dividida em quatro subpartes em que se examinam a obra O sentido brasileiro da Revolução Farroupilha e como ela se articula ao lugar social em que foi produzida.
Recapitulando o tratamento intelectual dado à Farroupilha, Rodrigues (2013) entendeu que o IHGPSP3 (Instituto Histórico e Geográfico da Província de São Pedro) não propôs fazer ou divulgar nenhuma atividade sobre a Farroupilha, conquanto certo número de seus componentes o efetuasse fora da instituição, sobretudo na esfera político-partidária. A autora observou que, no IHGB4 (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), a autoridade de Tristão Araripe5 sobre a Farroupilha estender-se-ia para depois de sua morte, ocorrida em 1908, pois, até 1921, não se observou ninguém que contradissesse a sua explicação mesmo após o surgimento de uma nova memória brasileira após a proclamação da República. Esse novo período de silêncio no IHGB terminaria no começo da década de 1920, na ocasião em que a Farroupilha se converteria em elemento de comemorações e discussões até a década de 1930. Assim,
Se, no espaço das elaborações textuais mais eruditas e cientificamente legitimadas dos artigos da revista, a Guerra dos Farrapos não se fazia presente, era no âmbito das comemorações, das conferências publicadas nas atas do IHGB, que ela emergia como temática importante da memória nacional (Rodrigues 2013, 169).
Desse modo, foi o militar e historiador Emílio Fernandes de Souza Docca (1884-1945) quem começou a intervenção mais intensa de reabilitação da Farroupilha na memória histórica nacional. Entretanto,
O que chama atenção no caso do centenário farroupilha é que as comemorações começaram três anos antes, já em 1932, ano emblemático para as disputas simbólicas em torno do governo Vargas, e aconteceram nos dias 20 de setembro daquele e dos próximos anos, até 1935 (Rodrigues 2013, 176-177).
A comemoração atenderia a necessidade de afirmação de uma nova lógica entre as memórias regional e nacional que se estabeleciam como republicanas desde o fim do século xix. A partir 1930, a rearticulação da Farroupilha com a memória nacional exigia “mais do que no contexto das reivindicações federalistas do século xix, a sua inserção na tradição republicana nacional” (Rodrigues 2013, 178). Enfim,
O movimento, que manteve durante dez anos uma guerra contra o Império, tornava-se não somente digno e glorioso, mas também patriótico e indispensável à integridade da nação! Após uma verdadeira operação de glorificação, nos anos precedentes, em relação as individualidades farroupilhas […] o próprio caráter do evento sofria uma releitura. A continuidade entre os ideais republicanos de 1835 e os de 1889 e o caráter brasileiro do movimento são explicitamente estabelecidos (Rodrigues 2013, 179).
A consequência foi a conexão da Farroupilha à memória histórica nacional como um movimento revolucionário, republicano, federalista, brasileiro e patriótico (Gutfreind 1992, 180). A memória da Farroupilha era disputada em distintas versões, não apenas na esfera do IHGRGS, mas, também, nos jornais e nas comissões oficiais organizados para as comemorações do centenário, sobressaindo-se a tese do abrasileiramento da farroupilha.6 Desse modo,
Em 1935, o centenário da Farroupilha foi comemorado com grandes eventos: exposições industriais, publicações, edificações de parques urbanos, temporadas líricas, estreias de peças teatrais e reapresentações de uma ópera sobre o drama dos farrapos. Um esforço do Governador, General José Antônio Flores da Cunha, para fazer conciliar a tradição campeira e regionalista com a modernidade urbana e industrial (Axt 2009, 37).
O processo de conversão da Farroupilha, nas vésperas de seu centenário, simultaneamente em objeto cívico nacional e objeto historiográfico, provocava reações apaixonadas por parte dos intelectuais. Entretanto, uma vez respeitados os procedimentos científicos legitimados pelas instituições, os textos dos historiadores logo se prestavam ao uso político, como se pode verificar na continuidade das conferências comemorativas do centenário farroupilha.7
Os livros de Apolinário Porto Alegre (1987),8 Assis Brasil (1981),9 Alfredo Varella (1915)10 e Alcides Maya (2002)11, no final do século xix e nos primeiros quinze anos do século xx, reconfiguraram, cada um à sua maneira, as conexões da Província com o centro, enfatizando a particularidade do Rio Grande do Sul e estabelecendo um discurso que evidenciava o Estado sulino “não mais voltado para o Brasil, mas para si mesmo, capaz de sobreviver, sem o concurso nacional, graças a suas potencialidades, a interesses econômico-financeiros específicos e à diversidade das demais Províncias” (Gutfreind 1992, 17). Apesar disso, “Afirmação como a exposta acima não poderia ser aceita no contexto pós-20, marcadamente nacionalista” (Gutfreind 1992, 19). Assim, Varella e Maya tornaram-se em pouco tempo intelectuais que deveriam ser neutralizados entre a elite intelectual sulina: Varella, por seu platinismo12 que não se coadunava com o nacionalismo dos novos tempos (Silva 2010) e, Maya, por seu gaúcho em ruínas que não combinava com o otimismo do gaúcho herói que queria rio-grandinizar o Brasil (Chiappini 1978, 203; Souza 1945, 73-74). Varella fundamentou que, na primeira metade do século xix, o caráter de liberdade foi mais importante que o de nacionalidade, desse modo, abrigar tais conceitos a partir de 1920 expressava a discordância em relação ao recente imaginário carregado de nacionalismo, que nesse período transitava em torno da unidade nacional.
Desse modo, cabe perguntar: a que se deve, nesse período da segunda metade da República Velha, esse interesse em uma releitura da Farroupilha? Isto é, como o lugar social ajudou a operar uma releitura da Farroupilha? Creio que uma hipótese de investigação pode ser lançada a partir do trabalho de Love (1975). Este divide a inserção do Rio Grande do Sul na política nacional (durante a República Velha 1889-1930) em quatro períodos: 1) 1889-1894 –dependência dos presidentes militares, 2) 1895-1903– autonomia relativa e isolamento, 3) 1904-1908 –emergência gradual como força política importante e 4) 1909-1930– participação em larga escala da política nacional. Assim, como aponta Love (1975), a partir de 1910, o Rio Grande do Sul junto com exército eram, dois atores/fatores que poderiam desestabilizar o sistema político do café com leite.13 O que veio a ocorrer nas eleições de 1910, de 1922 e a de 1930. Portanto, o interesse em uma releitura da Farroupilha, acredito estar nessa nova inserção do Rio Grande do Sul na política brasileira e, assim, sua identidade platina ou separatista deveria ser alterada para o Estado poder inserir-se e fazer reconhecer, frente aos demais Estados brasileiros, como líder na política nacional.
Não sem razão, é no ano de 1920 que se funda o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS)14, isto é, a decisiva institucionalização da história em um momento de constituição de uma narrativa histórica que idealiza o ajustamento integral do Rio Grande do Sul com o Brasil: “O estado sulino assume um compromisso com a História e financia as pesquisas, delegando responsabilidades a seus funcionários para a execução de trabalhos” (Gutfreind 1992, 20). Desse modo, ressalta-se um empenho em inventar uma representação do Rio Grande do Sul que se aproxime do Brasil, porque
A Revolução de 30 leva ao poder um presidente gaúcho, e é nesse contexto, principalmente nos anos 20, na luta para alcançar o poder em nível nacional e legitimar essa posse, que se coloca o interesse em demonstrar historicamente a identidade brasileira do estado sulino (Gutfreind 1992, 20).
As ferramentas empregadas, para tal projeto político/intelectual, foram a história e a literatura, e seus operadores, os historiadores, literários e os políticos rio-grandenses (Martins 2015). A brasilidade do Rio Grande do Sul torna-se, desde sempre, um padrão no entendimento do passado sulino. O padrão teórico-metodológico que adotam tem, a partir de então, nas condições físicas a base do processo histórico sulino. Haveria um modelo determinista para o qual a conformação geográfica de cada país contém uma fatalidade inevitável:
Criar a imagem de um Rio Grande do Sul brasileiro, forte, pujante, com líderes capazes de estarem à frente do poder nacional, justificando seu esforço para alcança-lo, e finalmente conseguindo, com a Revolução de 1930, foi a tarefa que os construtores da História Gaúcha se impuseram desde a década de 1920 (Gutfreind 1992, 22).
Assim como o IHGB e o IHGPSP tiveram os seus nascimentos e vidas ligados ao poder político-institucional, o mesmo acontece com o IHGRGS (Martins 2015). Também políticos, padres, professores, médicos, engenheiros, militares, bacharéis e funcionários públicos são, em sua maioria, seus integrantes.15 Igualmente, muitos de seus membros tinham a literatura como ofício e quase todos os membros do IHGRGS eram membros da Academia Rio-Grandense de Letras.16
Florêncio de Abreu e Silva, o primeiro presidente do IHGRGS, de 1920 até 1934, na primeira reunião do IHGRGS transmitiu aos presentes que se encontravam reunidos em um salão do Arquivo Público que o Dr. Borges de Medeiros,17 presidente do Estado, o autorizava a afirmar que a administração estadual ofereceria todo auxílio ao IHGRGS. O secretário do interior, Protásio Alves18, igualmente mostrou admiração pela ideia. A inauguração solene do Instituto aconteceu no salão nobre da Intendência Municipal, quando foi eleita a sua primeira diretoria. O vínculo entre o poder político e a escrita do passado estava traçado.19 Assim,
Como ocorreu no final do século xix, uma vez mais a História estava a serviço da política de uma forma direta e imediata. O nacionalismo ascendente e o esforço de grupos políticos gaúchos em se lançaram à liderança nacional tomaram a História como escudo e bandeira de batalha. A ciência, que diziam sagrada, tornou-se profana, parcial, mostrando-se impregnada de desígnios políticos (Gutfreind 1992, 24).
Assim, os historiadores e romancistas, em suas páginas, revelaram o lugar social de qual escreviam. A escrita sobre a Farroupilha estava a serviço de um projeto intelectual e político. Estabelecia-se a organização de uma escrita que (re)construía uma memória plausível de nacionalizar o Rio Grande. Os últimos anos da década de 1920 assinalaram o empenho político para erguer-se à direção do país. Como numa cruzada patriótica, políticos, intelectuais convergiram para projetar o estado sulino no Brasil. Para Chiappini,
o apelo ao mito do gaúcho pelos aliancistas foi tão sistemático e frequente, da parte de gaúchos e mineiros; políticos, intelectuais ou jornalistas; que não podemos ignorá-lo. E é difícil negar a sua relação com a popularização do mito pelo Regionalismo Literário, com o clima de euforia dos anos 20, com o intimo relacionamento entre os jovens políticos e os jovens escritores, com o papel centralizador da Livraria do Globo […] O interesse de todos está longe de ser o Modernismo e, muito menos a Literatura em si, mas um certo uso que se faz de um tipo de Regionalismo que se presta mais facilmente a ser sugado (1978, 188-189).
Em 1929, conforme notou Chiappini (1978), no início da campanha eleitoral já se capitalizavam as comemorações de 20 de setembro. E a união entre os farroupilhas e os gaúchos do presente, comprometidos na eleição de Vargas, é produzida de modo explícito. Desse modo, principia na campanha da Aliança “A exploração de um passado tido como heroico, representado, principalmente, pela Revolução Farroupilha, vai acompanhar todas as fases da luta” (Chiappini 1978, 185).
Em um desenvolvimento da integração nacional e de nacionalismo exagerado, era manifesto que interferências estrangeiras ecoassem como incômodo aos gaúchos e brasileiros. Assim, ficavam ligados em torno de uma memória, proclamada não só pelas preleções do PRR,20 possuidor do poder no Estado, mas também pelos intelectuais e políticos em comum. Chiappini (1978, 164) sugere que o regionalismo dos anos 20 parece ter cumprido um papel ideológico importante no movimento de afirmação das classes dominantes gaúchas no contexto nacional em que “Nas vésperas da Revolução de 30, que significativamente é o momento de união de Maragatos e Chimangos, os intelectuais da velha e nova geração vão-se unir pela crença na ressurreição do ‘Centauro’, do ‘Monarca das Cochilhas’”.21
O lugar social continha uma atmosfera de euforia que ostentava tanto as qualidades éticas do Estado como a confiança no destino próspero do Estado, o qual a sociedade sobrevinha a reproduzir na aptidão de comando do Rio Grande e, assim sendo, a Farroupilha nacionalizada foi o emblema máximo desta nova memória e nova história a propagar. Entretanto as tensões políticas do período, que em 1937 desembocariam no Estado Novo, não deixaram de florescer no centenário. Vargas, com um governo federal cada vez mais centralista e, Flores da Cunha,22 então governador do Rio Grande do Sul, que propugnava uma maior autonomia aos Estados, estavam politicamente em conflito e “Em setembro de 35, nas comemorações da Revolução Farroupilha, aquilo que era apenas boato ficou explícito: Getúlio e Flores estavam rompidos!” (Rangel 2007, 32).
Se o contexto político regional e nacional estava conflituoso, na esfera intelectual da comemoração do centenário da Farroupilha, a revista do IHGRGS em seu nº 4, de 1935, relata o primeiro Congresso de História Sul-rio-grandense, sobre a Farroupilha, realizado sob os auspícios do Instituto entre 30 de setembro e 9 de outubro. Assim, às 21 horas do dia 30 de setembro, Leonardo Macedônia, presidente do IHGRGS, abriu o seminário.23 Começou a sessão garantindo que o IHGRGS dava o seu apoio, com o máximo brilho, à “comemoração do 1º Centenário da Revolução Farroupilha”. E que as teses e as memórias do congresso dariam “maior lustre e relevo a este torneio intelectual, realizado em homenagem à Epopeia Farroupilha” (RIHGRGS 1935, 167). Para Macedônia, “nosso povo” encontrava-se preparado a tudo imolar pela libertação, e pela organização de um país robusto e estimado, estabelecendo uma República sob o alicerce da federação. Nota-se o lugar social entrando na narração de Macedônia: “A transformação política, que não foi possível conseguir, seria alcançada antes de findar o século que fora o da independência. E para ela o Rio Grande contribuiria, como efetivamente aconteceu, com o esforço dos seus grandes homens, Júlio de Castilhos, Demétrio Ribeiro, Barros Cassal, e outros, legítimos continuadores dos heroicos farroupilhas” (RIHGRGS 1935, 169).24
Segue Macedônia que todos dos eventos da Farroupilha seriam contemplados com equidade nesse passado “que nos enche de orgulho” feito por “nossos maiores”. Mesmos após as mudanças na escrita da história ao longo do século xix (Koselleck 2006), persiste no entendimento dos letrados do IHGRGS o entendimento do passado que fornece lições ao presente:
Porque a herança do passado, nos aperfeiçoamos, e tornamos melhor […] e estamos seguros de assim poder transmiti-la aos nossos filhos, que também terão orgulho da obra realizada pela geração a que pertencemos […] Mas a geração contemporânea, que orgulhosa de seus maiores […] essa também é digna continuadora dos homens da Revolução (RIHGRGS 1935, 170-171).
Faz-se uma ligação direta dos homens da Revolução de 1835 com os homens da Revolução de 1930 e conclui seu discurso de abertura do Congresso exaltando o glorioso decênio farroupilha e o que os maiores fizeram pela elevação do Estado e pela integridade do “nosso amado” Brasil. Em seguida, expõe-se a relação de teses apresentadas no Congresso, a relação de teses aprovadas, as teses louvadas, depois se passa ao término do Congresso. E, no dia 9 de outubro, às 21 horas, foi aberta a sessão de fechamento e “compareceram à sessão altas autoridades civis, militares e eclesiásticas” (RIHGRGS 1935, 179). O presidente Leonardo Macedônia encerrou o evento Congresso com um discurso para “comemorar o 1º Centenário da Revolução Farroupilha”, em que os integrantes do IHGRGS contribuíram com a comemoração dos “nossos maiores”. Segue Macedônia, que com a comemoração do primeiro Centenário da Revolução Farroupilha, promovida nesta capital pelo honrado Governo do Estado, e sob esse patrocínio, o Instituto tinha o dever de agenciar um congresso que constatasse a importância intelectual dos homens do Rio Grande e que fosse “um monumento erguido à glória dos farroupilhas”. Para Macedônia, “Essa foi, meus senhores, a contribuição do Instituto para a majestosa comemoração do Centenário Farroupilha, e ela ficará perpetuada, em breve prazo, e para glória da nossa geração, nos anais destinados a levar ao conhecimento de todo o Brasil a obra realizada por este Congresso” (RIHGRGS 1935, 187).
Macedônia finaliza seu discurso com uma analogia em que história magistra vitae e o presente do lugar social se misturam. Para ele, o Império Romano do Ocidente foi uma admirável edificação política; igualmente a França, que teve a obra da Grande Revolução a causar um novo aspecto em todo o planeta. Pois bem, para Macedônia o Império Romano do Ocidente tombou por terra, igualmente a constituição política, idealizada e concretizada pela obstinação do grande Corso, desmoronou. Entretanto, segue o autor, resistem as obras da inteligência, muito mais extraordinária que as conquistas militares romanas e francesas. Ele segue, que continuam a viver as duas obras que rememoram toda essa passada distinção, de Roma, e da França de Bonaparte: o Corpus Juris Civilis, símbolo duradouro do engenho romano, e o Código Civil Francês, que eternizaria o nome de Bonaparte: o Código Napoleônico. Logo,
Sinceramente, e sem falsa vaidade, sinto que o mesmo vai suceder com este congresso. A comemoração Farroupilha, ora realizada em Porto Alegre, será encerrada em breve prazo. As brilhantíssimas iluminações, que dão ao recinto da Exposição um aspecto grandioso, as festas venezianas, os bailes de gala, os banquetes, as recepções, e todas as festas que estão a encantar a nossa sociedade, serão em breve prazo uma agradável recordação de noites e de dias plenos de alegria e de deslumbramento. Mas as sessões deste Congresso, atestado certo e positivo e do trabalho intelectual da geração hodierna, perpetuadas com as teses e memórias nas páginas dos Anais, constituirão, sem a menor dúvida, um monumento digno da glória farroupilha que aqui estamos a comemorar. Assim, podemos dizer, com legítima ufania, que a obra deste congresso será de duração perene, e não será jamais esquecida (RIHGRGS 1935, 188).
Ao fim, Macedônia solicita que todos fiquem em pé, em reverência pelos “nossos maiores”, heroicos farroupilhas, com o reconhecimento da obra alcançada por eles. Entretanto, igualmente “com a maior admiração e entusiasmo pela nossa gente, que agora em 1935 tão dignamente comemora a grande Revolução, e trabalha, e progride, dentro do Brasil, íntegro” (RIHGRGS 1935, 188). Calorosas aclamações abrigaram a fala final do Dr. Leonardo Macedônia. Enfim, estava aberta a porta, isto é, o lugar social, por qual a Farroupilha se abrasileiraria.
A comemoração do centenário da Farroupilha não poderia passar sem uma produção historiográfica que marcasse a nacionalização da memória dos farrapos e legitimasse o poder de Vargas e dos revolucionários de 1930. A produção intelectual foi vasta na comemoração do centenário. Escolhi, para este artigo, a obra de Docca por representar a nacionalização da Farroupilha, por ser, entre os historiadores da comemoração, o grande polemista da obra de Alfredo Varella25, por estar umbilicalmente ligado ao IHGRGS e por estar nas redes políticas e intelectuais varguistas. Emílio Fernandes de Souza Docca nasceu, em São Borja, em 1884 e faleceu em 1945. Docca foi militar de carreira, sócio fundador do IHGRGS, membro do IHGB e pertenceu também, como era comum à época, à Academia Rio-Grandense de Letras. Para Armani (2012, 195), a obra de Docca se caracteriza “como a busca constante de uma identidade que refletisse o ‘caráter nacional’ do Brasil e, em particular, do Rio Grande do Sul” e foi um exemplar dos ideais do Estado Novo. Convocado por Osvaldo Aranha,26 quando da Revolução de 1930, Docca rejeitou seu apoio em nome da obrigação militar, por isso na continuação do movimento foi aprisionado. Contudo, para Gutfreind (1992, 66),
Afirmou-se que Souza Docca negou apoio à Revolução de 1930. Torna-se necessário esclarecer: negou apoio militar, coerente com sua visão de dever profissional, de inspiração positivista-comtiana; como historiador, porém, colaborou significativamente na construção dos propósitos revolucionários de 1930.
Assim, para compreender a obra de Docca é preciso averiguar em quais redes políticas e intelectuais, enquanto lugar social, ele estava inserido. Portanto, para Armani (2019) para entender a escrita de Souza Docca é importante salientar os lugares institucionais de onde produziu sua escrita: o exército e os diversos institutos por onde passou. Segue Armani (2019) que essa condição de intelectual e militar, lhe afastou, de uma cultura historiográfica do regional. Assim, Docca salientava o caráter nacional dos rio-grandenses. Também, para Armani (2019), é indispensável contextualizar a sua produção, caracterizada por uma aptidão de exaltar a sua profissão, o que seria importante para robustecer a própria identidade do exército no contexto de um nacionalismo em ascensão. Na maior parte de sua produção intelectual houve um cuidado invariável em alimentar a autoridade do exército e da nação. Mesmo sendo preso em 1930, logo se uniu- à Revolução de 1930, nela assumindo postos importantes devido às redes políticas e intelectuais que o varguismo lhe proporcionou. Em 1931 assumiu o posto de chefe do Serviço de Intendência em Recife. Em 1933 foi chefe de Gabinete da Diretoria de Intendência, em 1935 foi diretor do Serviço de fundos do Exército, em 1941, já como general, foi diretor geral do Serviço de Intendência. Também, Souza Docca participou de 15 instituições intelectuais no Brasil e no exterior (Armani 2019, 20-21).27
Assim, essas redes são pistas para entender o significado do livro aqui analisado, O sentido brasileiro da Revolução Farroupilha (1935). Nesta obra, Docca começa explicando o porquê de sua publicação: o aparecimento da História da Grande Revolução, do Dr. Alfredo Varella, em 1933, atribuindo aos farroupilhas a) ideias separatistas, sob b) o fundamento de que, no Rio Grande do Sul, nunca houve forte sentimento de brasilidade. Enfim, cabia ao autor, e outros historiadores do IHGRGS, a resposta a Varella.
A publicação da obra de Varella em 1933, levou Docca (1935) a travar uma controvérsia historiográfica e que ao mesmo tempo era política. As ideias históricas de Varella não eram novidades.28 Docca (1935) avisa que não as contestou antes, pois tais ideias “corriam por sua conta e risco”, em vários livros dispersos, mas Varella as reuniu, em 1933, em uma obra que rotulou com o nome História da Grande Revolução e conseguiu fazer com que ela fosse patrocinada pelo governo do Estado, com a promoção do IHGRGS.29 Para Docca, essa oficialização aparente, essa ligação do Estado (política) com a ideia (escrita) de Varella, aconteceria em detrimento da verdade histórica e, por isso, deveria ser combatida, porque, para Docca, essas ideias seriam depreciadoras dos sentimentos cívicos e da dignidade dos antepassados.30 Contudo, não se tratavasomente de um debate historiográfico, também era um embate político. Progressivamente Flores da Cunha foi se afastando de Vargas, até tornar-se seu principal adversário político. Se a obra de Varella foi publicada com o patrocínio do IHGRGS foi por causa de Flores em seu choque com Getúlio. Flores da Cunha é o grande responsável pela publicação da obra pelo IHGRGS, isto é, a nova divisão política que começou a existir na sociedade brasileira manifestasse no IHGRGS. O “retorno” das ideias de Varella sobre uma Farroupilha separatista e platina, vinham a calhar com o federalismo de Flores, assim, como vieram a calhar no início da República Velha.
Portanto, já no início de seu livro, ele deixa claro sua proposta de escrita articulada ao lugar social que emerge: o projeto nacionalista de escrita da Farroupilha. Ele quer “resgatar” a dignidade dos farroupilhas que fora manchada por Alfredo Varella. E, no ano da comemoração do centenário, isso não poderia ficar assim, a brasilidade dos farrapos não poderia estar em dúvida. De tal modo, no limiar do primeiro centenário da Farroupilha, Docca assinala que o IHGRGS recusou sua adesão às opiniões de Alfredo Varella a respeito da Farroupilha e, assim se manifestou, por unanimidade, contra o apregoado separatismo,31 isto é, o IHGRGS por pressão política de seus membros lançou uma nota que contestava as ideias de Varella. Precisava-se que o lugar legítimo de produção e operação do conhecimento histórico regional à época – IHGRGS – desse o seu veredito científico-político:
[O IHGRGS] tem reivindicado para os farroupilhas a integridade de um alto sentimento de brasilidade, sustentando que os dirigiu uma ideologia republicana-federativa, e que a proclamação do Seival, e a consequente independência da Província foi apenas um meio e não um fim (Docca 1935, 35).
E continua:
Esta oportuna declaração do Instituto Rio-grandense, provocada pelo Dr. Castilhos Goycochêa, em judiciosa carta ao seu presidente, firmou, de modo peremptório, criterioso e justo, o verdadeiro ideal dos farroupilhas e representa para nós, particularmente, um ato de íntima satisfação, porque nos deu ganho de causa na contradita que sustentamos contra as afirmativas do autor da História da Grande Revolução, na parte referente aquele ideal, que há mais de 20 anos vimos declarando que foi o mais decidido esforço em prol da república federativa do Brasil e, por isso, consubstancia um exemplo magnífico de civismo, impregnado de brasilidade pura (Docca 1935, 35).
Docca, esclarecendo a federação pela qual aspiravam os farroupilhas, deixa exposto que o movimento não era seccionista, e que não permitiria o “amesquinhamento” de seus sentimentos de brasilidade. Desse modo imperativo, ele fez-se um combatente contra a tese separatista sobre a Farroupilha.32 Também, ao contrário de Alfredo Varella, que vê fingimento em Bento Gonçalves33 quando este nega as intenções separatistas, ao contrário, Docca confia na pureza de suas afirmativas.
Além de usar argumentos epistêmicos, Docca desfere um ataque direto a Varella, baseando-se em questões de ordem moral, isto é, homens de bem não poderiam sustentar que a Farroupilha fosse separatista, pois isso extrapolava o caráter científico da história e só poderia ter sido escrito por alguém tomado por violenta paixão e não haveriam documentos para comprovar essa hipótese apaixonada. Assim, para Armani (2012, 198),
Em momentos de ritualização rememorativa e comemorativa do passado, quaisquer manifestações dissonantes eram peremptoriamente solapadas, afastando o perigo da pureza imaginária da identidade. Aqueles que contestavam a unidade nacional, a pacificidade dos brasileiros e a brasilidade dos rio-grandenses eram tachados como autores cuja promiscuidade com paixões políticas era evidente. Os detratores da pátria eram, nesse sentido, abominados. Foi o caso, por exemplo, de um “profanador” das “verdades sagradas”: Alfredo Varella.
Para Docca a ação separatista de 1836 foi um expediente e que jamais foi para os farroupilhas o fim do movimento.34 Desse modo, errariam, para Docca, os que impressionados por esse ato consideram-no como a causa da revolução, quando o regime federativo sob a bandeira do Brasil era a finalidade dos farroupilhas. Se Varella achava que a História da Grande Revolução era um “edifício comemorativo erguido sob os auspícios do Instituto Histórico do Sul”, Docca as rejeita: “o Instituto não subscreve, não endossa, não aceita as ideias separatistas do dr. Alfredo Varella” (Docca 1935, 59).35 Assim, nega a credibilidade de Varella, por este não contar com o apoio do IHGRGS, isto é o lugar institucional da escrita da história àquele período,
Quem animado de boas intenções, com a inteligência ao serviço da verdade e da justiça, estudar a cruzada farroupilha, há de verificar que nunca turbaram no ânimo dos rio-grandenses o sentimento de brasilidade; que esse sentimento foi mantido íntegro e sublime, em todas as fases da luta. O ato separatista, como simples recurso que foi, para atingir a finalidade da Revolução, não podia ter, como não teve, forças para romper os laços sagrados e vigorosos da união psíquica em que vivemos e que tem mantido a integridade do Brasil, que não é um milagre, como se tem dito, e sim, fruto da alma de uma raça […] A verdade histórica, amparada nos fatos e nos documentos, desautoriza a afirmativa dos que negam sentimento de brasilidade aos rio-grandenses do sul. Esses sentimentos têm como penhor seguro, sincero, forte, indestrutível, o heroico sacrifício de sangue, no mais alto grau, em todas as lutas externas da nacionalidade (Docca 1935, 59-60, grifo meu).
Para Docca (1935, 61), a “história ardente da integração nacional do território brasileiro” espanta a lenda fria da separação, assim, o azinhavre separatista nunca ofuscou o fulgor da Farroupilha. Assim, a República Federativa para o Brasil –que segundo Docca seria a intenção dos farroupilhas– era a condição para a paz e não à separação: “Onde é evidenciado o espírito de brasilidade da Revolução” (Docca 1935, 67). Docca pede que “perdoemos a ignorância” de alguns inspirados por paixões políticas ou partidárias, mas “combatamos, até a destruição completa, o iscariotismo de um falso apóstolo de nosso passado de um pseudo glorificador ‘da energia nacional ao serviço da Pátria’” (Docca 1935, 70).
Segundo Docca, é desolador que se dê ouvidos a Varella, este que analisaria pelo prisma da paixão e que desprezaria a consciência, pois nos “distúrbios de uma paixão que o atropela, não teve olhos para ver, nem coração para sentir” (Docca 1935, 94) as revelações de uma raça que “é um elemento estável da vida do homem, atua sobre o indivíduo e sobre as massas humanas, unificando povos, criando nacionalidades” (Docca 1935, 94). Para Docca (1935, 101), Varella sofre de um platinismo imaginário e, assim, empreende tal erro induzido pela observação introspectiva que expressa sua mentalidade e não o sentir dos rio-grandenses. Enfim, Docca passa boa parte do livro desacreditando a obra histórica de Varella, tanto com argumentos historiográficos como com argumentos de orem moral e política. Também, a obra de Varella deveria ser destruída, pois ela representava um outro lado da contenda política contra o varguismo: Flores da Cunha.
Para Docca, a causa de fundo da Farroupilha (nessa época a denominação Revolução Farroupilha, como ela ficou mais popularmente conhecida, ganha a linguagem comum e científica) era o federalismo. Haveria, no século xix, segunda Docca (1935), a ideia de federalismo que impulsionaria as ações dos personagens históricos em busca da liberdade. Assim, como consequência da independência do Brasil, nasceu a ideia federativa. A dissolução da Câmara em 1823 impulsionou tal vontade política e a marcha federativa teve partidários no Rio Grande do Sul. Para Docca (1935), a Confederação do Equador,36 em 1824, apesar da designação, propunha a federação. Com isso, quer mostrar que o federalismo tinha raízes no Brasil e que, portanto, a Farroupilha tinha antecedentes brasileiros, não surgindo do liberalismo platino. Assim a promoção em prol da federação brasileira só aumentou. Para Docca (1935) é a ideia de federação que em 7 de setembro dá início à abdicação de D. Pedro I. Além, disso, o autor buscando as origens do federalismo na Farroupilha vai buscar como exemplo a Constituição dos Estados Unidos da América do Norte,
Eis em um relance, de modo geral, concretizada nos fatores culminantes a ideia federativa, a expansão dessa ideia no Brasil. Verdadeira aspiração política. A tese que defendemos: a filiação do movimento farroupilha aos antecedentes históricos no Brasil, em prol da República Federativa, tendo como modelo a constituição da Filadélfia (Docca 1935, 9).37
Para Docca, o conceito de federação entre os farroupilhas era claro. Os farroupilhas ambicionavam a federação brasileira, adotando como modelo a constituição dos Estados Unidos da América do Norte.38 Ele mostra que os farroupilhas eram leitores de John Locke, Montesquieu e admiravam a Constituição Americana.39 Para Docca, é importante não confundir os dois conceitos: confederação e federação.40 Era o federalismo clássico que os farroupilhas aspiravam desfraldar no Brasil, não existindo filiação platina, entendia Docca que “Tão grande era a afinidade, a concordância das ideias dos rio-grandenses com seus irmãos brasileiros que a república do Piratini era o berço histórico das aspirações federalistas do Brasil em geral” (Docca 1935, 14).41
Após mostrar para o leitor como era conceituada a federação e qual o modelo de federação dos farroupilhas, Docca passa por mais de dez páginas a comprovar suas assertivas. Isto é, primeiro encontra um modelo do que seria a federação para os farroupilhas e, depois, começa a testá-lo,42 assim, “Dessas provas documentais e por outros fatos é que asseveramos a comunidade de ideias entre os filhos do Rio Grande do Sul e os das demais províncias brasileiras e repelimos a pretensa filiação platina” (Docca 1935, 15). Docca (1935) acredita ter demonstrado que o movimento de 1835 girou em volta da brasilidade e não tem o platinismo que lhe é imposto e, muito menos, constitui um reflexo das revoluções cisplatinas, como pretende a interpretação de Varella.43 Assim, os farroupilhas teriam sido o mais heroico esforço em prol da República Federativa do Brasil, e que, de forma alguma, eram os farroupilhas separatista.
Segue Docca que não havendo o apelo em nome da Federação Brasileira encontrado eco nas demais Províncias, optaram os farroupilhas por terminar a guerra. Assim, a filiação mais platina que luso-brasileira de Varella é “simplesmente imaginativa, mera ficção, desautorizada pelos fatos e pelos principais homens de decênio heroico” (Docca 1935, 104). Então, segundo Docca, seria preciso abolir a lenda, a invencionice da influência platina no modo de ser e nas aspirações políticas dos rio-grandenses.
Contudo, cabe perguntar: se é evidente que qualquer agenda nacional do Farroupilha foi enfatizada, por que Docca destacaria o federalismo? Pois, pode ser usado contra a acusação de separatismo, mas também é inconciliável com o centralismo de Vargas. A reposta, novamente, encontramos em Love (1975). Aqui seguimos o argumento do autor como uma hipótese explicativa. Ele alega que com o fim da Farroupilha e do movimento praieiro em 1840 a busca de autonomia provincial, relacionada ao federalismo, esmoreceu até a publicação de Manifesto Republicano de 1870. Só a constituição de 1891 inseriu os princípios federalistas de 1870. O federalismo fora uma expressão do liberalismo triunfante no período. Contudo, a partir de 1930, as transformações econômicas produziram novos conflitos políticos no Brasil. A industrialização estimulou a migração interestadual, as comunicações e transportes inter-regionais e a busca de mercados internos. Para Love (1975) a expansão de uma força de trabalho urbana e alfabetizada e sua reação aos acenos populistas abrandaram a relevância do coronelismo e causaram uma modificação do procedimento político. Assim, o modelo da conduta política, o regionalismo e a sua expressão política –o federalismo– recuaram depois de 1930, quando novas demarcações surgiram na política brasileira. Para Love a “questão social” passou a ressaltar-se na década de 1930 e os novos partidos eram baseados mais nas classes sociais do que em áreas geográficas. Assim, para Love (1975, 269) “Vargas, contudo, aprendeu rapidamente suas tarefas e logo se libertou do regionalismo”, isto é, logo se desenvencilhou do federalismo. Entretanto, na metade da década de 1930, Vargas encontrou uma nova ameaça, vinda de seu antigo companheiro Flores da Cunha. Este tomou, para si, o papel de proteger o governo constitucional e a conservar o sistema federativo e, desse modo, para Love “Getúlio Vargas, o regionalista que defendera a democracia liberal e o federalismo nos últimos anos da década de 1920, havia-se tornado um centralista e nacionalista de tipo autoritário” (1975, 274). Em 1937 era implantado o Estado Novo. Assim, quando Docca publica seu livro em 1935, o que hoje pode parecer incongruente –a defesa do federalismo (por Docca), naquele período (em especial, em seu livro, no ano de 1935)–, na verdade a época não o era, pois o lugar social de Docca ainda estava poroso e aceitava a defesa do federalismo, mesmo nas hostes intelectuais de Vargas, pois a ida de Vargas e seus grupo político para o centralismo foi um processo ao longo da década de 1930, no qual o próprio Docca fez parte apoiando e legitimando o golpe que inaugurou o Estado Novo (Armani 2019, 19).
Para Souza Docca (1935) muito se tem escrito e muito se tem exagerado sobre a cooperação estrangeira na Farroupilha: Tito Livio Zambeccari,44 Giussepe Garibaldi45 e Luigi Rossetti46. Segundo Docca, para manter a brasilidade da Farroupilha, necessário seria que nenhum elemento estrangeiro se sobrepusesse ao elemento nacional. Segue Docca, que a ninguém é lícito menosprezar a colaboração de Zambeccari, mas a verdade histórica repeliria a atuação primacial que lhe foi atribuída. É inaceitável, para Docca, a inferência de que ele foi o pai espiritual da revolução. Assim, o autor, nega à Zambeccari: a) preponderância na Farroupilha; b) autoria no manifesto de 25 de setembro; c) que fosse estrategista; d) mentor de Bento Gonçalves; e) que fez a bandeira farroupilha; f) e não foi desterrado, nem deportado, tampouco seguiu para Europa com pesar dos amigos. Zambeccari foi anistiado e retornou à Europa por seu desejo. Ficava, assim, para Docca, desfeito mais um truque de Varella, ao querer promover o Conde Bolonhês acima dos brasileiros.
Sobre Garibaldi, ele afirma que ele batalhou com os farroupilhas, não fazendo o mesmo, na luta das ideias. De acordo com Docca (1935), foi censurável que não tivesse se associado no ideal farroupilha, mas, “Cumpre-se glorificá-lo, entretanto, tem-se levado ao excesso, endeusado e fantasiado os serviços de Garibaldi e com o esquecimento dos nossos antepassados” (Docca 1935, 135). Para Docca, inventou-se uma fábula que Garibaldi não necessitava para ser emoldurado entre os heróis farroupilhas. Entretanto, autores têm levado Garibaldi a ter mais importância que os brasileiros, assim, o que visa Docca (1935, 138) “é reivindicar as glórias de nossos maiores, que têm o direito de nosso culto inabdicável, de nossa veneração consciente, sincera e sagrada”.
O mesmo valeria para Rossetti. Docca (1935) quer destituí-lo de duas referências: a) mentor da administração da República e b) redator efetivo do jornal O Povo. Assim, segue que “as duas afirmativas transcritas estão a exigir duas reivindicações [...] não devendo por isso continuarem à revelia da verdade histórica. Além disso, tais afirmativas roubam grande parte do esforço e da glória dos nossos maiores” (Docca 1935, 138).
Assim, segue o autor, não necessita persistir-se contra a verdade histórica, pois tais afirmativas defraudariam o amplo esforço e a honra de “nossos maiores”. Enfim,
Estamos às portas do centenário da Grande Revolução e não é justo, não é digno, que se comemore esse feito extraordinário, menosprezando seus legítimos heróis […] Não consintamos que desses heróis se roubem ou se ofusquem suas glórias […] O historiador não tem o direito de criar heróis segundo suas simpatias, porque a história não se inventa, visto que ela é nobre e merece crédito quando os que a cultivam são orientados pela “vontade firme e perpétua de dar a cada um o que lhe pertence” (Docca 1935, 143).
Docca (1935, 143) pede que se aplauda aos três ilustres italianos, mas “cantemos as nossas hosanas em louvor dos verdadeiros heróis farroupilhas”. Também, solicita que “glorifiquemos” esse povo que se afeiçoou às ideias “pregadas pelos evangelizadores da democracia” (Docca 1935, 143). Assim, o povo ter-se-ia aliado com os homens de ideias, batalhado pela República Federativa sob o pavilhão brasileiro.
Para Docca, o bem supremo, a grandeza do Brasil, deve esse serviço à Farroupilha:
Brasileiros acima de tudo. A Revolução Farroupilha não foi, pois, um elemento funesto à integridade do Brasil, ao contrário, contribui para a consolidação dessa integridade […] por isso, comemorar o primeiro centenário dessa revolução é comemorar um dos maiores feitos da nacionalidade, um dos mais belos anseios em prol do regime democrático. […] É tempo e é a ocasião de nos elevarmos acima das paixões e fazer justiça aos farroupilhas. Rendamos um culto fervoroso e consciente a esses heróis esquecidos e até menosprezados. Sejamos dignos de possuir o patrimônio glorioso que eles nos legaram, dignificando-os (1935, 146).
Desse modo, pode-se ressaltar, a partir do lugar social de 1920 e 1930, como observou Hartog (2013, 183), “em certos momentos-chave, o passado (qual passado e o quê do passado?) fora retomado no presente, para fazer dele um passado significante”. Isso acontece no centenário da Farroupilha, um momento-chave da política nacional em que Vargas e seu grupo político tinham que se justificar no poder nacional. O lugar social nacionalista do período foi usado para articular a Farroupilha aos propósitos políticos dos revolucionários de 1930.
Assim, Docca ofereceu o federalismo como norte da Farroupilha, com pouca importância dos estrangeiros e escrevia em um momento de nacionalização do regional. E, assim, no decorrer do ano de 1935
em que transcorre o primeiro século do grandioso e patriótico feito farroupilha, a nossa primeira contribuição, como simples achega para as comemorações desse centenário e como homenagem de mais alta admiração e de fervente culto à memória dos grandes vultos de nosso passado, que agiram como rio-grandenses e pensaram sempre como brasileiros (Docca 1935, 4).
Por isso, uma necessidade maior e imperiosa de mostrar a brasilidade dos farrapos, portanto, em Docca (1935), por mais que Rio Grande do Sul tenha um meio geográfico diverso, o fundamento da justificação da Farroupilha e de sua brasilidade era a “união psíquica” entre os brasileiros, isto é, a “alma de uma raça” seria anterior a qualquer diferença geográfica e, logo, o federalismo da Farroupilha chega pela “união psíquica” dos brasileiros, agora vinculada, a partir do lugar social, ao projeto político varguista.
Para Hartog (2013), a comemoração inclui a ausência, a presença do invisível, a presença daquele que nunca se pode parar de lembrar. O centenário da Farroupilha foi uma comemoração do passado que se torna heroico, que não se pode esquecer, a celebração da nacionalização da Farroupilha e, finalmente, o atrelamento da memória regional à nacional. O momento político é propício para a Farroupilha nacionalizada, ou à brasileira. E tal processo encontrou instituições, intelectuais e um lugar social propício à sua criação e divulgação. A escrita da história no centenário recriou uma Farroupilha como um elemento da constituição da nação brasileira. A comemoração do centenário tem este duplo enganche: nacionalização da história e da memória da Farroupilha e luta política em nível nacional. Não mais como no século xix, ou como em Varella e Maya, em que a Farroupilha era usada como uma forma de autonomia econômica e política na vida nacional. Portanto, em 1935, no centenário da Farroupilha, a construção da memória a partir da escrita da história e das injunções políticas, fez o lugar social aparecer e transbordar no livro de Souza Docca.
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Recebido: 14.07.2021 Versão reformulada: 04.09.2021 Aprovado: 10.12.2021
1 Outras denominações pela qual a Farroupilha é conhecida.
2 Nome do atual Estado do Rio Grande do Sul.
3 Sobre o IHGPSP ver: Boeira (2009).
4 Sobre o IHGB ver: Guimarães (1995) e Guimarães (2011).
5 Ver a obra de Araripe sobre a Farroupilha (1986) e, também, comentaristas da obra de Araripe sobre a Farroupilha: Antoniolli (2019) e Hruby (2012).
6 Sobre a crítica e os limites dessa obra de Gutfreind, ver: Nedel e Rodrigues (2005).
7 No período do centenário da Farroupilha, houve uma demanda editorial sobre o tema, capitaneada pela editora O Globo. A demanda foi tanto em historiografia como em literatura. Ver: Roque Callege Revolução dos Farrapos, o poema histórico A Revolução Farroupilha de Adalberto Machado dos Santos, Celso Schröder, em O Decênio Farroupilha em São Gabriel. Outras obras também forma publicadas com o objetivo de comemorar a Farroupilha: Alma Gaúcha de Zeferino Brasil; de Othelo Rosa Vultos da Epopeia Farroupilha e Os Amores de Canabarro; De Paranho Antunes Episódios e Perfis de 1835; Bento Manoel Ribeiro: Ensaio histórico de Olyntho Sanmartin; História da República Rio-Grandense: (1835-1845) de Dante de Laytano; Guerra dos Farrapos de Castilhos Goycochêa; A Revolução Farroupilha (1835-1845): narrativas sintética das operações militares de Augusto Tasso Fragoso; Farrapíada de Aurélio Porto, A Revolução Farroupilha de Walter Spalding, Spalding produziu uma farta obra sobre a farroupilha que vai da literatura à história. Outro livro desse período do centenário é Farrapos! História, em contos, da Revolução Farroupilha. Depois, esse livro foi desmembrado em dois. Mansueto Bernardi durante as décadas de 1920 e 1930 escreveu em jornais e na revista do IHGRGS vários artigos sobre a Farroupilha, depois reunidos em sua Obras completas. O sexto volume contém os seus artigos sobre a Farroupilha. O Sentido e o Espírito da Revolução Farroupilha de J. P. Coelho e Souza, secretário da educação do Rio Grande do Sul, mesmo sendo publicado só em 1944, é o seu discurso pronunciado na sessão solene da Assembleia Legislativa, em 20 de setembro de 1935. Em sua maioria, três pontos perpassam todas as obras: a) a brasilidade da Farroupilha; b) o não separatismo da revolução; e c) o seu federalismo.
8 Apolinário Porto Alegre (1844-1904) foi um romancista, historiador e jornalista sul-rio-grandense.
9 Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938) foi um político e historiador sul-rio-grandense. Inicialmente foi ligar ao PRR e Júlio de Castilho, mas ainda na década de 1890 foi para a posição ligada aos federalistas.
10 Alfredo Augusto Varella de Vilares (1864-1943) foi um político, diplomata e provavelmente o mais importante historiador sul-rio-grandense da República Velha. Inicialmente ligado PRR, na primeira década do século xx vai para a oposição. Sua obra sobre a Farroupilha destaca o separatismo dos farroupilhas e sua ligação política e geofísica com o Prata.
11 Alcides de Castilho Maya (1878-1944) foi um jornalista, romancista e político sul-rio-grandense. Ao contrário dos personagens anteriores começou sua carreira política no Partido Federalista de oposição ao PRR, mas, na década de 1910 passou a integrar o PRR. Ao tratar da polêmica mantida entre Rubens de Barcelos e Paulo Arinos (Moysés Vellinho) em torno da obra de Alcides Maya, Chiappini (1978) aponta que a nova geração de literatos, a qual pertencia Arinos, negava-se a aceitar a visão do gaúcho em ruínas, popularizada na obra de Maya.
12 Platinismo refere-se a região do Prata, isto é, a espaços que sofrem a atuação do rio da Prata, seus afluentes e de sua bacia hidrográfica, mormente ao que hoje é a Argentina, Uruguai e Paraguai, países no qual o Rio Grande do Sul é limítrofe. Atualmente o Rio Grande do Sul e o Paraguai não fazem fronteira, mas antes da Guerra do Paraguai, a atual região de Missiones era disputada entre a Argentina e o Paraguai. Varella defendia que a Farroupilha tinha como principal influência os acontecimentos platinos, isto é, acontecimentos não brasileiros, ao contrário de Souza Docca e da geração nacionalista de 1920 que construíam uma genealogia brasileira para a Farroupilha.
13 Como era denominada a predominância do Estado de São Paulo e do Estado de Minas Gerais na política nacional.
14 É importante ter em conhecimento que com o fim do IHGPSP durante a Guerra do Paraguai, a Província, depois o Estado do Rio Grande do Sul ficou, sem um instituo historiográfico até a fundação do IHGRGS.
15 Gutfriend (1992, 24) conta a presença de alguns ilustres.
16 A 18 de junho de 1944, a nova sede da Academia Rio-Grandense de Letras é a sede do IHGRGS.
17 Antônio Augusto Borges de Medeiros (1863-1961) foi um político sul-rio-grandense, eminência parda do PRR após a morte de Júlio de Castilhos. Também, foi presidente do Rio Grande do Sul por 25 anos.
18 Protásio Antônio Alves (1859-1933) foi médico e político do PRR. Foi duas vezes vice-presidente do Rio Grande do Sul. Foi secretário do interior de 1906 a 1928.
19 Gutfreind (1992, 24) lista as autoridades presentes na solenidade de fundação do IHGRGHS.
20 Partido Republicano Rio-Grandense (1882-1929). Surgiu no fim do Império com vistas a trabalhar pela República. Por toda a República Velha foi o partido dominante no Rio Grande do Sul.
21 Maragato eram como eram denominados os federalistas e chimango era como eram denominados os integrantes do PRR.
22 José Antônio Flores da Cunha (1880-1959) foi um político, militar sul-rio-grandense. Foi interventor e governador do Rio Grande do Sul. Em 1930 esteve ao lado da Revolução, em 1932 ficou ao lado de Getúlio Vargas, mas, a partir de 1935 começou a se afastar de Vargas, sendo exilado no Uruguai em 1937.
23 Na Revista do IHGRGS (1935, 165) estão citadas as autoridades presentes nesta solenidade. A revista do IHGRGS era composta por uma comissão de redação. Quem compunha esta comissão era: Adroaldo Mesquista da Costa, Othelo Rosa, Emilio Fernandes de Souza Docca e Eduardo Duarte.
24 Júlio Prates de Castilho (1860-1903) foi o grande líder político do PRR. Demétrio Nunes Ribeiro (1853-1931) foi um político e engenheiro. Foi um dos fundadores do PRR. João de Barros Cassal (1858-1903) foi político, jornalista e membro do PRR.
25 Varella é o grande construtor de uma Farroupilha platina no período da Primeira República (Silva 2010).
26 Osvaldo Euclides de Sousa Aranha (1894-1960) foi um político e diplomata. Membro do PRR, foi o articular da Aliança Liberal em 1929, foi um dos organizadores da Revolução de 1930.
27 Aqui é importante salientar que se necessita de mais pesquisas sobre a rede política de Souza Docca, o pouco que há se encontra em Gutfreind (1992) e Armani (2019). Outra pesquisa importante que necessitasse fazer (e que não existe) é um estudo sobre as relações de Souza Docca com Getúlio Vargas. Uma coincidência é que ambos nasceram em São Borja, Getúlio em 1882 e Docca em 1884.
28 Na introdução da História da Grande Revolução, assim inicia Varella (1933 v. 1, 7): “A presente obra, conquanto inclua extraordinárias, copiosíssimas novidades, reproduz, mutatis mutantis, o que se contem noutra, ainda então inacabada. Para definir a nova com rigor, cumpre dizer que tão somente representa um quadro mais elucidativo, mais nítido, mais perfeito, sobretudo mais completo, mais erudito; do que foi traçado em ‘Revoluções Cisplatinas’”.
29 Sobre a querela envolvendo a publicação da História da Grande Revolução, com apoio estatal e do IHGRGS, ver Silva (2010), capítulo “A polêmica ao redor da História da Grande Revolução”.
30 “O resultado de nossa atitude aí está: O instituto proclamou, por unanimidade, como se há de ver para diante, que não concorda, absolutamente, com aquelas ideias, as quais, o Dr. Varela, jeitosamente, deixava transparecer haverem merecido o beneplácito daquela douta instituição” (Docca 1935, 3-4).
31 Uma das grandes polêmicas em torno da obra de Varella e da Farroupilha era se ela foi separatista ou não, isto é, se a intenção dos farroupilhas era criar um Estado-nacional autônomo ou se apenas queriam um Brasil federalista e republicano. Varella defendia a tese do separatismo dos farrapos o que era contestado por Docca e a geração nacionalista da década de 1920.
32 Docca cita vários autores que contestam a tese separatista. Como na questão do federalismo, Docca usa vários autores, porém, no separatismo usa um em especial, Getúlio Vargas. Eduardo Duarte, secretário perpétuo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, assim explicou em relatório a não concordância do Instituto com as ideias de Varella: “A publicação foi feita e entregue ao governo do Estado. É de notar, entretanto, que o Dr. Varella em certos pontos de vista divulgados em seu afanoso trabalho, nem sempre encontrou o apoio de muitos de nossos consócios. O fato, porém, não tem a importância que se lhe queira emprestar, com menoscabo para o Instituto, pois que este apenas patrocinou a publicação, não querendo com isso dizer que esposava as ideias do autor” (Duarte apud Docca 1935, 50). A voz oficial da história no Rio Grande dava sua sentença.
33 Bento Gonçalves da Silva (1788-1847) foi um militar e estancieiro sul-rio-grandense e o grande líder da Farroupilha.
34 Em 20 de setembro de 1836 é proclamada a República, assim, a província de São Pedro do Rio Grande do Sul separava-se do Brasil.
35 “O Dr. Castilhos Goycochêa, com quem eu ainda não tinha relações pessoais, provocou sobre o assunto manifestações daquela douta instituição e daí o parecer dado por uma comissão nomeada para esse fim, onde se lê: ‘Em referência à debatida tese do separatismo, nenhuma dúvida pode existir, quanto à orientação do Instituto’. ‘Naquelas publicações, que envolvem a responsabilidade da casa; nas suas solenidades e comemorações; na palavra de seus interpretes oficiais, o Instituto tem reiterada e sistematicamente negado o seu apoio a essa opinião, esposada pelo Dr. Alfredo Varella, de que houvesse, no espírito dos revolucionários de 1835, a ideia da separação do Rio Grande do Sul, da comunhão nacional’” (Docca 1935, 59).
36 Foi um movimento de caráter republicano e separatista que emergiu no dia 2 de julho de 1824 em Pernambuco e que se espalhou para outras províncias do Nordeste do Brasil.
37 Com o exemplo do federalismo da constituição dos Estados Unidos da América, Docca quer afastar o debate dos farroupilhas sobre qual modelo político seria o ideal dos debates platinos sobre a constituição do Esta-nacional, assim, Docca vai buscar no debate sobre o federalismo estadunidense uma linhagem intelectual para a Farroupilha.
38 “Para o Dr. Alfredo Varela […] aturdido por aquela paixão, e vendo tudo que é sul rio-grandense através de seu uruguaiofilismo, empresta aos nossos antepassados o errôneo ou confuso conceito de federação, corrente nos países platinos, na primeira metade do século passado […] O conceito do sistema federativo entre os farroupilhas não tinha dubiedade que o Dr. Varela menciona” (Docca 1935, 9-10).
39 Pode-se considerar que Docca faz uma história das ideias sobre federalismo entre os farroupilhas.
40 Para isso, Docca usa várias autoridades para justificar seu argumento, como se a autoridade e não a pesquisa histórica definisse o sentido do conceito.
41 República do Piratini, é uma das maneiras pela qual ficou conhecida a República fundada pelos Farroupilhas.
42 Para comprovar, cita artigos de vários jornais, faz isso entre as páginas 15 e 25 de seu livro.
43 “Foi o Dr. Alfredo Varela quem, ao serviço de sua brasilofobia e abusando da autoridade de seu nome como historiador, tentou nimbar a brasilidade dos rio-grandenses, negando que a cruzada farroupilha visasse a federação brasileira […] O autor separatista não fez prosélitos entre os estudiosos, mas tem sido auxiliar dos interessados, por explorações políticas, em desprestigiar, aos olhos do grande público, aos sentimentos de patriotismo dos rio-grandenses. Os historiadores sinceros, os historiadores sem disfarce sem ideias preconcebidas que tem meditado sobre o assunto, afirmaram sempre e continuam afirmando o que o retovado procura negar” (Docca 1935, 26).
44 Tito Livio Zambeccari (1802-1862) era um carbonário que lutou nos levantes revolucionário europeus de 1821. Chega em 1926 em Montevidéu e posteriormente participou da Farroupilha.
45 Giussepe Garibaldi (1807-1882) fez parte do movimento Jovem Itália, em 1834 fez parte do levante de Gênova que fracassou, condenado à morte migra para a América do Sul. Conheceu Bento Gonçalves na prisão do Rio de Janeiro, posteriormente fundou a esquadra marítima farroupilha. Garibaldi foi um dos líderes da unificação italiana. Ele é conhecido como o “herói de dois mundos”.
46 Luigi Rossetti (1800-1840) foi carbonário vinculado a Jovem Itália. Participou do levante de Nápoles em 1821. Depois, veio refugiado para a América do Sul. No Rio de Janeiro conheceu Garibaldi e se juntou à Farroupilha.