DOI: 10.18441/ibam.22.2022.79.7-11
Teresa Pinheiro
Technische Universität Chemnitz, Alemanha
teresa.pinheiro@phil.tu-chemnitz.de ORCID-iD: https://orcid.org/0000-0003-2887-0449
Quando a 25 de abril de 1974 representantes do Movimento das Forças Armadas (MFA) entraram no quartel do Carmo em Lisboa para receber a capitulação de Marcelo Caetano, caía em um só dia a mais longa ditadura do século xx da Europa Ocidental. Ao sair à rua em apoio aos militares, a população portuguesa transformava de forma decisiva um golpe de estado numa verdadeira revolução. Perante uma opinião pública internacional apreensiva, o programa do MFA punha fim de forma inequívoca a 48 anos de ditadura e abria caminho para o processo de descolonização e democratização do país. No entanto, o que se seguiu à revolução esteve longe de ser um processo linear de democratização. Se a queda da ditadura se tornou rapidamente consensual entre vastas faixas da população e do espectro político, as divergências sobre o caminho político a seguir dividiram o país durante dois anos, marcados por instabilidade política e social, com fortes oposições partidárias, manifestações, nacionalizações, ocupações de terras e fábricas e dois golpes de Estado.
Durante os dois anos que se seguiram ao 25 de abril de 1974 – o chamado Processo Revolucionário em Curso (PREC) – a rutura ideológica com a ditadura do Estado Novo foi acompanhada de uma febril atividade de condenação do antigo regime. Em sintonia com o carácter revolucionário –e ao contrário da vizinha Espanha–, Portugal viveu durante este período uma importante fase de condenação da ditadura, através de modalidades tão distintas como processos judiciais a membros da polícia política PIDE/DGS, a substituição de elites do antigo regime, movimentos cívicos (Pinto 2013) e aspetos mais simbólicos como foram a destruição ou vandalização de monumentos e mudanças na toponímia dos espaços urbanos (Pinto 2010). Em apenas dois anos as referências simbólicas mudavam, com a supressão de nomes dos chefes de Estado da ditadura e a inscrição de referências democráticas no palimpsesto tanto das grandes urbes como dos espaços rurais. Fizeram parte deste processo também instrumentos inovadores para a época como a Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista, criada em 1977 para investigar os crimes cometidos durante o regime ditatorial e que se pode considerar uma das primeiras comissões de verdade da chamada terceira onda de democratização (Huntington 1991; Raimundo e Rebelo 2019).
A entrada em vigor da constituição e as eleições legislativas e presidenciais de 1976, que deram a vitória aos partidos moderados de centro e esquerda, marcaram o fim definitivo da experiência revolucionária portuguesa e abriram caminho para a democracia pluripartidária e liberal de encaixe europeu vigente hoje em dia no país. Esta chamada normalização política e o consenso necessário à estabilização política do país conduziram ao abandono das práticas mais radicais de justiça transicional e políticas de memória, com a diminuição de processos de lustração e a reabilitação de funcionários públicos. Ao mesmo tempo, a modernização económica do país e a integração europeia forjavam uma nova identidade nacional, que olhava para o futuro com confiança. Neste rápido processo de transformação económica e social, o Estado não criou instituições que permitissem a transferência de memória às gerações vindouras, nascidas já em democracia. Depois da catarse coletiva do período revolucionário, a memória do passado foi-se desvanecendo (Pinheiro 2018).
Residirá neste silêncio coletivo a ambiguidade dos fenómenos memorialísticos da atualidade? Apesar da aparentemente exemplar condenação do passado ditatorial durante o período revolucionário, a sociedade portuguesa tem vindo a conhecer nas últimas duas décadas fenómenos contraditórios. Se é verdade que o chamado espírito de abril continua vivo, como o demonstraram as inúmeras referências simbólicas ao período revolucionário durante a crise financeira e económica dos anos 2010 a 2014 –de que o grande mural de Salgueiro Maia na central Avenida de Berna é um dos ícones mais plásticos–, também é certo que fenómenos revisionistas e de branqueamento da figura de Salazar e da ditadura do Estado Novo perturbam ocasionalmente o consenso democrático pós-25 de abril. A eleição de Salazar como o maior português de sempre num programa televisivo, em 2007, biografias benévolas de Salazar ou a controvérsia desencadeada pelo projeto de museu dedicado ao ditador são exemplos reveladores do recrudescimento de visões encomiásticas do passado ditatorial.
Com a distância histórica de mais de quarenta anos, o período revolucionário português tem vindo a ser objeto de renovado interesse por parte das ciências sociais e humanas, que têm contribuído para um melhor entendimento de uma das épocas mais conturbadas e complexas da história contemporânea de Portugal.1 Uma das conclusões que a perspetiva histórica e comparada permite é a de que, apesar do ambiente crispado que se viveu entre abril de 1974 e abril de 1976, o período revolucionário foi decisivo na reconstrução política do país, ao consolidar as bases ideológicas da democracia em Portugal, assentes na condenação de regimes autoritários e na aposta pelo pluripartidarismo das democracias ocidentais.
O presente dossier inscreve-se nesta busca de um entendimento diferenciado do processo de transição democrática em Portugal, reunindo investigações originais em torno a dois eixos fundamentais para o entendimento desse período fulcral da história portuguesa contemporânea. Por um lado, a necessidade de entender a transição democrática em Portugal no contexto internacional da guerra fria, tendo em conta não só as ações políticas das grandes potências, mas também a diplomacia cultural de minor players no xadrez mundial, como a RDA ou o Brasil. Por outro lado, a premência de atentar não apenas em processos políticos, mas também nas políticas de memória adotadas pelos governos provisórios e por movimentos sociais mais ou menos politizados.
A contribuição de Rainer Bettermann e Ana Troncoso Salazar, debruça-se sobre uma faceta quase desconhecida da política internacional do Portugal revolucionário, nomeadamente as relações entre Portugal e a República Democrática Alemã através do trabalho cultural levado a cabo pela Associação Portugal-RDA nos primeiros anos após o 25 de Abril de 1974. A partir das perspetivas teóricas da entangled history e da guerra fria cultural, os autores analisam o papel desempenhado pela Associação na criação de uma entangled memory sobre o socialismo num momento crucial para a redefinição política do Portugal pós-ditatorial.
Enquanto a RDA via em Portugal uma possibilidade de intervenção internacional em prol do ideário socialista, no Brasil da ditadura militar a viragem revolucionária era vista com especial apreensão. Como demonstra Enio Viterbo Martins, os órgãos de inteligência brasileiros acompanharam os meandros do processo revolucionário português atribuindo-lhe um caráter inequívoco de ameaça comunista ao regime brasileiro. No entanto, esta “comunização” de Portugal não impediu o reconhecimento do governo revolucionário português por parte do Brasil motivado pelas perspetivas económicas que se abririam com a descolonização dos territórios africanos.
A partir da perspetiva teórica dos estudos de memória, Joe Green indaga as mudanças toponímicas na cidade de Lisboa durante o período revolucionário. A análise exaustiva das propostas discutidas nas sessões da comissão de toponímia do governo municipal permite concluir que o trabalho da comissão foi perentório na eliminação de referências ao Estado Novo. Contudo, longe de dar continuidade aos confrontos ideológicos vividos no espaço público, as decisões toponímicas tomadas revelam uma atitude serena e cautelosa, estabelecendo uma política de memória consensual que serviria de base à construção de uma identidade política democrática.
A condenação do regime ditatorial do Estado Novo não se efetuou apenas através de mudanças simbólicas nas malhas semióticas das urbes portuguesas. Num processo que contrasta radicalmente com a vizinha Espanha, o aparelho político e as instituições pilares da ditadura foram desmanteladas com os primeiros decretos-lei pós-25 de abril e acompanhados de processos de lustração, purgas e criminalização dos seus mais altos membros. É neste processo de justiça de transição que Joana Rebelo integra a Comissão do Livro Negro do Fascismo. A discussão do caso português à luz da investigação internacional sobre comissões de verdade permite à autora considerar o Livro Negro do Fascismo uma das primeiras comissões de verdade na terceira vaga de democratizações.
O dossier encerra com o regresso ao presente. Barbara Fraticelli oferece uma leitura de Livro de vozes e sombras de 2020, o último romance de João de Melo e uma mais das recentes contribuições literárias sobre o período revolucionário. Ao revisitar a história dos movimentos separatistas dos Açores nos anos após o 25 de Abril a partir da perspetiva de uma jornalista nascida já em democracia, o romance desdobra as vozes do passado, contribuindo, juntamente com obras como O retorno (Dulce Cardoso 2011) ou Os memoráveis (Lídia Jorge 2014), para uma memória necessariamente caleidoscópica de um dos períodos-chave da história recente de Portugal.
Belchior, Ana Maria e Nuno Almeida Alves. 2016. Dos “anos quentes” à estabilidade democrática. Memória e ação política no Portugal contemporâneo. Lisboa: Mundos Sociais.
Huntington, Samuel P. 1991. The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century. Norman: University of Oklahoma Press.
Marchi, Riccardo. 2020. À direita da revolução. Resistência e contra-revolução no PREC (1974-75). Lisboa: Objectiva.
Noronha, Ricardo. 2018. “A banca ao serviço do povo”. Política e economia durante o PREC (1974-75). Lisboa: Imprensa de História Contemporânea.
Pimentel, Irene. 2017. O caso da PIDE/DGS. Foram julgados os principais agentes da ditadura portuguesa? Lisboa: Temas e Debates.
Pinheiro, Teresa. 2018. “Die Erinnerung an den Estado Novo im demokratischen Portugal”. Em Europas vergessene Diktaturen? Diktatur und Diktaturbewältigung in Spanien, Portugal und Griechenland, editado por Jörg Ganzenmüller, 203-226. Köln u.a.: Böhlau.
Pinto, António Costa. 2010. “Coping with the Double Legacy of Authoritarianism and Revolution in Portuguese Democracy”. South European Society and Politics 15, nº 3: 395-412.
Pinto, Pedro Ramos. 2013. Lisbon Rising: Urban Social Movements in the Portuguese Revolution, 1974-75. Manchester: Manchester University Press.
Raimundo, Filipa. 2018. Ditadura e Democracia: legados da memória. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Raimundo, Filipa e Joana Rebelo Morais. 2019. “Attitudes towards and Impact of Truth Commissions in the World”. Em The Global Legacy of Truth Commissions, editado por Jeremy Sarkin, 45-74. Cambridge: Intersentia.
Ruivo, Francisco Bairrão. 2015. Spínola e a Revolução: Do 25 de Abril ao 11 de Março de 1975. Lisboa: Bertrand.
1 Apenas alguns exemplos: Ruivo (2015); Belchior e Alves (2016); Pimentel (2017); Noronha (2018); Raimundo (2018); Marchi (2020).