DOI: 10.18441/ibam.22.2022.79.83-106

 

 

 

 

Comissão do Livro Negro: a procura da verdade na democratização portuguesa

The Commission of the Black Book: The Searching for Truth in Portugal’s Democratization

Joana Rebelo Morais

Institute of Social Sciences, University of Lisbon

joana.morais@ics.ulisboa.pt ORCID-iD: https://orcid.org/0000-0001-9898-0913

Introdução

A Comissão do Livro Negro Sobre o Regime Fascista nasceu em 1977 para combater o ressurgimento de ideologias fascistas, três anos após o golpe militar de 25 de Abril de 1974, que colocou fim a 48 anos de regime autoritário em Portugal. Formalizada no ano seguinte, investigou e expôs os crimes e abusos cometidos desde a implementação da Ditadura Militar, em 1926, até à Revolução dos Cravos. Nasceu por iniciativa do Primeiro-Ministro socialista Mário Soares, sob a alçada do Conselho de Ministros, e publicou, entre 1979 e 1991, 25 relatórios sobre os temas que melhor denunciavam o carácter repressivo do regime. Presos políticos, legislação que legitimou e legalizou a repressão, censura, fraude eleitoral e discriminação política no emprego público e privado são alguns dos temas. Extinta em 1991, a Comissão do Livro Negro é, de acordo com investigação recente sobre o caso português (Morais 2016; Morais e Raimundo 2017) uma comissão de verdade pioneira no contexto internacional de justiça de transição.

A CONADEP, ou Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas, criada na Argentina em 1983, é tida como a comissão de verdade pioneira que abriria caminho para outros regimes em transição (May 2013). Outras, como a Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação, criada em 1990, no Chile, a Comissão de Verdade para El Salvador, de 1992, ou a sul-africana Comissão de Verdade e Reconciliação, de 1995, são algumas das mais estudadas. Embora vasta, a literatura sobre este mecanismo de justiça de transição discute frequentemente a inconsistência entre as amostras dos estudos comparativos. A ausência de reflexão sobre uma definição única e consensual é apontada como a causa destas discrepâncias (Brahm 2009; Dancy et al. 2010; Hayner 2011). Como tal, não é surpreendente que estudos comparados sobre comissões de verdade não reconheçam a existência de uma comissão em Portugal (Bakiner 2016; Brahm 2010; Dancy et al. 2010; Freeman 2006; Hayner 2011; Nauenberg 2015; Olsen et al. 2010), ainda que esta ausência se explique, fundamentalmente, pela inexistência de investigação que permitisse, até recentemente, reconhecer a Comissão do Livro Negro como uma comissão de verdade.

Este artigo constitui um contributo adicional para a literatura sobre o processo de democratização em Portugal, prosseguindo com o trabalho já desenvolvido (Brito 2004; Pinto 2013; Raimundo 2015b; Morais 2016), com especial enfoque no ajuste de contas com o passado. Este processo, altamente punitivo, incorporou todo o tipo de medidas de justiça de transição, incluindo uma comissão de verdade –numa fase em que estas comissões não se tinham consagrado como mecanismo de justiça de transição e numa região do mundo onde estes esforços são pouco frequentes– numa posição de clara rutura com o legado autoritário. A análise do contributo da Comissão do Livro Negro para esta rutura permite propor também uma nova abordagem à origem das comissões de verdade, com Portugal a ocupar um lugar cimeiro entre os processos de justiça de transição da terceira vaga de democratizações.

Os dados que sustentam este artigo –uma análise qualitativa com objeto histórico, baseada em documentação primária– foram recolhidos entre 2015 e 2016 e provêm de três fontes distintas. São analisados de acordo com o método de triangulação, que permite cimentar a robustez dos resultados e captar a complexidade da realidade em estudos de caso (Torrance 2012). Documentação de arquivo, imprensa da época e entrevistas qualitativas constituem os três vértices do triângulo.

Em termos de arquivo, foram consultados os arquivos da Comissão do Livro Negro, os documentos legais relacionados com sua a criação e atividade, os Diários da Assembleia da República, atas de reuniões do Conselho de Ministros e os relatórios publicados pela comissão. A análise da imprensa da época compreendeu nove títulos, escolhidos com a preocupação de ter representados diferentes posicionamentos políticos: Diário de Lisboa, Diário Popular, Avante, O Dia, A Rua, O País, O Diabo, Diário de Notícias e Expresso. De forma a cobrir os 14 anos de atividade da comissão sem inviabilizar a pesquisa, foi selecionado um conjunto de datas-chave: as da publicação dos documentos legais mais relevantes e as das conferências de imprensa de apresentação dos relatórios. Foram também realizadas três entrevistas a indivíduos com participação ativa no objeto de estudo: José Carlos Vasconcelos, o único membro da Comissão do Livro Negro ainda vivo, António Capucho, a quem foi delegada a competência relativa à Comissão do Livro Negro, em 1981, enquanto Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro, e Fernando Rosas, identificado como um dos mais ativos colaboradores da comissão, que integrou desde 1984/85 até à sua extinção.

A estrutura desta análise assenta na definição de comissão de verdade cunhada por Hayner (2011). Não obstante a já referida inexistência de um conceito único, a especialista em justiça de transição é tida como referência no estudo das comissões de verdade e a sua definição é apontada como a mais usada (Brahm 2009; Dancy et al. 2010; Freeman 2006; Olsen et al. 2010). A análise da Comissão do Livro Negro realiza-se, portanto, a partir dos cinco elementos que compõem a definição: as comissões de verdade são (1) focadas no passado, (2) referentes a um padrão de acontecimentos verificado durante um determinado período de tempo, (3) envolvidas direta e amplamente com a população afetada, recolhendo informação das suas experiências, (4) temporárias, tendo como objetivo final a publicação de um relatório, (5) autorizadas ou mandatadas pelo Estado sob investigação (Hayner 2011, 11-12).

O artigo começa com uma breve passagem pela literatura sobre comissões de verdade, com enfoque na definição do conceito, nas discrepâncias, em exemplos de casos relevantes e nas vantagens e desvantagens da adoção deste mecanismo. Posteriormente é feita uma breve síntese do caso português de justiça de transição, para uma melhor compreensão do contexto em que a Comissão do Livro Negro foi criada. Por fim, procede-se à análise dos dados, estruturada com base nos cinco elementos da definição de Hayner, bem como a uma reflexão final sobre o legado da Comissão do Livro Negro.

Comissões de verdade: definição, casos e impacto

As comissões de verdade são mecanismos de justiça de transição que surgiram com a terceira vaga de democratizações, iniciada em Portugal. O sinal que pôs em curso o golpe militar que viria a provocar a queda do Estado Novo iniciou também a terceira vaga de processos de justiça de transição do final do século xx (Raimundo 2015b). O reconhecimento das comissões de verdade como mecanismo de justiça de transição deu-se apenas no final dos anos 90 (Hayner 2011) e o seu estudo popularizou-se desde então. Hoje multiplicam-se estudos de caso (Arce 2010; Gairdner 1999; Gibson 2005; Grandin 2005; Isaacs 2010; McCalpin 2012; entre outros) e análises comparadas (Bakiner 2016; Brahm 2010; Dancy et al. 2010; Freeman 2006; Hayner 2011; Nauenberg 2015; Olsen et al. 2010; entre outros).

A definição cunhada por Hayner –primeiro em 1994 e depois revista em 2001 e 2011– é a mais citada, apesar de existirem propostas alternativas (Bakiner 2016; Dancy et al. 2010; Freeman 2006; entre outros). A autora define as comissões de verdade como entidades (1) focadas no passado, (2) referentes a um padrão de acontecimentos verificado durante um determinado período de tempo, (3) envolvidas direta e amplamente com a população afetada, recolhendo informação das suas experiências, (4) temporárias, tendo como objetivo final a publicação de um relatório, (5) autorizadas ou mandatadas pelo Estado sob investigação (2011, 11-12). A acompanhar a definição, há uma ressalva: deve evitar-se definir o conceito de forma demasiado rígida, sob o risco de excluir casos que se tornam, pelas suas diferenças, relevantes, uma vez que constituem novos modelos. Recorde-se que esta definição serve de base a este artigo.

Apesar de toda a atenção de que são alvo, a literatura sobre comissões de verdade continua a divergir em questões básicas, colocando em evidência as já referidas inconsistências. As circunstâncias que favorecem a implementação destes mecanismos, as potenciais consequências ou até mesmo a abrangência do fenómeno continuam a ser amplamente debatidas (Brahm 2009). O autor comprova esta inconsistência através do levantamento de vários estudos quantitativos cuja dimensão da amostra de comissões de verdade varia entre menos de 20 e perto de 75. Esta variação poderá ter origem na ausência de reflexão sobre uma definição única e amplamente aceite (Hayner 2011; Dancy et al. 2010), embora a grande diversidade de ferramentas de recolha de dados e de metodologias também evidencie os desafios do trabalho comparativo sobre comissões de verdade (Raimundo e Morais 2019).

Não obstante as discrepâncias, a Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), criada na Argentina em 1983, é apontada como a pioneira que viria a abrir o precedente para outros regimes em transição (Hayner 2011; May 2013). Em termos cronológicos, contudo, não é a primeira de que há registo. Anteriormente existiram outras comissões, como a do Uganda (1974) ou da Bolívia (1982), por exemplo, ainda que a sua categorização não seja consensual. A primeira –Comissão de Inquérito sobre os Desaparecimentos de Pessoas no Uganda desde 25 de janeiro de 1971– conseguiu, apesar de ter enfrentado obstáculos como o bloqueio no acesso à informação por parte das instituições militares, ouvir 545 testemunhas, documentar 308 casos de desaparecimento e emitir recomendações de reformas nas forças de segurança. Faltou vontade política para divulgar as descobertas ou pôr as recomendações em prática, o relatório nunca foi publicado e os membros sofreram represálias. Aquando da criação de uma segunda comissão no mesmo país, em 1986, não foi feita qualquer referência a esta primeira tentativa. Por estes motivos terá ficado praticamente esquecida na história (Hayner 1994). A boliviana Comissão Nacional de Inquérito Sobre o Desaparecimento, ainda que mais reconhecida, também não conquistou o estatuto de pioneira e é considerada um esforço modesto (Grandin 2005). Além do mandato limitador, da escassez de recursos e do fraco apoio político, o reduzido impacto pode explicar-se pela sua ofuscação pelos julgamentos de ex-oficiais do regime anterior (Hayner 2011).

Contrariamente, a justificar a grande notoriedade da CONADEP, destacam-se a documentação de perto de nove mil casos de desaparecimento, dos quais cerca de mil seguiram para o poder judiciário (Grandin 2005) e a enorme popularidade do livro Nunca Más, a adaptação para venda ao público do relatório final da comissão (Hayner 1994). Além destas, destacam-se, como algumas das mais estudadas, a Comissão de Verdade e Reconciliação (África do Sul, 1995); a homónima peruviana implementada em 2001; a Comissão de Verdade para El Salvador, de 1992; a Comissão Nacional de Verdade e Justiça do Haiti, de 1995; a Comissão para a Clarificação Histórica (Guatemala, 1997); e a chilena Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura, de 2003 (Arce 2010; Gairdner 1999; Gibson 2005; Grandin 2005; Isaacs 2010; McCalpin 2012). A Comissão do Livro Negro foi implementada em Portugal em 1977 e é, portanto, anterior à maioria destes esforços de procura de verdade, mas é um caso ausente da literatura.

São vários os exemplos de comissões de verdade implementadas ao longo dos anos e em diferentes países. O continente africano lidera a implementação, com 34%, seguido pela Ásia, com 28%, pela América, com 26%, e, por fim, pela Europa, com uma percentagem bastante reduzida, apenas 12% (Olsen et al. 2010). Embora as comissões de verdade se encontrem espalhadas pelo mundo, representam, em termos absolutos, –em conjunto com as reparações e os saneamentos– apenas um quinto do total de mecanismos adotados. As amnistias são as mais frequentes, com perto de metade do total, seguidas pelos julgamentos, com cerca de um terço (Olsen et al. 2010). Isto acontece porque há, de acordo com os autores, vários fatores a condicionar a adoção dos diferentes tipos de mecanismo, como o tipo de regime ou o modo de transição.

É expectável que as comissões de verdade sejam implementadas em transições que lidam com um legado de repressão profunda, num passado pouco distante e no seguimento de um regime liderado por uma figura singular –a de um ditador, ao invés das forças militares ou de um partido. As transições por rutura são apontadas como mais favoráveis à criação de comissões de verdade, bem como a existência de novos líderes democráticos com um passado ligado à defesa dos direitos humanos e a própria experiência democrática do país (Olsen et al. 2010). Os resultados desta análise foram, contudo, pouco significativos. Destaca-se apenas a contradição com a literatura respeitante ao modo de transição –as comissões de verdade tendem a estar associadas a transições negociadas– e a confirmação da influência positiva do passado democrático do país e dos novos líderes políticos.

Uma vez implementadas as comissões de verdade, a literatura identifica várias vantagens e desvantagens. A favor, contam-se vários argumentos: são mecanismos facilitadores da democracia e da defesa dos direitos humanos por ajudarem a estabelecer a verdade sobre abusos passados; oferecem validação, justiça e superação às vítimas; responsabilizam os perpetradores e, consequentemente, previnem abusos futuros; contribuem para a construção do Estado de Direito e para uma paz duradoura (Frederking 2015). Brahm (2010) destaca também os seus benefícios no que diz respeito às vítimas: por permitirem contar e oficializar as suas histórias, têm um efeito terapêutico –atuando como antídoto para os efeitos perniciosos da repressão de memórias– e promovem a reconciliação. O autor destaca ainda o facto de operarem como uma forma de justiça alternativa, reparadora, que promove a reabilitação moral da sociedade, com enfoque nas causas do conflito ou na origem dos abusos, em detrimento da responsabilização pessoal dos perpetradores. Em termos de impacto político, a literatura distingue entre imediato –a capacidade de levar os decisores a reconhecer publicamente as violações e a incentivar reformas institucionais– e tardio –através da mobilização da sociedade civil (Bakiner 2011). As comissões de verdade são tidas como mais eficazes a apurar fatores macro (contextos, causas e padrões) e é esta capacidade que as torna especialmente relevantes, por permitirem apurar elementos que ficam, muitas vezes, esquecidos na história das transições (Chapman et al. 2001). Ao evidenciar o contexto, as comissões de verdade demonstram que os perpetradores não estavam isolados, mas que se inseriam num sistema legal, ideológico, político e militar, que deve, coletivamente, ser responsabilizado, justifica o autor.

Os fatores micro são igualmente importantes, mas as comissões de verdade não são particularmente bem-sucedidas a determinar os pormenores de centenas ou milhares de casos, por falta de tempo e recursos financeiros e humanos. Quando procuram aprofundar as descobertas a este nível, é frequente que ocorram erros que, mesmo que irrelevantes, levam os críticos a questionar e desacreditar o processo (Chapman et al. 2001). Prosseguindo com a ideia de ineficácia, há outras críticas à atuação das comissões de verdade. São vistas como substitutos brandos dos julgamentos e potencialmente perigosas, por fomentarem visões divergentes e potencialmente desestabilizadoras da paz, ao invés de produzirem uma narrativa única: os perpetradores sentem-se ameaçados e inseguros e agem para garantir a sua segurança; as vítimas, ressentidas, sentem que as medidas são inadequadas e procuram outros meios para fazer justiça (Brahm 2010).

As comissões de verdade comportam ainda o risco de reacender ódios adormecidos e despoletar, nas vítimas, casos de stress pós-traumático (Brahm 2007). Grodsky (2008) alerta para o uso instrumental destas comissões por parte de líderes repressivos na implementação de novos regimes e Mendeloff (2004) destaca o seu efeito tardio, dependente da transformação de crenças e de ideais históricos, e a necessidade de alguma estabilidade governativa e de um nível mínimo de democracia que fomente o debate público. As comissões de verdade são também vistas como uma forma de afastar da esfera judicial graves violações aos direitos humanos e como estando sujeitas a expetativas irrealistas, por terem subjacente a ideia de que é necessário “tocar na ferida” e reavivar memórias dolorosas (Popkin e Roht-Arriaza 1995).

O caso português de justiça de transição e a Comissão do Livro Negro

Para uma melhor compreensão do contexto da criação e do mandato atribuído à Comissão do Livro Negro, importa olhar para o processo de democratização português, precursor da terceira vaga de democratizações do mundo moderno. O golpe militar de 25 de abril de 1974 destaca-se pela ausência de violência, pelo rompimento da hierarquia militar –foi executado por militares de média patente– e pela ausência de negociações entre os atores políticos do regime e os opositores revolucionários (Rezola 2007; Pinto 2006).

Estas características, aliadas à subsequente crise do Verão Quente de 75, marcado pela radicalização política da sociedade, justificam o facto de o caso português de justiça de transição ter sido especialmente propenso a processos de responsabilização e punição, com uma reação ao passado mais vincada do que nos restantes países do sul da Europa (Pinto 2013). A comissão aqui analisada surge, portanto, num contexto de intenso ajuste de contas com o passado.

O exílio forçado foi a primeira medida adotada e, embora não figure habitualmente na literatura sobre medidas de responsabilização e punição, permitiu aos militares lidar com as principais figuras do regime deposto. Américo Tomás, Presidente da República, Marcelo Caetano, Presidente do Conselho, e alguns membros do governo foram enviados para o exílio na madrugada do dia do golpe. A Assembleia Nacional, a Câmara Corporativa, o partido único Ação Nacional Popular (anteriormente União Nacional), a censura e a polícia política PIDE/DGS foram, a par com outras instituições políticas, desmanteladas pela Junta de Salvação Nacional (JSN) (Pinto 2013).

Os saneamentos, levados a cabo pela elite civil e militar, representam uma segunda categoria de medidas, implementadas com base num processo de “investigação, divulgação, estigmatização e identificação daqueles que foram os responsáveis pela censura, a tortura e a violação de direitos humanos” (Raimundo 2015b, 14). Funcionários públicos, professores, militares, forças policiais e até trabalhadores do setor privado foram afetados pelo “saneamento louco” (Pinto 2013, 395), embora o processo tenha incidido mais intensamente na função pública. Três razões motivariam o afastamento: comportamento não democrático, incapacidade de adaptação ao novo regime ou incompetência. Os que foram condenados com a pena mínima foram transferidos, aos que calhou a pena máxima –elite governamental, membros da polícia política, membros da Mocidade Portuguesa e da Legião Portuguesa ou do partido único e responsáveis da censura–, coube a dispensa (Raimundo e Pinto 2014). A Comissão Interministerial de Saneamento e Reclassificação, criada em junho de 1974 para levar a cabo as purgas nos ministérios, é lembrada como uma instituição de atuação inconsistente e mal direcionada, dominada pelas estratégias revolucionárias de esquerda e pelas pressões dos sindicatos e das comissões de trabalhadores. Até novembro de 1975 terão sido removidas dos postos de trabalho ou suspensas 20 mil pessoas (Raimundo e Pinto 2014), mas, em 1976, foi criada a Comissão de Análise de Recursos de Saneamento e de Reclassificação para reparar os danos das purgas arbitrárias.

A ausência de negociações com a elite do regime deposto possibilitou a também a implementação de julgamentos. Aquando do golpe, a PIDE/DGS foi desmantelada e muitos membros foram detidos. As detenções deveram-se, em parte, a uma tentativa de evitar a ira popular, que exigia a punição dos oficiais e colaboradores da polícia política. Mais de mil membros terão sido detidos preventivamente nesta fase –e assim permaneceram até fevereiro de 1976. Em junho de 1974 foi criada a Comissão de Extinção da ex-PIDE/DGS, da Legião Portuguesa e da Mocidade Portuguesa, para preparar os procedimentos legais para os julgamentos, que foram realizados nos Tribunais Militares Territoriais de Lisboa, Porto, Coimbra e Tomar. Tiveram início em 1976 e prolongaram-se até 1980. Foram julgados 2 667 processos e 68% resultaram em condenações a penas de entre um e seis meses de prisão, às quais foi descontado período de prisão preventiva; feitas as contas, os condenados cumpriram, em média, 20 meses de prisão (Raimundo 2015b). Além de tardias, as penas foram leves (Pinto 2013). Estes julgamentos incluíram testemunhos de vítimas do regime –presos políticos submetidos a tortura e violência. Este facto pode justificar o porquê das vítimas não terem tido, como é habitual em comissões de verdade, tanta importância na atividade da Comissão do Livro Negro, como descrito adiante.

A compensação e reparação das vítimas, iniciada em 1976, constitui outra categoria de medidas aplicadas no caso português. Os que lutaram pela liberdade e pela democracia foram os primeiros a ser compensados, quer financeiramente –através de uma pensão,1 atribuída a partir de 1977– quer simbolicamente, através da insígnia da Ordem da Liberdade,2 atribuída pelo Presidente da República. Seguiram-se os que foram sujeitos a trabalhos forçados no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde,3 os participantes na revolta do 18 de janeiro de 19344 e os que estiveram presos ou na clandestinidade (Raimundo 2015b).5 O Estado português também implementou algumas medidas de reparação profissional. Foi o caso dos desertores (os que fugiram à guerra colonial por motivos político-ideológicos), dos refratários (os que fugiram ao serviço militar pelos mesmos motivos) e dos que foram afastados da função pública. A todos foram concedidas amnistias e a possibilidade de regularizar a sua situação.

As amnistias constituem a última categoria de medidas implementadas, embora no sentido inverso ao habitual deste mecanismo. Foram amnistiados os crimes políticos e as infrações disciplinares respeitantes ainda ao período da ditadura, os presos políticos foram libertados imediatamente e os exilados foram autorizados a retornar ao país no mesmo dia do golpe militar (Pinto 2013).

Finda a transição, período durante o qual foram postas em curso todo o tipo de medidas de justiça de transição –saneamentos, julgamentos, amnistias, compensações e memória, entre outras–, o ajuste de contas parece ter cessado. O processo de consolidação democrática principiou com o insucesso da tentativa de golpe de 25 de novembro de 1975 e culminou com a criação do Tribunal Constitucional em 1982. Pelo meio, a vitória do Partido Socialista nas eleições de 1976 marco o início do processo de despolitização do passado e a transição para uma política de reintegração e reconciliação (Raimundo 2015b). A reconciliação e a pacificação foram, aliás, centrais nos discursos dos dois primeiros governos constitucionais (Pinto 2013). Entre os partidos à direita, com fracas ligações ao passado e condicionados pelo clima de rutura, a adoção de um silêncio estratégico, sem uma posição clara, contra ou a favor, foi o rumo tomado (Raimundo 2015a). A partir do início dos anos 80, a preparação do processo de integração europeia e o desaparecimento das forças conservadoras e de extrema-direita da cena política nacional parecem explicar a ausência do passado da agenda política e do debate público e a escassez de ações de memorização , à semelhança do que aconteceu em muitos países europeus do pós-guerra (Pinto 2006; Raimundo 2015a). A catarse proporcionada pelas medidas de justiça de transição (Raimundo e Pinto 2014) eliminou o passado da agenda política, não restando qualquer elemento de ligação ao antigo regime, nem qualquer partido de inspiração salazarista –a Constituição da República Portuguesa proíbe, aliás, no Artigo 46.º, a criação de partidos de ideologia fascista.

Desde então, o “silêncio” foi quebrado apenas pontualmente. São exemplo disso o debate gerado pela passagem por Portugal, em 1998, de um ex-membro da polícia política envolvido na morte do General Humberto Delgado; o projeto divulgado em 2005 e entretanto concretizado que contemplava a transformação da antiga sede da PIDE/DGS em Lisboa num condomínio de luxo; ou a vitória de Salazar num concurso transmitido na estação pública, intitulado “Grandes Portugueses”, em 2007 (Raimundo 2015b). Mais recentemente, foram promovidas algumas iniciativas –com fraca mobilização e cobertura mediática– no âmbito da preservação da memória e da verdade sobre o regime, promovidas pelas associações ‘Não Apaguem a Memória’, mais recente, e União de Resistentes Antifascistas Portugueses, mais antiga e associada ao PCP (Raimundo 2015b). A última iniciativa legislativa teve origem na sociedade civil –possivelmente influenciada pelo debate sobre memória histórica na vizinha Espanha–, com uma petição que pretendia levar o governo a promover iniciativas relacionadas com a memória e que resultou numa resolução que, não sendo vinculativa, recomendava, ao governo, a promoção da memória de luta e resistência às gerações futuras (Raimundo 2015b).

A Comissão do Livro Negro foi a última medida de justiça de transição a ser criada e implementada e, ao contrário das restantes, surgiu já em contexto de consolidação democrática.

Lutar contra os “demónios de um totalitarismo renascente”

Para melhor compreender o papel da Comissão do Livro Negro no processo português de justiça de transição, importa analisar o mandato, as características e os outputs da comissão. A análise estrutura-se de acordo com os cinco elementos da definição de comissão de verdade de Hayner (2011). Procedeu-se apenas a uma alteração na ordem dos elementos –o último ponto (“autorizadas pelo Estado sob investigação”) é o primeiro da análise, tendo sido movido em benefício da clareza, uma vez que é o elemento que permite explicar a origem e a composição da comissão. Importa também ressalvar que, apesar de a comissão ter sido criada em 1977, apenas em 1978 iniciou os seus trabalhos.

Autorizada pelo Estado sob investigação

A Comissão do Livro Negro foi proposta em janeiro de 1977 pelo socialista Mário Soares, enquanto Primeiro-Ministro do I Governo Constitucional, em sede de Conselho de Ministros. A criação da comissão foi aprovada e, em abril, foi publicado em Diário da República o despacho6 que criava a comissão e nomeava os membros, escolhidos também pelo Primeiro-Ministro. José Magalhães Godinho, Fernando Piteira Santos, Teófilo Carvalho dos Santos, Barradas de Carvalho, Raul Rego, José Carlos Vasconcelos e, mais tarde, César Oliveira7 foram os nomeados, com base na sua “reconhecida idoneidade moral e exemplar passado democrático”.8

A origem e constituição da comissão confirmam, por si só, o facto de ter sido autorizada pelo Estado que viria a investigar, mas a análise aos diplomas legais mais relevantes –que constituem a forma de influência estatal mais direta– fortalece esta ideia. O decreto-lei 110/78 estabeleceu a criação da comissão, junto da Presidência do Conselho de Ministros, na dependência do Primeiro-Ministro ou do membro do Governo em quem delegasse. Foi aprovado durante a vigência do II Governo Constitucional e é o documento legal mais completo sobre a comissão, delimitando os seus objetivos e funções. No mês seguinte, um novo despacho9 confirmou a nomeação dos membros.

Já em 1985, durante o IX Governo Constitucional, foi publicado um dos decretos-lei que mais atenção conquistou na imprensa, relativo às normas de acesso a “todos os arquivos e documentos que permitam esclarecer o que foi o regime fascista em Portugal”,10 incluindo os arquivos de Salazar e Marcello Caetano, até então ainda por tornar públicos. No mesmo ano, o decreto-lei 210/8511 dava conta do processo de fusão entre o Museu da República e da Resistência e a Comissão do Livro Negro, que passou a designar-se Comissão Instaladora do Museu da República e da Resistência, encarregue de dupla tarefa: elaborar o Livro Negro e instalar o museu. Esta fusão não terá tido qualquer efeito no funcionamento da comissão.

Passados 14 anos da criação da comissão, o decreto-lei 22/91,12 aprovado durante a vigência do XI Governo Constitucional, veio extingui-la, por considerar que a publicação de mais de duas dezenas de volumes sobre o regime dava por cumprido o seu objetivo. Os membros da comissão terão tido conhecimento desta decisão em novembro do ano anterior através da imprensa, sem aviso prévio ou oficial.13

Criada por um governo de esquerda e extinta por um de direita –constituído pelo Partido Social Democrata (PSD) e liderado por Aníbal Cavaco Silva–, terá a Comissão do Livro Negro estado sujeita a variações consoante as mudanças de executivo? José Carlos Vasconcelos,14 membro da comissão, referiu que a falta de incentivos, apoios e recursos financeiros –e a gradual perda de condições– foi constante, sem destacar nenhuma alteração concreta aplicada por nenhum governo. Destacou, contudo, um certo “desinteresse” dos governos liderados por Cavaco Silva, motivado talvez pela pertença a um setor político a que “não conviria” o trabalho da comissão. Este desinteresse apontado pelo ex-membro da Comissão do Livro Negro pressupõe que o posicionamento à direita do PSD, fundado após a revolução e integrando, nas suas listas, ex-membros da Ala Liberal –a “semioposição ao regime” ditatorial (Raimundo 2014)–, implicaria a existência, entre os membros do partido, de “esqueletos no armário”. A já mencionada posição de silêncio estratégico relativamente às medidas de justiça de transição adotada pelas forças políticas à direita, que se excluíram deste debate, pode ajudar a explicar suposições em torno desta ideia: o silêncio relativamente ao passado pode ser interpretado como conivência ou receio. Ainda assim, importa referir que embora, ideologicamente, estas forças se situem à direita e tenham “algumas raízes no passado recente do regime autoritário”, não se verificou, em Portugal, a emergência de um partido sucessor autoritário (Paris e Silveira 2021). A ausência de um partido pós-Salazarista poderá até explicar o porquê de estas forças partidárias não assumirem uma posição de rejeição declarada de medidas punitivas. A ideia de “reconciliação nacional” passou inclusivamente a integrar a retórica dos partidos à direita a partir de 1976, ano em que se realizaram as primeiras eleições legislativas (Raimundo 2015a).

António Capucho,15 em quem foi delegada a competência relativa à Comissão do Livro Negro entre 1981 e 1983, enquanto Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro do VIII Governo Constitucional, admitiu o reduzido interesse do Estado, justificado por se ter tratado de “um período extremamente conturbado da vida portuguesa” em que as prioridades, seja do governo, seja da administração pública, “estavam focadas em muitas outras direções”. O ex-membro do governo também abordou a questão da falta de recursos, admitindo que “as reivindicações orçamentais da comissão, como de todos os setores, sofressem um grande travão”. Fernando Rosas,16 colaborador da comissão, denotou uma grande falta de atenção comum a todos os governos e mencionou um alegado receio dos governos de direita relativo à abertura dos arquivos. Ainda assim, considera-se que a comissão organizou livremente o seu funcionamento, tal como estabelecido no decreto-lei da sua fundação.

Focada no passado

Quando a criação de um Livro Negro começou a ganhar forma, em 1977 –ainda sem a expressão “comissão” a acompanhá-lo– definiram-se como objeto de trabalho os “crimes, violências e abusos praticados durante quase meio século em Portugal”,17 mas a referência ao período que estaria sob investigação é vago. Não é claro se o trabalho da comissão remontaria a maio de 1926, data em que foi instaurada a Ditadura Militar, a julho de 1932, quando Salazar foi nomeado Presidente do Conselho de Ministros ou até a abril de 1933, data da aprovação da Constituição de 1933. É claro, contudo, que contemplaria também o período marcelista, estendendo-se até ao dia 25 de abril de 1974. O despacho da nomeação dos membros mantém a expressão “meio século” e não é, neste aspeto, esclarecedor.

Na primeira cerimónia de tomada de posse da comissão, a 22 de abril, Manuel Alegre, então Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro para os Assuntos Políticos, empregou a expressão “48 anos”18 –feitas as contas, conclui-se que o trabalho da comissão remontaria à Ditadura Militar. O decreto-lei 110/78 clarificou esta ideia: “A Comissão procederá a um inquérito ao regime que vigorou em Portugal entre 28 de maio de 1926 e 24 de abril de 1974.” Esta confirmação contraria a expectativa de que a comissão investigaria apenas o período de 1932 ou 1933 em diante, por sugestão do próprio nome –Comissão do Livro Negro Sobre o Regime Fascista.

Os últimos anos da ditadura são os que o Livro Negro pior relata, provavelmente por falta de tempo e recursos. Alguns temas foram, pela enorme densidade documental, divididos em vários volumes e, uma vez que o critério da comissão era quase sempre o cronológico, os últimos anos acabaram por não chegar a ser tratados. Fernando Rosas refere-o relativamente à questão dos presos políticos e outros terão ficado por publicar:19 vários volumes sobre o papel dos estudantes no regime (o primeiro e único trata os anos entre 1926 e 1934) e outros sobre legislação repressiva (além dos dois publicados). Também ficaram por publicar vários volumes de correspondência trocada entre Salazar e figuras importantes do regime.

Além de clarificar o período investigado, o decreto-lei 110/78 também especifica o mandato da comissão: investigar “os atos políticos e os atos de governação que conduziram o País a uma situação de crise nacional” e os “factos que possibilitaram o aparecimento e duradoura instalação do regime fascista”. O trabalho da Comissão do Livro Negro tem, portanto, o passado como objeto e este enfoque está patente na sua criação e no discurso político de então. Na reunião do Conselho de Ministros em que foi proposta a criação do Livro Negro é referida a “preocupação pela expansão de ideologias neofascistas” e o “combate ao ressurgimento da ideologia fascista”. Na sessão parlamentar de 23 de maio de 1978,20 Mário Soares, então Primeiro-Ministro, descreveu estas ameaças como “demónios de um totalitarismo renascente” e alertou para o “renascer de certas organizações […] de tipo vincadamente fascista e neossalazarista”, “saudosistas do antigo regime”. Pretendia-se que a comissão constituísse um “poderoso instrumento de esclarecimento público quanto aos crimes do fascismo e a verdadeira exautoração moral do antigo regime” e pensava-se, sobretudo, nas gerações mais jovens: “é […] importante que os jovens saibam o que foi o fascismo para que se não possam insinuar dúvidas, em espíritos menos esclarecidos, quanto às virtudes da democracia e aos benefícios da liberdade”.

O decreto-lei da fundação referia ainda a “necessidade de apuramento e da reposição da verdade histórica”. O objetivo do governo português em relação ao passado implicava, portanto, estabelecer a verdade sobre o regime de Salazar e Caetano e, recordando o carácter repressivo, evitar recorrências. O presidente da comissão, José Magalhães Godinho, demonstrou-o no discurso da segunda tomada de posse, em junho de 1978. Falou na propensão dos portugueses para perdoar e esquecer e sugeriu que se perdesse o “jeito de generosidade, perdoando talvez, mas não esquecendo”.21 O presidente ditou a relação pretendida com o passado: “tempos desses não voltarão mais”.22

Para proceder à clarificação e reposição da verdade histórica, o trabalho da comissão assentou “no exame dos arquivos oficiais” e na reunião de documentos significativos “por si mesmos, dispensando comentários, e, apenas quando necessário, acompanhados de notas remissivas ou explicativas”, como estipulado na introdução do primeiro volume publicado (Comissão do Livro Negro 1979, 5-7). Foram consultados os arquivos da Presidência do Conselho; da organização miliciana e paramilitar Legião Portuguesa; do partido único União Nacional e do seu sucessor Ação Nacional Popular; da Comissão de Censura e do Exame Prévio; dos Tribunais Plenários e do antecessor Tribunal Militar Especial; de vários ministérios, governos civis e câmaras municipais. Além dos arquivos das entidades extintas, a comissão recorreu à Comissão de Extinção da ex-PIDE-DGS.

No que diz respeito aos arquivos da ditadura, importa referir o alegado desaparecimento ou destruição de documentação, por constituírem um potencial entrave ao trabalho da comissão. Um dos relatórios da comissão dá conta da destruição de “grande parte” dos arquivos dos Serviços de Censura no próprio dia da revolução (Comissão do Livro Negro 1980b, 6), que o próprio José Carlos Vasconcelos terá testemunhado. O antigo membro da comissão deu conta da ausência de muita documentação no Arquivo Salazar, sobretudo referente à Guerra Colonial, evidenciada pelas “pastas vazias” encontradas no local. Fernando Rosas admitiu também a possibilidade de existirem documentos em falta, dos quais alguns partidos se terão apoderado, mas classificou estas omissões documentais como pouco relevantes.

Em relação aos termos usados para referência ao passado, a análise dos relatórios leva a crer que nenhuma expressão tenha sido evitada. O regime é identificado como “fascista”, como comprova o nome da própria comissão, e não há nenhuma expressão cuja omissão seja notória. Já em termos temáticos, existiu uma restrição: as forças armadas. O decreto-lei 110/78 exclui, do âmbito da comissão, “quaisquer documentos e outro material, classificados ou não classificados, que respeitem à organização, funcionamento e disciplina das forças armadas”. Assim se explica a inexistência de um relatório sobre a guerra colonial, cuja ausência é facilmente notada, pela relevância do conflito na história do regime. Esta restrição, que se poderia imaginar controversa, quase escapou à imprensa. Foi mencionada apenas pelo Diário Popular, a título meramente descritivo.

Referente a um padrão de acontecimentos

A escolha dos acontecimentos a tratar pela comissão orientou-se pelo disposto nos diplomas legais. O trabalho da comissão passava por organizar e publicar documentos que não se destinavam a julgar os detentores dos cargos de poder, personalizando os abusos, mas o regime que institucionalizaram (Comissão do Livro Negro 1979). José Carlos Vasconcelos descreveu como “relativamente óbvia” a decisão de focar a atenção da comissão nos organismos e modos de repressão –a polícia política, a censura, as farsas eleitorais e os demais instrumentos do regime.

De facto, dos 25 relatórios publicados pela comissão, 16 adequam-se a este critério –e é a análise destes que permite comprovar que a comissão pretendia, através da documentação publicada, evidenciar um padrão de acontecimentos.23 A estes relatórios correspondem nove temas, alguns deles com mais de um volume editado: política de informação (dois volumes); livros proibidos; proibição da Time; discriminação política no emprego; estudantes; trabalho sindicatos e greves; legislação repressiva e antidemocrática (dois volumes) e presos políticos (seis volumes). A análise de cada um dos relatórios comprova que, tendo sido possível a ordenação cronológica da documentação e a agregação de volumes repartidos por períodos temporais, os abusos repetiram-se e prolongaram-se no tempo.

O volume sobre eleições, o primeiro a ser publicado, em 1979, reúne documentação sobre diferentes atos eleitorais –as eleições presidenciais de 1949 e 1958, as legislativas de 1957, 1965 e 1969 e as autárquicas de 1967 e 1971. Demonstra, portanto, como durante a vigência do regime, os atos eleitorais e o recenseamento constituíram “uma fraude indesmentível” (Comissão do Livro Negro 1979, 11). Os dois volumes sobre a política de informação tratam a censura, descrita pela comissão como a forma “mais primária e brutal de suprimir toda e qualquer forma de liberdade de expressão e de silenciar todas as vozes livres” (Comissão do Livro Negro 1980a, 5). A repressão sobre a informação não se restringia, contudo, à censura, pelo que os dois volumes incluem também documentação que prova “muitas outras formas de pressão, perseguições e ataques […] usadas contra os órgãos de informação, em especial aqueles que pretendiam ser independentes ou de qualquer forma defendiam a democracia” (Comissão do Livro Negro 1980a, 6). A maioria destes documentos foram recolhidos nos arquivos da Presidência do Conselho –de Salazar e Marcello Caetano– e, “quer pela enorme diversidade […] quer para mostrar a continuidade ou evolução” (Comissão do Livro Negro 1980a, 9), foram organizados cronologicamente. A documentação demonstra, novamente, a forma como o regime limitou, ampla e constantemente, um dos direitos fundamentais. Esta conclusão estende-se a “Livros proibidos no regime fascista”, o quarto relatório publicado, que reproduz a Relação de Obras cuja circulação esteve proibida durante o regime. A publicação deste relatório justifica-se com base no argumento de que a proibição, apreensão e destruição de livros são características de “um regime político de opressão, de perseguição, de terror policial, de obscurantismo cultural” (Comissão do Livro Negro 1981a, 5). Seguindo a mesma lógica, a comissão publica, em 1982, um volume sobre a proibição da revista TIME em Portugal, um caso representativo do controlo da informação durante o regime.

No mesmo ano, é publicado o volume sobre discriminação política no emprego, que pretendia demonstrar a discriminação sistemática que abrangia a função pública e o setor privado, através da exposição de correspondência trocada entre entidades oficiais e da reprodução de processos relativos a candidatos ou funcionários demitidos. A comissão estima que tenham sido afetados milhares de cidadãos durante toda a vigência do regime, constituindo, de forma clara, um padrão. Em 1983 é publicado aquele que seria o primeiro volume sobre os estudantes, mas que acabou por ser o único. Retrata os anos entre 1926 e 1934, período descrito como o “mais agitado, intolerante e repressivo do regime ditatorial” (Comissão do Livro Negro 1983b), com enfoque num dos grupos sociais mais afetados. Este relatório demonstra que houve uma perseguição repetida no tempo através da reprodução de documentos, depoimentos e notícias.

Trabalho, sindicatos e greves, publicado em 1984, baseia-se em documentos provenientes dos arquivos Salazar, do Ministério do Trabalho (sucessor do Ministério das Corporações e Previdência Social) e do Ministério da Administração Interna (Ministério do Interior durante o regime salazarista). O relatório traça um padrão de violações ocorrido entre 1951 e 1974. A legislação repressiva e antidemocrática foi tema de dois volumes. O primeiro volume (1985) consiste numa coleção de diplomas legais complementados, no segundo (1986), pela legislação sobre os corpos de polícia e as organizações de vigilância e repressão e por documentos diversos, como relatórios policiais, ofícios remetidos ao Ministro do Interior, denúncias de atividades de entidades e indivíduos oposicionistas, entre outros. Constituem, ambos os volumes, prova da existência de um padrão de repressão constante durante o regime.

O relatório sobre os presos políticos foi dividido em seis volumes (publicados entre 1981 e 1988), tendo um sétimo ficado por publicar. Pretendia retratar-se “a amplitude das prisões efetuadas pela polícia política” (Comissão do Livro Negro 1981c, 5), assumindo, no entanto, a impossibilidade de indicar o número exato de presos durante o regime: não só a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, a antecessora da PIDE) oficializou os registos apenas a partir de 1933, como os livros de entradas e saídas do Aljube, de Caxias e de Peniche –as cadeias destinadas à detenção e interrogatório de presos políticos– nunca foram encontrados. Estima-se, contudo, que o número de presos políticos tenha rondado os 30 mil (Comissão do Livro Negro 1982b). Além de fichas de detidos e notas explicativas, todos os volumes incluem dados estatísticos sobre as prisões efetuadas e outros indicadores relevantes, como o tempo de detenção, o número de processos que foram ou não a julgamento, as condenações e as absolvições, entre outros. Na impossibilidade de publicar todas as fichas prisionais, a comissão definiu critérios: todos os que estiveram presos no Tarrafal; todos os que faleceram nas prisões políticas; aqueles que foram presos cinco ou mais vezes; os que foram vítimas de abusos. O primeiro destes volumes tratou o período entre 1932 e 1935 e inclui também um depoimento sobre o movimento operário de 18 de janeiro de 1934, que originou um volume acrescido de detenções. O segundo volume retratou o período “mais dramático” em número de prisões efetuadas e “talvez o de maior repressão e arbitrariedade por parte da polícia política”, fenómeno que a comissão justifica com a contemporaneidade da guerra civil de Espanha (Comissão do Livro Negro 1982b, 5). Este volume também inclui um depoimento sobre a revolta dos Navios da Marinha de Guerra, em setembro de 1936. Os seis volumes sobre presos políticos corroboram, também, o facto de a Comissão do Livro Negro não ter investigado atos isolados, mas padrões repetidos no tempo.

Envolvida direta e amplamente com a população afetada

O envolvimento da comissão com as vítimas do regime é uma das vertentes menos evidentes do seu trabalho. O decreto-lei 110/78 encarrega a comissão de tornar público “tudo quanto interesse ao esclarecimento dos factos”, especificando a recolha de “documentos pertencentes ao Estado e […] entidades públicas, publicações de imprensa […], filmes, registos sonoros, documentos particulares […] e, de um modo geral, os elementos suscetíveis de contribuir para o esclarecimento e elucidação do que foi o regime fascista”. Não há referência concreta a testemunhos de vítimas, mas embora não tenham assumido um papel central nas atividades da comissão, a recolha e exposição de depoimentos existiu.

Foram incluídos, em dois dos relatórios, testemunhos de participantes em acontecimentos de relevo, para uma visão mais detalhada do que aquela que a documentação de arquivo possibilita. Os primeiros relatórios a incluir depoimentos foram os volumes I e II da série “Presos políticos no regime fascista”. Foram publicados os testemunhos de Emídio Santana sobre o movimento operário de 18 de janeiro de 1934 e de Faria Borda sobre a revolta dos Navios da Marinha de Guerra em setembro de 1936. O último volume sobre os presos políticos nunca chegou a ser publicado, mas fazia parte dos planos da comissão exemplificar concretamente, “através de casos e processos, as perseguições, arbitrariedades e prepotências da polícia política do regime” (Comissão do Livro Negro 1981c, 5), pelo que é possível supor que esse volume incluísse também testemunhos.

O relatório relativo aos estudantes, publicado em 1983, inclui também quatro depoimentos, num esforço de compensar a falta de documentação referente ao período tratado (de 1926 a 1934), quando ainda não existia uma polícia política devidamente organizada nem arquivos sistemáticos e completos nos ministérios, governos civis e universidades. No relatório foram incluídos dois testemunhos de António Barros Machado –um sobre os estudantes do Porto e outro sobre os acontecimentos que deram origem à morte do estudante João Martins Branco–, um de José Magalhães Godinho sobre os estudantes de Lisboa e outro de Mário Cal Brandão, sobre a Academia de Coimbra.

O contacto da comissão com vítimas do regime foi, no entanto, mais alargado do que os relatórios fazem crer e não se reduziu aos seis testemunhos publicados. É possível encontrar, em atas de reuniões disponíveis no arquivo da comissão, referências sobre a receção de vários testemunhos: há registo de três depoimentos sobre casos de violência que chegaram em resposta a um apelo da comissão; menções ao contacto com professores demitidos e docentes universitários e investigadores que tenham sido vítimas de repressão; referências sobre o contacto com antifascistas que ainda não tinham fornecido os seus depoimentos –o que pressupõe que, além destes, outros teriam já participado; sobre a recolha de testemunhos de pessoas que estiveram presas ou foram torturadas; e sobre depoimentos a incluir no volume sobre a repressão– que nunca chegaram a ser. Assumindo que o arquivo não está completo, poderá supor-se a existência de muitos outros contactos cujo apuramento já não é possível. Embora não possa, em rigor, considerar-se o contacto com as vítimas amplo –como estipula a definição de Hayner– pode considerar-se direto, pelo que se consegue, neste ponto, uma confirmação parcial. Deve retomar-se, portanto, a ressalva feita pela autora para que se evite uma definição demasiado rígida e para a relevância da diversidade de atuação das diferentes comissões de verdade.

Temporária, culminando com a publicação de um relatório

A duração da atividade da Comissão do Livro Negro não foi estipulada aquando da sua criação. Não obstante, estabeleceu-se que concluídos os seus trabalhos, seria publicado um livro, o Livro Negro do Fascismo em Portugal.24 Esta opção foi abandonada pela falta de meios e recursos da comissão, justificou José Carlos Vasconcelos, comparando-a com a CONADEP: “A comissão argentina era de âmbito nacional, dispunha de grandes meios. No caso português, se não se fosse publicando o que havia, não teria saído nada.” António Capucho não conseguiu identificar o motivo pelo qual se terá deixado cair o objetivo de publicar um livro único, mas considerou que a decisão foi prejudicial para o legado da comissão. Faltou “uma espécie de síntese do que tinha sido o regime fascista, de modo a dar um contributo para a história desse período que fosse válido, mas que pudesse também proporcionar um exorcismo do fascismo de algumas mentalidades que entendiam que algumas características supostamente virtuosas do fascismo eram de elogiar”, referiu.

Além da falta de recursos e meios, o enorme volume de documentos tratados pela comissão pode justificar a divisão em vários relatórios. Este argumento, apontado por Fernando Rosas, é corroborado nas introduções de dois dos relatórios: “a comissão não pode evitar, nem lhe cumpriria evitar, que livro a livro, da documentação parcelar publicada, acabe por erguer-se o edifício acusatório de um Livro Negro Sobre o Regime Fascista Português” (Comissão do Livro Negro 1984a, 7); “não se trata pois, verdadeiramente, da publicação de um livro, mas de vários volumes de documentação que permitam conhecer o que foi o regime fascista português” (Comissão do Livro Negro 1985a, 5). A decisão de dividir a documentação por temas foi consensual e a seleção dos tópicos decorreu da “cultura política dos próprios membros”, justificou Fernando Rosas, acrescentando tratar-se dos “temas que melhor denunciavam os aspetos escandalosamente repressivos do regime.”

Com uma tiragem entre os 2 500 e os 5 000 exemplares, os relatórios eram, numa primeira fase, distribuídos gratuitamente por todas as bibliotecas, escolas e restantes organismos públicos. A verba disponibilizada para a impressão e distribuição dos relatórios tinha em conta o reduzido poder de compra dos portugueses, à data, e permitia uma ampla distribuição gratuita, que contrariou a “noção de que apenas um grupo muito restrito compraria os relatórios”, recordou António Capucho. Os três primeiros relatórios –eleições e política de informação I e II– chegaram mesmo a ter segunda edição.

Notas finais

A Comissão do Livro Negro constituiu, portanto, um dos esforços pioneiros de procura de verdade da terceira vaga de processos de justiça de transição do final do século xx, tornando o ajuste de contas português num dos mais punitivos de que há registo, tendo contemplado todos os tipos de medidas de justiça de transição.

Retoma-se a definição de comissão de verdade (Hayner 2011) sobre a qual se estrutura este artigo, para confirmar que Comissão do Livro (1) tinha, como enfoque, o passado, nomeadamente no período entre 28 de maio de 1926 e 24 de abril de 1974, ainda que a falta de tempo e de recursos tenha ditado que algum do trabalho ficasse por fazer, sobretudo o relacionado com os últimos anos da ditadura; (2) era referente a um padrão de acontecimentos, comprovado através da documentação que, exposta cronologicamente, elucidou sobre a repetição e prolongamento dos abusos ao longo da vigência do regime; (3) esteve envolvida com as vítimas, através da recolha e exposição de depoimentos, alguns que chegaram a figurar nos relatórios, outros que não terão chegado ao público; (4) foi temporária, culminando com a publicação não de um relatório, mas de vários que foram gradualmente editados, opção ditada pelo grande volume de documentos que se pretendia divulgar; (5) foi autorizada pelo Estado sob investigação e criada no âmbito do Conselho de Ministros, por proposta do socialista Mário Soares, enquanto Primeiro-Ministro do I Governo Constitucional, responsável também pela nomeação dos membros que a viriam a compor.

A vertente do contacto com as vítimas foi a que maiores dificuldades e dúvidas gerou. Apesar de poder considerar-se o envolvimento com as vítimas direto, como dita a definição de Hayner, este não deve ser considerado amplo, uma vez que não corresponde a um elemento que tenha assumido um grande destaque, nem no funcionamento da comissão, nem no produto final do seu trabalho. Além dos depoimentos encontrados nos relatórios, o arquivo da comissão dá conta de muitos outros que nunca chegaram a ser publicados, mas sobre os quais não é possível obter informação concreta, uma vez que se desconhece a sua real extensão. Também neste elemento da definição a análise chegou a um resultado positivo, ainda que parcialmente, com base na ressalva que acompanha a definição. Hayner alerta para a necessidade de evitar uma definição demasiado rígida e para o facto de as diferenças entre comissões serem relevantes ao invés de excludentes. Considerou-se, portanto, que a confirmação parcial não é significativa para invalidar a classificação da Comissão do Livro Negro como comissão de verdade.

Importa ressalvar ainda, no que diz respeito ao contacto com as vítimas, que a Comissão do Livro Negro não era a única a fazer trabalho de investigação sobre os crimes e a ouvir os envolvidos. A Comissão de Extinção da ex-PIDE/DGS, criada em 1974 e extinta em 1991 para preparar os procedimentos legais para os julgamentos dos ex-membros da polícia política, desempenhou funções semelhantes. A sua existência evidencia dois dos fatores mais distintivos da Comissão do Livro Negro: não foi criada numa democracia que favoreceu o perdão –pelo contrário, surgiu no rescaldo de um processo altamente punitivo–, nem serviu para fazer recomendações para julgar os responsáveis, função que a Comissão de Extinção da ex-PIDE/DGS assegurou. A coexistência das duas comissões poderá ter implicado um esgotamento das funções da Comissão do Livro Negro, criada três anos mais tarde.

Outra questão que merece reflexão prende-se com o impacto, que ocupa um espaço significativo na literatura sobre comissões de verdade, mas que por não fazer parte da definição de Hayner, não foi contemplada na análise. A ausência da Comissão no Livro Negro da literatura sobre a transição portuguesa é apenas um de vários indícios do reduzido impacto que terá tido. Ao contrário de outras comissões de verdade, como a sul-africana, a chilena ou a de El Salvador, a Comissão do Livro Negro não produziu recomendações para reformas institucionais ou para compensação das vítimas, pelo que, além de ter permanecido no tempo como um fiel repositório da verdade documentada, não deixou qualquer legado. Num inquérito25 realizado junto de 131 vítimas do Estado Novo, 40,5% dos inquiridos revelaram não conhecer os relatórios, embora 41,2% acreditem que tenham servido para disseminar a verdade sobre o regime. Este inquérito não permite, obviamente, inferir sobre a opinião geral dos portugueses em relação ao trabalho da comissão, mas não deixa de ser relevante: a amostra compreende um grupo de pessoas que teriam, à partida, um maior interesse, pela proximidade aos assuntos relatados no Livro Negro. E levanta duas questões: se aqueles de quem se esperava um maior interesse não têm memória da comissão ou desconhecem a sua existência, qual será o panorama geral? Terá a comissão cumprido o objetivo de chegar aos jovens?

O reduzido impacto da comissão, foi, aliás, um elemento incontornável durante as entrevistas. José Carlos Vasconcelos justificou-o com a falta de meios financeiros e humanos, a vida profissional muito preenchida dos membros e até algum desinteresse dos executivos que governam durante os 14 anos de trabalho da comissão. O enfoque na recolha de documentação em detrimento da recolha de testemunhos das próprias vítimas terá sido lesivo e limitador, por impossibilitar que os principais abusos –como a tortura– fossem devidamente documentados. Para António Capucho, a falta de interesse político, face a outros objetivos considerados prioritários, e a fraca dinâmica da própria comissão na promoção do seu trabalho justificam o impacto reduzido. Olhando para a imprensa da época, é notório que os primeiros anos da Comissão do Livro Negro coincidiram com uma época de enorme atividade política, que, por si só, dominou o espaço mediático. O passado autoritário esteve bastante presente, mas o enfoque recaiu em outras questões em nada relacionadas com a comissão, que, mesmo quando era noticiada, merecia apenas breves menções.

A questão do impacto não determina nem afeta a conclusão desta análise: casos como os do Uganda, da Bolívia ou do Haiti –cuja comissão é considerada uma tentativa malograda de procura da verdade (McCalpin 2012)– são consensualmente considerados na literatura sobre comissões de verdade, a par de outros como o da Argentina ou da África do Sul, cujos feitos são amplamente conhecidos. Não se pretende, com isto, tecer nenhuma ilação sobre o sucesso ou insucesso da Comissão do Livro Negro, apenas demonstrar que o fraco impacto não invalida que se enquadre na tipologia deste mecanismo de justiça transicional e conjeturar sobre os motivos que explicam a sua ausência da literatura sobre o caso português e, consequentemente, internacional.

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Recebido: 12.02.2021 Versão final: 10.08.2021 Aprovado: 29.10.2021

 

 

 


1 Decreto-lei n.º 171/77, de 30 de abril (DR 100/1977, Série I, 30/04/1977), Cria uma pensão a atribuir aos cidadãos portugueses que se tenham distinguido por méritos excecionais na defesa da liberdade e da democracia. https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/171-1977-251853. Consultado em: 08/12/2015.

2 Decreto-Lei n.º 709-A/76, de 4 de outubro (DR 233/76, Série I, 04/10/1976), Cria a ordem nacional denominada “Ordem da Liberdade”, destinada a distinguir e galardoar serviços relevantes prestados à causa da democracia e da liberdade, compreendendo os seguintes graus: grã-cruz, grande-oficial, comendador, oficial e cavaleiro. https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/709-a-1976-226996. Consultado em: 08/12/2015.

3 Lei 49/86, de 31 de dezembro (DR 300/1986, Série I, 31/12/1986), Aprova o orçamento do Estado para 1987. https://dre.pt/dre/detalhe/lei/49-1986-627050. Consultado em: 08/12/2015.

4 Lei n. 26/89, de 22 de agosto (DR 192/89, Série I, 22/08/1989), Atribuição de uma subvenção vitalícia aos cidadãos que participaram na revolta de 18 de janeiro de 1934. https://dre.pt/dre/detalhe/lei/26-1989-618515. Consultado em: 08/12/2015.

5 Lei 20/97, de 19 de junho (DR 139/1997, Série I-A, 19/06/1997), Determina que o tempo de prisão de clandestinidade por razões políticas pode ser considerado, a requerimento dos interessados, equivalente à entrada de contribuições, para efeitos de pensão de velhice ou de invalidez. Prevê a regulamentação desta lei pelo Governo, aprovando os procedimentos e demais medidas com vista à sua publicação. https://dre.pt/dre/detalhe/lei/20-1997-365346. Consultado em: 08/12/2015.

6 Despacho do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro, de 22 de abril (DR 94/1977, Suplemento, Série II, 22/04/1977). Disponível no arquivo da SGPCM.

7 A morte de Joaquim Barradas de Carvalho, em 1980, levou à nomeação de César Oliveira, em 1984.

8 Decreto-lei n.º 110/78, de 26 de maio (DR 120/78, Série I, 26/05/1978), Cria, junto da Presidência do Conselho de Ministros, na dependência do Primeiro-Ministro ou do membro do Governo em quem delegar, a Comissão do Livro Negro Sobre o Regime Fascista. https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/110-1978-294680. Consultado em: 08/12/2015.

9 Despacho do Gabinete do Primeiro-Ministro, de 9 de junho de 1978 (DR 132/1978, Suplemento, Série II, 09/07/1978). Disponível no arquivo da SGPCM.

10 Decreto-lei 33/85, de 31 de janeiro (DR 26/85, Série I, 31/01/1985), Estabelece normas sobre o acesso da Comissão do Livro Negro a todos os arquivos e documentos que permitam esclarecer o que foi o regime fascista em Portugal. https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/33-1985-328266. Consultado em: 08/12/2015.

11 Decreto-lei 210/85, de 27 de junho (DR 145/85, Série I, 27/06/1985), […] São fundidos os seguintes serviços: Museu da República e da Resistência e Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista, passando a denominar-se Comissão Instaladora do Museu da República e da Resistência […]. https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/210-1985-182032. Consultado em: 08/12/2015.

12 Decreto-lei 22/91, de 11 de janeiro (DR 9/91, Série I-A, 11/01/1991), Extingue a Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista. https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/22-1991-693843. Consultado em: 08/12/2015.

13 Carta enviada por Magalhães Godinho ao então Ministro dos Assuntos Parlamentares, Manuel Dias Loureiro. Disponível no arquivo da SGPCM.

14 Entrevistado em Lisboa a 9 de março de 2016.

15 Entrevistado em Lisboa a 6 de abril de 2016.

16 Entrevistado em Lisboa a 8 de abril de 2016.

17 Ata da reunião de 6 de janeiro de 1977 do Conselho de Ministros, disponível em http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=00791.001#!1. Consultado em: 04/04/2016.

18 Diário de Lisboa, 23 de abril de 1977, p. 20, “O processo do regime que oprimiu o povo português”. http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=06827.177.27821#!20 (consultado em: 23/06/2016) e Diário de Notícias, 23 de abril de 1977, p. 3, “Esclarecer opinião pública das violências praticadas”.

19 A informação sobre os relatórios que não chegaram a ser publicados foi encontrada em diferentes documentos disponíveis no arquivo da SGPCM, como atas de reunião ou cartas. Deve ressalvar-se que poderão existir outros, cujas intenções de publicar nunca chegaram a ser tornadas públicas ou mencionadas em ata.

20 Diário da Assembleia da República, série I, n.º 77, 24 de maio de 1978, pp. 2777-2799. https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/01/02/077/1978-05-23/2775). Consultado em: 13/07/2016.

21 Diário de Lisboa, 23 de junho de 1978, p. 5, “Comissão vai fazer o processo do regime que oprimiu Portugal”. http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=06829.179.28175#!5. Consultado em 23/06/2016).

22 Diário de Notícias, 23 de abril de 1977, p. 3, “Esclarecer opinião pública das violências praticadas”.

23 Os restantes nove relatórios, que tratam correspondência entre Salazar e personalidades relevantes do regime, não são relevantes para esta dimensão de análise: embora incluam descrições historicamente relevantes sobre acontecimentos políticos e sobre o funcionamento dos principais instrumentos do regime, constituem reproduções de documentação cronologicamente organizada, sem um critério temático.

24 Decreto-lei n.º 110/78.

25 Filipa Raimundo, Sofia Serra da Silva e Joana Rebelo Morais, Inquérito sobre a memória da oposição e resistência ao Estado Novo, Instituto de Ciências Sociais, 2016.