DOI: 10.18441/ibam.23.2023.84.57-84
Peter W. Schulze
Universität zu Köln, Alemanha
kontakt-pbi@uni-koeln.de
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-5767-6536
Da época da escravidão no Brasil, que perdurou por mais de 350 anos e ainda hoje se manifesta no racismo estrutural do país (Oliveira 2021), existem poucos documentos visuais em mídias como pintura, aquarela e fotografia, que sejam de autoria de pessoas escravizadas (Schwarcz 2018b, 534). Ao mesmo tempo, o Brasil preserva um vasto arquivo de imagens sobre a escravidão, muitas das quais foram feitas em cumplicidade com o sistema escravocrata, exercendo nas representações “epistemic and ontological colonial violence” (Santos e Meneses 2020, xxii). São documentos de um arquivo que Beatriz Nascimento (2018, 98) chamou de “polícia colonial”; nesse arquivo “o negro aparece quando há necessidade de reprimi-lo”. O próprio arquivo está baseado na violência escravocrata, como aponta Saidiya Hartman (2008, 10): “The archive of slavery rests upon a founding violence. This violence determines, regulates and organizes the kinds of statements that can be made about slavery and as well it creates subjects and objects of power”.
No Brasil colonial, houve uma tendência “pela folclorização, a fossilização e a fixação das culturas negras em imagens de controle” (Carneiro 2019, 271), de certa forma presente até hoje, porém contestada cada vez mais, sobretudo nas artes afro-brasileiras. Há duas décadas, vêm se apropriando de representações da escravidão nas suas obras, que, no conjunto, formam uma espécie de contra-arquivo. As respectivas obras se posicionam a partir do arquivo colonial e contra ele.1 O que a artista e ensaísta Musa Michelle Mattiuzzi chama de “arquivo podre do Brasil em relação às histórias negras”2 está sendo repensado artisticamente e reconfigurado em outras representações, no sentido estético e político. Uma pioneira dessa vertente artística, desde meados dos anos 1990, e um dos principais nomes da arte brasileira contemporânea é Rosana Paulino (*1967).3
Certos aspectos da obra de Rosana Paulino correspondem ao que Hal Foster chama de “archival impulse” na arte contemporânea internacional. Artistas com tais abordagens procuram “to make historical information, often lost or displaced, physically present”; a obra de Paulino corresponde, de maneira singular, à vertente artística que usa as fontes num “gesture of alternative knowledge or counter-memory” (Foster 2004, 4). O “impulso arquivístico” de Paulino é descolonial e manifesta-se na apropriação do arquivo visual do Brasil escravocrata, especialmente de fotografias que desumanizam pessoas escravizadas e, ao mesmo tempo, naturalizam a violência racista. Muitos retratos de pessoas negras – tirados por fotógrafos como Alberto Henschel, Christiano Jr., Augusto Stahl, Marc Ferrez, João Ferreira Villela e Jorge Henrique Papf – são marcados por um “taxonomic ordering of images of the body” (Sekula 1986, 16) plenamente racista, que tem uma forte reverberação no imaginário sobre pessoas negras no Brasil até hoje. Como este artigo pretende demonstrar, a apropriação do arquivo colonial fotográfico, que contém formas de convivialidade baseadas na violência escravocrata, é fundamental na obra de Rosana Paulino.
Através de certas práticas imagéticas, a artista cria, particularmente na videoinstalação Das avós (2019),4 uma espécie de arquivo vivo, uma memória baseada na ancestralidade afro-brasileira, que surge a partir da história da escravidão, com seus vazios e representações racializadas, marcadas pela violência racista que se exerce “pela impiedosa tendência a destruir a identidade do sujeito negro” (Costa 1983, 2-3). Na obra de Rosana Paulino, o trauma transgeracional da escravidão é igualmente presentificado como a dignidade e humanidade das pessoas escravizadas, retratadas em fotografias coloniais que assumem um papel de grande importância para a ancestralidade afro-brasileira.
Em Das avós (2019), Rosana Paulino desenvolve uma prática imagética que reconfigura fotografias de mulheres negras no Brasil do século xix. A configuração audiovisual do vídeo é uma espécie de cubo branco silencioso, no qual uma mulher negra, descalça, de roupa branca, aparece, se senta no chão, de frente para a câmera, e abre cuidadosamente um pacote embrulhado de pano branco que contém um tecido, também branco, dentro de uma cesta, de onde tira um carretel de fio vermelho e uma agulha. Num movimento lento e compenetrado, a mulher retira um tecido transparente do cesto, observa-o e começa a costurá-lo na sua blusa. Contra o fundo da roupa branca, torna-se visível que o tecido transparente contém o retrato fotográfico de uma mulher negra. Aparece como se fosse uma imagem latente que se revela na roupa da performer ao fixá-la no corpo. Essa alusão ao processo fotoquímico destaca, via contraste, uma revelação imagética baseada numa prática corporal profundamente humana.
O ato de costurar cria laços entre imagem e corpo de duas mulheres negras, entre a retratada, reflexo de um Brasil escravocrata, e a performer no presente. Este resgate da ancestralidade afro-diaspórica implica uma revivescência dolorosa diante das atrocidades da escravidão. De fato, a forma como a costura é realizada, com a linha vermelha bem visível e o final do fio solto, corresponde à sutura5, ou seja, à ligação usada pela medicina cirúrgica para manter unidos tecidos do corpo humano depois de terem sido cortados por uma ferida. No plano simbólico, o fio cria uma conexão ancestral negra e, simultaneamente, torna visível a ferida que é o trauma coletivo da escravidão. Como Marisa Corrêa da Silva salienta, a consequência da escravidão e do racismo estrutural no Brasil é um “processo traumático secular” que resulta numa “transmissão transgeracional deste traumático [sic]” (Silva 2011, 38).
Cabe mencionar que a escravidão com suas marcas traumáticas é um tema central na obra de Rosana Paulino, frequentemente abordado por meio de fotografias e tecidos suturados. O fio vermelho também aparece em obras anteriores, inclusive em Atlântico Vermelho (2017), uma obra chave de Paulino.6 Trata-se de um conjunto de imagens de técnica mista que retoma a iconografia relacionada ao tráfico negreiro e ao discurso pictórico racista. Impressões sobre tecidos ligados por sutura mostram fotografias de pessoas negras escravizadas e caravelas, além de azulejos e um osso humano no centro da imagem. A profunda reflexão imagética da obra manifesta-se na disposição e reconfiguração de imagens emblemáticas, suas convenções iconográficas e suas funções no discurso pictórico. Essa crítica imagética inclui a retomada do formato tríptico da arte sacra católica e uma desnaturalização de fotografias etnográficas racistas através de recortes de corpos e rostos. Outro aspecto significativo dessa reflexão são imagens de azulejos que evocam visualmente o mar e simbolizam o império colonial português. Nos azulejos, além da impressão do título da obra em letras vermelhas, também se estendem longos fios soltos da mesma cor, chamando a atenção ao fato de que o Atlântico Negro7 foi manchado de sangue pelo tráfico escravista e ainda é uma ferida aberta.
Desde sua primeira obra de maior repercussão, a instalação Parede da memória (1994/2015), Rosana Paulino usa fotografias conectadas por linha de algodão para refletir sobre questões da ancestralidade afro-brasileira. Nessa obra, a artista usou, do seu arquivo privado, onze retratos fotográficos de sua família, fotocopiados, coloridos com aquarela e montados numa parede na forma de 1500 patuás, amuletos de proteção usados em práticas religiosas de matriz africana. Na instalação, de tamanho monumental, feito a partir de pequenas imagens (8 x 8 x 3 cm cada), Paulino já havia criado uma complexa prática memorialística que aborda o tema da (in)visibilização da população afro-brasileira. Como é característico na obra de Paulino, a costura cria laços afetivos com retratos fotográficos, transformados na sua materialidade e no seu dispositivo imagético, nesse caso com referência ao gênero popular da fotopintura e à espiritualidade de matriz afro-brasileira. Já na série Bastidores (1997), a violência na representação – no sentido político e estético – de mulheres negras vem à tona. Fotografias de familiares femininas, transferidas sobre tecido em bastidor de madeira, são marcadas por uma costura rude que cobre os olhos, a boca ou a garganta, evocando a violência, o apagamento e o silenciamento sofridos pelas mulheres negras na sociedade brasileira. Vale ressaltar que a costura (ou sutura), tão central na obra de Rosana Paulino, tem conotações biográficas e sociais significativas: trata-se de um trabalho mal pago, com frequência realizado por mulheres pobres, muitas delas negras, como a mãe da própria artista, com quem ela aprendeu essa técnica cultural quando criança. Aliás, na sua obra, Rosana Paulino ressignifica a “ideia de costura” como “próprio tecido social” do Brasil.8 Depois de Parede da memória e Bastidores, a artista começou a se apropriar de fotografias do arquivo colonial, utilizando a sutura para desnaturalizar as representações fotográficas coloniais e refletir sobre as feridas e o trauma coletivo causados pela escravidão, por exemplo, em Assentamento (2013). Essa complexa instalação de técnica mista transforma três fotografias taxonômicas de uma mulher negra nua, de vista frontal, lateral e traseira, tiradas por Augusto Stahl a fim de provar e promover o racismo científico do zoólogo Louis Agassiz. Assentamento reconfigura, entre outros procedimentos artísticos, a representação desumanizante através de múltiplos cortes e suturas nas imagens ampliadas ao tamanho natural da mulher e de acréscimo de desenhos de um coração, um feto e raízes no lugar das pernas, restabelecendo simbolicamente a dignidade da mulher cruelmente coisificada num regime racista.9
A prática imagética de Rosana Paulino de deslocar e suturar retratos fotográficos de mulheres negras do Brasil escravocrata, trazendo à tona o trauma transgeracional e, ao mesmo tempo, afirmando a ancestralidade afro-brasileira, é particularmente complexo e multifacetado em Das avós. No vídeo, as primeiras três fotografias suturadas na altura do peito da performer, as mais visíveis no seu vestido e mais presentes nos planos cinematográficos, foram tiradas por Alberto Henschel no estúdio da Photographia Allemã, no Recife, em 1869. A primeira fotografia retrata uma mulher de meia-idade com turbante e blusa brancos, colares e um xale listrado, que encara diretamente a câmera com um olhar profundo. A testa enrugada e olheiras indicam uma vida dura, mas a expressão facial da mulher não parece expressar resignação, mas sim firmeza. O segundo retrato mostra uma mulher jovem com cabelo crespo muito volumoso; ela usa brincos, um longo colar e uma blusa branca ornamentada. Mesmo que os olhos da mulher estejam mirando a câmera, seu olhar parece estar voltado para dentro, como se ela não consentisse o ato fotográfico. A terceira fotografia suturada pela performer retrata uma mulher de aproximadamente trinta anos com turbante e blusa brancos, enfeitada com um brinco de prata e um colar duplo de búzios. O olhar da mulher se dirige à câmera, mas um pouco além dela, dando a impressão impressão de um estado de devaneio, como se ela mentalmente não estivesse presente no ato fotográfico, e sim num outro lugar.
As três fotografias de Alberto Henschel fazem parte de uma série com o título Neger Typen (“tipos de negros”). Essas fotografias, recontextualizadas por Rosana Paulino, possuem as inscrições “Negra de Pernambuco” (primeira e terceira imagem) e “Retrato-cafusa”, atribuições classificatórias de viés etnográfico aparentemente racista. Em vez de representar a individualidade da pessoa fotografada, comum nos retratos de pessoas brancas fotografadas por Henschel, as fotos da série Neger Typen mostram um suposto tipo humano. A tipificação também veio à tona através de um padrão estético homogêneo: em todos os retratos da série, as pessoas aparecem de frente ou de três quartos de perfil, bem iluminadas contra um fundo branco. As mulheres da série são retratadas geralmente com indumentos de tradições africanas, como turbantes, lenços e colares particulares, sendo que algumas delas foram obrigadas a posarem nuas ou com os seios semi-expostos. Fica evidente a violência de uma representação desumanizante das pessoas negras, no sentido racista da construção de “tipos humanos primitivos”. Representadas como alteridade do padrão étnico-cultural eurocêntrico, as pessoas retratadas servem como objetos exóticos e em parte sexualizados. Nos retratos, manifesta-se um olhar branco que coloniza os corpos negros, uma representação em cumplicidade com a exploração das pessoas escravizadas no Brasil Imperial.
Em relação às fotografias de pessoas negras da época do Brasil Imperial, Grunspan ressalta: “Essas fotos revelam também uma presença escondida: o branco. Ele é a marca, a referência [...]. Ele é onipresente, onipotente. Ele permanece, direta ou indiretamente, a razão de ser da imagem” (Grunspan 1992, s.p.). No caso da série Neger Typen, a “razão de ser da imagem” estava ligada ao interesse econômico de atender à demanda de fotografias etnográficas, de retratos racializados e geralmente racistas, muito requeridas na época do auge da expansão colonialista europeia. Foi Alberto Henschel e sua Photographia Allemã que produziu o maior número de retratos de pessoas negras no Brasil: cerca de 120 fotografias foram identificadas por Prussat.10 Das fotografias de pessoas negras tiradas no Brasil Imperial, as imagens da Photographia Allemã estavam entre as que mais circularam, inclusive no exterior. Essas fotografias foram adquiridas por viajantes, cientistas e outros colecionadores, além de serem comercializadas na Europa. As imagens da série Neger Typen circulavam amplamente e foram inseridas em diferentes constelações imagéticas. Em uma viagem à América do Sul, o naturalista alemão Alphons Stübel comprou uma grande quantidade de fotografias, com as quais montou sua coleção fotográfica e uma exposição, organizada por países e seus respectivos “tipos raciais”. Das imagens adquiridas na Photographia Allemã, encontravam-se 37 retratos da série Neger Typen, incluídos num conjunto de 43 imagens de pessoas negras do Brasil, montadas horizontal e verticalmente em sequências e classificadas, por exemplo, como “mulatas” ou “cafuzas”, e com anotações nos cartões, informando que algumas dessas pessoas tinham nascido na África (Kohl 2005, 59 e 68-69). Nessa disposição, a tipificação etnográfica racista inerente às fotografias de Henschel se torna ainda mais forte. Divididos por sexo, serializados e colocados em passe-partouts uniformes, os retratos diminuem ainda mais a individualidade das pessoas representadas, submetidas não só a um regime de olhar racista, mas também a um dispositivo expositivo que ampliou a violência taxonômica. As fotografias produzem um conhecimento etnográfico pseudocientífico sobre “tipos de negros”, cujo viés racista é reforçado pelo dispositivo imagético de Stübel. A observação de Denise Ferreira da Silva, de que “há uma lógica da obliteração que permeia as ferramentas do conhecimento racial” (Ferreira da Silva 2019, 34), se manifesta claramente nas fotografias de Henschel e no dispositivo de Stübel, com a tentativa de negar a subjetividade dos indivíduos retratados.
Certamente, “o ato fotográfico”11 dirigido por Henschel colocou as mulheres retratadas em uma posição subordinada, além de explorá-las, comercializando suas imagens. Embora as fotografias sejam claramente de cunho racista, sujeitando as pessoas a tipos étnicos sem indicar seus nomes, as mulheres, no entanto, encontram formas de resistência. As mulheres nas três fotografias escolhidas por Rosana Paulino exibem uma postura ereta e um olhar firme, quase desafiador, como no primeiro retrato, ou olhares que quase encaram a câmera, mas parecem escapar mentalmente do ato fotográfico. A observação de Manuela Carneiro da Cunha, de que no retrato fotográfico a pessoa escravizada “é vist[a], não se dá a ver” (Cunha 1988, 23), se aplica a muitas fotografias da época, mas não às imagens selecionadas e reconfiguradas por Rosana Paulino no início de Das avós.
Os retratos contêm elementos que podem ser compreendidos pelo “studium”, no sentido de Roland Barthes: se por um lado, os traços faciais e indumentos como turbantes, colares e brincos indicam especificidades étnico-culturais, por outro, os regimes da imagem e sua historicidade trazem à tona um discurso visual baseado num padrão taxonômico de acordo com o racismo científico que classifica “espécimes” humanos, hierarquizados segundo certos “tipos” étnicos, numa ideologia que inferioriza pessoas negras. Relutante a elucidações do “studium”, o “punctum” barthesiano12 se manifesta marcadamente nas expressões faciais, sobretudo no olhar das mulheres retratadas por Henschel: no sentido de um furo, de uma pequena mancha, e também de um lance de dados, pois aparecem nessas fotografias elementos que não podem ser compreendidos por nenhuma análise. Trata-se de detalhes que escapam à intenção do fotógrafo, que são capazes de provocar emoções intensas na recepção das imagens. Assim, na reconfiguração estética e contextual das fotografias por Rosana Paulino, as mulheres fotografadas alcançam uma força icônica como representantes da ancestralidade afro-brasileira, uma conexão já indicada pelo título Das avós. A reconfiguração das três fotografias de Henschel, assim como dos retratos que se seguem no vídeo, se dá através de diversos procedimentos estéticos. Primeiramente, as fotografias são ampliadas e recortadas conforme as silhuetas das mulheres retratadas. Retiradas do formato retangular com o fundo neutro e removidas das inscrições no passe-partout com suas implicações taxonômicas de viés racista, destacam-se as formas corporais singulares e, portanto, a individualidade de cada uma das mulheres. Também a medialidade é diferente das fotografias históricas. Em vez de papel e cartão como suporte da imagem, os retratos fotográficos são impressos em tecido. O material suave e maleável convém a uma prática imagética que difere fundamentalmente da função das fotografias originais, que serviam em primeiro lugar como objetos de coleção, atendendo à demanda de imagens “exóticas” – ou seja, fotografias explorando o “postcolonial exotic” numa “global commodification of cultural difference” (Huggan 2001, vii), particularmente na Europa em plena expansão colonial. Ao contrário desse extrativismo visual baseado em representações alterizantes, a abordagem em Das avós se caracteriza pela afetividade e pela (re)construção de laços ancestrais. Estas dimensões se manifestam numa prática imagética particular, que implica múltiplas reconfigurações das imagens fotográficas coloniais apropriadas no vídeo de Rosana Paulino. A performance imagética altera os três elementos da imagem identificados por Husserl, que diferencia entre Bildträger (suporte da imagem), Bildobjekt (objeto da imagem: a representação pictórica) e Bildsujet (tema da imagem: o referente) (Husserl 1980, 19-20). Com o ato de suturar os retratos fotográficos na própria blusa, a performer não só traz à tona uma outra materialidade como suporte da imagem, mas também transforma a representação pictórica e o tema da imagem. Numa espécie de ritual imagético, os retratos são suturados na roupa branca com um fio vermelho que atravessa o alto da cabeça das mulheres negras. Revela-se uma conexão com práticas de religiões de matriz africana, particularmente o candomblé. Nos seus cultos, o branco, mas também o vermelho, são cores predominantes nos tecidos, guias e colares. Cabe destacar a grande importância que o orí, a “cabeça como divindade” (Jagun 2015, título), tem no candomblé, que desde seu surgimento na Bahia no século xix teve um papel fundamental na resistência cultural dos africanos e, depois, dos afrodescendentes (Prandi 2004, 223). Embora seja uma “divindade individualizada”, o orí também carrega a energia ancestral (Jagun 2015, 34 e 40). A alusão implícita às religiões de matriz africana reforça o caráter ritualístico da obra e sua conexão com a ancestralidade.
Como aponta Leda Maria Martins (2021, 59), a ancestralidade tem um papel fundamental nas culturas afro-brasileiras: “é motriz do corpo individualizado, do corpo coletivo e do corpus cultural”, bem como da “produção de conhecimento”. No caso do ritual imagético em Das avós, trata-se de uma afirmação da ancestralidade de matriz africana, manifesta numa espécie de corpo-imagem, que conecta três dimensões do corpo: o individual, o coletivo e o cultural. Com essa prática imagética, transforma-se fundamentalmente a “razão de ser da imagem” (Grunspan, s.p.), inclusive o Bildobjekt e o Bildsujet (Husserl 1980, 19-20). O ato da sutura reconfigura os retratos: de objetos de um ato fotográfico racista as pessoas retratadas passam a sujeitos de uma conexão ancestral.
Depois dos retratos reconfigurados em ícones da ancestralidade negra, aparece uma das fotografias que mais ganha destaque em Das avós: um retrato duplo de uma mulher negra junto a um menino branco. Num longo close-up, as mãos da performer tocam a imagem que se torna visível pelo fundo de seu corpo. Ela lentamente envolve a imagem nas mãos, as leva à sua boca e fecha os olhos. Um plano aberto mostra a performer no espaço branco, suturando a imagem no seu vestido, seguido por um close-up que acentua a sutura do fio vermelho no alto da cabeça da mulher.
O retrato duplo é a fotografia intitulada “Augusto Gomes Leal com a Ama-de-Leite Mônica”, feito por João Ferreira Villela no Recife por volta de 1860. Essa fotografia capta, num plano geral, um menino branco de pé com a cabeça encostada no braço de sua ama negra, sentada no centro da imagem e, com a mão, ele segura o antebraço dela. Através da roupa, é possível identificar um alto status social: o menino está vestido de terno e com gravata-borboleta; a mulher usa um vestido e um xale luxuosos, seu pescoço é adornado com um elegante colar. A fotografia de Villela teve e ainda tem muita repercussão no discurso sobre as relações socio-étnicas no Brasil. Sendo uma imagem emblemática de uma mulher negra na sua função como ama de leite para uma criança branca, serviu tanto como apologia da brasilidade mestiça supostamente harmoniosa quanto como crítica da violência do sistema escravocrata brasileiro.
A relação entre amas de leite e filhos de proprietários na sociedade escravocrata brasileira foi mitificada por Gilberto Freyre. Serviu como um dos pilares argumentativos da sua concepção harmoniosa de mestiçagem. Essa “ideologia da mestiçagem” se tornou o discurso dominante da brasilidade entre o final dos anos 30 até os anos 70 e tem fortes reverberações até hoje (Costa 2001, 144). Freyre idealiza o relacionamento entre amas e filhos dos senhores como suposta prova da convivialidade harmoniosa entre brancos e negros e sua sociabilidade afetiva. Entre os documentos que servem como prova para sua argumentação se destacam fotografias, evidentes no ensaio Por uma sociofotografia. Em relação à Coleção Francisco Rodrigues, importante arquivo de fotografias brasileiras dos anos 1840 até 1920, Freyre cunha o termo “sociofotografia”, definido como “valioso tipo de documentação, além de físico-antropológica, sociocultural” (Freyre 1983, 15). O estudioso afirma sobre a brasilidade contida nesses documentos:
A sociofotografia, relativa ao mesmo tipo de passado social brasileiro – o patriarcal-escravocrata – prolongado de certo modo em tempos sucessivos, teria tido seus começos sistematicamente brasileiros em não poucas fotografias em que aparecem evidências de relacionamentos particularmente afetivos entre brasileiros senhoris e brasileiros servis (Freyre 1983, 15).
Para sustentar essa asserção, se refere a dois retratos duplos, ambos cartes de visite, que mostram uma ama com a criança sob seu cuidado, inclusive a fotografia “Augusto Gomes Leal com a Ama-de-Leite Mônica”.13 Numa apologia da constelação socio-étnica representada nesses retratos, Freyre afirma: “Algumas destas já sociofotografias chegam a ser expressões de uma extrema afetividade da parte das chamadas mães negras – gente servil de categoria alta – para com as crianças de casas-grandes” (Freyre 1983, 16).
Os comentários de Freyre, baseados na “sociofotografia” de amas de leite, correspondem a sua exaltação acrítica da brasilidade mestiça, no plano cultural, já apresentada em Casa-grande & senzala (Freyre 2011), publicação fundamental, de 1933, para a “‘construção narrativa’ da nação brasileira” (Costa 2001, 146) e “o mito da democracia racial, componente indispensável da ideologia da mestiçagem” (Costa 2001, 149). Sintomático do pensamento de Freyre, os dois textos em questão, publicados com um intervalo de cinquenta anos, não consideram devidamente a violência sistêmica da sociedade escravocrata. Freyre relativiza a extrema violência e a sistemática desumanização das pessoas negras na sociedade escravocrata ao salientar os relacionamentos afetivos entre elas e a classe dominante branca.
A importância da fotografia intitulada “Augusto Gomes Leal com a Ama-de-Leite Mônica” no discurso sobre o Brasil escravocrata também se manifesta no segundo volume da eminente História da vida privada no Brasil Império. Além de figurar como imagem da capa, o historiador Luiz Felipe de Alencastro dedica o epílogo do livro à fotografia de Villela. Na interpretação do retrato do menino apoiando-se na sua ama, Alencastro chega a uma conclusão oposta à idealização de Freyre: “Uma união fundada no amor presente e na violência pregressa. A violência que fendeu a alma da escrava, abrindo o espaço afetivo que está sendo invadido pelo filho do senhor. Quase todo o Brasil cabe nessa foto” (Alencastro 1997, 440).
Sem dúvida, Mônica é exposta a várias formas de violência e exploração cruéis, tanto no seu papel de ama como na sua representação fotográfica, que se poderia resumir com as palavras de Alencastro: “Presa à imagem que os senhores queriam fixar, aos gestos codificados de seu estatuto” (Alencastro 1997, 339). Apesar de não ter ido ao estúdio do fotógrafo por vontade própria, de usar uma roupa elegante que não era dela e ter sido fixada numa pose aparentemente não escolhida, Mônica encontra sim formas de resistência, expressa sua subjetividade no ato fotográfico. De postura ereta, ela olha à câmera sem traços de subserviência. Sua expressão facial sombria contrasta com a encenação de uma relação afetiva idealizada, de fato baseada no regime de trabalho forçado da escravidão. Um detalhe particularmente significativo na aparência de Mônica, salientado por Koutsoukos, é a “forma como se enrolou no xale, como se fora um pano-da-costa” (2007, 2). Aparentemente, Mônica utiliza o xale como um indumento ligado ao âmbito das religiões de matriz africana, fundamentais para a resiliência da população afro-diaspórica e sua resistência contra o apagamento de suas identidades culturais.14
Mesmo que haja certa agência de Mônica no ato fotográfico, ela está exposta a uma violência epistêmica na representação fotográfica. Além disso, ela sofreu uma exploração imagética, já que sua imagem lhe foi usurpada no ato fotográfico. Como ressalta Grunspan em relação às fotografias de ama de leite, “a imagem não lhe é destinada” (1992, s.p.). Nos retratos, a ama aparece como uma espécie de extensão da criança senhorial, uma figura reduzida a sua função profissional.15
Na época da escravidão, as amas de leite geralmente eram escravizadas que pertenciam às famílias para as quais foram obrigadas a trabalhar. Com frequência, essas mulheres eram separadas de seus próprios filhos para cuidar e alimentar as crianças brancas dos senhores. Não raramente, as mulheres negras eram alugadas como amas de leite por seus donos e as suas próprias crianças vendidas, o que fica evidente nos anúncios da época, como no seguinte exemplo, publicado no Jornal do Commercio, de 3 de agosto de 1850: “Aluga-se uma preta para ama com muito bom leite, de quarenta dias e de primeiro parto, é muito carinhosa para as crianças, não tem vício algum e é muito sadia; e também se vende a cria” (apud Magalhães e Giacomini 1983, 77). Os retratos idealizados das amas de leite invisibilizam a violência sofrida pelas mulheres negras e a separação forçada de seus filhos. Quase não existem fotografias que testemunhem a existência dos próprios filhos, nem que apontem suas histórias e preservem conexões genealógicas, como no caso das famílias de senhores, que usavam a fotografia como meio de representação e artefato de preservação da memória familiar. Nesse sentido, as crianças brancas retratadas com suas amas de leite aparecem, metaforicamente, como signos da ausência de seus filhos negros, como espaços em branco nas genealogias das famílias negras.
A violência traumática sofrida pelas amas negras é um tema recorrente na obra de Rosana Paulino, abordado em instalações, desenhos e esculturas anteriores à videoinstalação Das avós. Na série intitulada Amas de Leite (2005), desenhos em tinta acrílica e grafite sobre papel mostram seios marrom-avermelhados, separados do corpo no espaço pictórico vazio do papel branco. Finas linhas de artérias nos seios se estendem, onduladas, no espaço branco, onde terminam em gotas brancas e vermelhas, aparentemente de leite e sangue, evocando as vidas nutridas e a violência sofrida pelas amas nomeadas no título. Os desenhos se assemelham a representações anatômicas e, ao mesmo tempo, apontam a vulnerabilidade de corpos cruelmente explorados e de subjetividades mutiladas. Eles evocam o trauma sofrido por mulheres negras exploradas na sociedade escravocrata que as desumaniza. O pequeno formato (32,5 x 25 cm) e as linhas filigranas acentuam uma perspectiva íntima, contrastada, de certa maneira, pela concepção de série e a ausência de rostos, que corresponde à desindividualização de sujeitos reduzidos a fornecedoras de leite. Uma obra da série, Seios com leite e sangue II, mostra a acumulação de seios deslocados, cada um de forma e tonalidade particular, como signos de individualidade num regime de poder que coisificava os corpos das mulheres negras. No desenho mencionado, os seios parecem formar um corpo pós-humano, surgido de mutilações causadas pela violência institucionalizada da escravidão. Essa corporalidade se assemelha às representações de certas esculturas de Hans Bellmer e de Louise Bourgeois que evocam estados psíquico-corporais mutilados. Rosana Paulino faz uma contribuição importante para essa tradição artística com sua estética própria, no contexto da exploração de mulheres negras no sistema escravocrata do Brasil Imperial e suas duradouras reverberações psíquico-sociais.
Paulino dedicou-se à temática das amas de leite em obras de diferentes materialidades, suportes mediáticos e dispositivos de exposição. Fotografias históricas dessas mulheres são elementos centrais em duas instalações: Ama de Leite (2007) e As amas (2009).16 Porém, as fotografias que testemunham a violência sofrida pelas mulheres exploradas como amas não são usadas em simples reproduções. Ao contrário, a artista apropria-se dessas imagens, transformando-as. Evita a reiteração da violência do “othering”,17 da construção do outro como inferiorizado e complementar ao sujeito branco hegemônico, manifesto nas próprias representações fotográficas, que são resultados de um ato fotográfico ao qual as mulheres tiveram que se submeter na sua função profissional.
Apropriações de fotografias racistas formam a base da instalação Ama de Leite (2007). Nessa obra, oito monotipos escuros de figuras humanas sobre tecidos claros estão suturados como conjunto assimétrico montado na parede. Fitas brancas de cetim conectam as figuras nos tecidos com garrafas de vidro no chão, nas quais encontram-se fotografias enroladas de mulheres negras, só parcialmente visíveis. A instalação retoma e reconfigura fotografias desumanizantes de mulheres negras do Brasil Imperial. Várias dessas fotografias circularam amplamente e se tornaram quase ícones do sistema escravocrata. Os monotipos retomam tais fotografias, mas sem reproduzir nem sua iconografia racista nem seu dispositivo imagético.-
Como Ryan aponta em relação à fotografia colonial, “photography did not so much record the real as signify and construct it” através de “rhetorical and pictorial devices […] and different visual themes” (Ryan 1997, 214). No caso das fotografias de mulheres negras no Brasil, essa construção e significação do real implica a afirmação de uma ordem social escravocrata baseada na subordinação e objetificação de pessoas racializadas. Entre as fotografias apropriadas nos monotipos encontram-se algumas das representações mais desumanizantes e também mais conhecidas de mulheres negras do Brasil oitocentista. Uma dessas fotografias, “Lavadeira” (c. 1865), de Christiano Jr., mostra, de frente, uma jovem mulher negra com os seios expostos e o olhar desviado, aparentemente constrangida face ao ato fotográfico que explora sua nudez. Trata-se de um “spectacle of the other” (Hall 1997, 223): a fotografia constrói uma diferença racial através de regimes de representação estereotipados, de viés etnográfico, segundo os quais pessoas negras são designadas como tipos “primitivos”, e não como indivíduos. Outra fotografia, “Babá brincando com criança em Petrópolis” (1899), de Jorge Henrique Papf, retrata uma mulher negra na posição de um cavalo de brincar, com uma criança branca sentada em suas costas. A humilhação da mulher nessa pose, acentuada por um high-angle shot, se manifesta em seu olhar de baixo, direcionado à câmera, enquanto a criança aparece de low-angle, afirmando, na encenação fotográfica, sua posição superior à mulher cruelmente coisificada como animal de brinquedo. Na fotografia de Papf smanifestam-se “inter-racial looking relations” (Kaplan 1997, 3) que privilegiam o olhar branco e inferiorizam a mulher negra a uma mera “to-be-looked-at-ness” (Mulvey 1993, 116). É importante ressaltar que “Babá brincando com criança em Petrópolis” foi tirada onze anos depois da abolição da escravidão. Esse fato evidencia as continuidades da sociedade escravocrata na Primeira República e para além dessa época, assim como a “passagem, no Imaginário [sic] social, dos papéis da ama-de-leite à babá, da mucama à empregada doméstica, ocupados, ainda hoje, pelas mulheres negras na sociedade” (Paulino 2011, 58).
Os regimes de representação racializadas, e plenamente racistas, das fotografias que integram Ama de Leite, são apropriados por Rosana Paulino, tanto em sua iconografia quanto em seu dispositivo, que configurou a produção, circulação e recepção dessas imagens. As duas fotografias desumanizantes, ao mesmo tempo reflexo e afirmação do racismo estrutural no Brasil, são destacadas no conjunto dos monotipos: a imagem baseada na fotografia de Papf se encontra no centro, a de Christiano Jr. aparece três vezes. No entanto, os monotipos escuros em fundo branco reduzem os retratos fotográficos a silhuetas facilmente reconhecíveis devido à notoriedade dessas imagens emblemáticas da repressão racista, tão presente no imaginário sobre mulheres negras no Brasil até hoje. No plano simbólico, o procedimento estético de Paulino, com sua ética da imagem, interrompe a reprodução dessas fotografias e a perpetuação da violência contida nelas, sem promover recalque (Verdrängung), já que a existência dessas imagens e aquilo a que se referem são trazidos à tona. Os monotipos refletem o (intento do) apagamento da subjetividade das mulheres negras nos retratos fotográficos. Ao mesmo tempo, a redução dos detalhes imagéticos, particularmente dos traços faciais, tem o efeito de uma espécie de proteção dos direitos da personalidade das retratadas, apagados das fotografias e simbolicamente restituídos nos monotipos. Nesse procedimento estético, é significativa a reconfiguração midiática: ao contrário da “reprodutibilidade técnica” (Benjamin 1991) da fotografia, que possibilitou sua ampla circulação, a monotipia como técnica de gravura e impressão única, resulta em peças singulares. No caso da tripla repetição da fotografia apropriada de Christiano Jr., cada imagem difere em sua aplicação de tinta e adquire uma forma singular, contrastando com a lógica da reprodução de imagens racistas, buscando apagar a subjetividade das pessoas retratadas. A modificação do regime imagético também se dá através das fitas brancas de cetim que desembocam em garrafas de vidro. Além da óbvia dimensão simbólica, a exploração das amas de leite, o uso de fitas e garrafas reconfiguram o dispositivo fotográfico e o regime de olhar vigente. A reconfiguração escultural e mediática subverte o efeito de naturalização inerente às representações fotográficas das mulheres negras como amas. Para enxergar as imagens, o público é obrigado a se abaixar. Porém, mesmo nessa posição, as garrafas no chão só revelam uma vista parcial das imagens, desnaturalizando mais uma vez a representação racista das fotografias históricas. Além da função como dispositivo do olhar, as garrafas com as fotografias de mulheres adquirem dimensões simbólicas. Evocam mensagens na garrafa, um meio de comunicação incerto utilizado no mar. No contexto da instalação, a associação com o Atlântico Negro se impõe.
Como Ama de Leite, a instalação As amas também se apropria de fotografias históricas de mulheres negras e as insere numa complexa constelação multimidiática. No caso de As amas, trata-se de um site-specific. Essa obra de arte in situ foi desenvolvida na Fazenda Mato Dentro, em Campinas, numa construção sem janelas que funcionou como senzala, provavelmente usada por mulheres escravizadas domésticas. Nos buracos das paredes, que serviam para a ventilação do espaço úmido, Paulino instalou mãos de cerâmica e de papel machê. Fitas de cetim conectavam essas mãos com objetos no chão, que consistiam em fotografias (fragmentos de corpos de amas negras e crianças brancas), vidros de relógio, parafina e pétalas de rosas brancas, evocando oferendas – particularmente através das flores, usadas na umbanda, onde estão conectadas com os pretos-velhos, entidades consideradas purificadoras. Desenvolvida a partir do local histórico que testemunhou condições de vida desumanizantes, a obra desmistifica a idealização da relação entre amas de leite e filhos dos proprietários, que sugere um pertencimento às famílias que, na realidade, exploravam-nas. As respectivas fotografias, um tipo de retrato muitas vezes reiterado no Brasil Imperial e até na época pós-escravocrata, constituíram uma “convenção visual” cujo “papel era estratégico: essas fotos de duplas que diferiam na origem, na condição social e na cor conformaram uma espécie de orquestração romântica da escravidão africana” (Schwarcz 2018a, 50). Em As amas, a convenção visual das fotografias e a romantização de um relacionamento baseado na exploração escravocrata são trazidas à tona ao ressaltar a violência à qual essas mulheres foram expostas e a privação de uma vida afetiva justa. As fotografias das instalações no chão são, por um lado, close-ups de fotografias históricas de amas de leite e crianças que mostram mãos negras e brancas que não se tocam, contrastando com a asserção de Gilberto Freyre sobre a “extrema afetividade” das amas pelas filhos dos proprietários, uma narrativa que oculta a exploração desumana dessas mulheres negras. Por outro, são close-ups de mãos negras abertas, evocando o ato de dar uma oferenda, acentuando sua dignidade e, em ressonância com o dispositivo escultural das fotografias no chão, uma conexão com as religiões de matriz africana como fonte de resiliência e de resistência das pessoas escravizadas e seus descendentes. Fundamental da obra in situ, as instalações fotográficas no chão estão conectadas com as mãos nos buracos das paredes através de fitas de cetim, símbolos do leite das amas, exploradas pelas famílias escravizadoras a custo da privação transgeracional das mulheres negras e suas crianças. Particularmente chamativo da obra é a sua configuração espaço-temporal. As fotografias das mãos são objetos que presentificam instantes passados e se manifestam, cada uma, como “a neat slice of time” (Sontag 1990, 17). Em contraste com o tempo embalsamado das fotografias, as mãos esculpidas de papel machê entraram num processo de decomposição no decorrer da exposição, devido ao fato de que a artista, intencionalmente, não protegeu o material com formol contra fungos. Evidência das terríveis condições de vida, a grande umidade na antiga senzala resultou no surgimento de mofo na instalação. No decorrer da exposição, as mãos de papel machê e as fotografias foram completamente tomadas pelo mofo, constituindo uma metáfora da destruição das vidas das mulheres escravizadas que moravam naquele lugar.
A escravidão no Brasil e nas Américas resultou em um “genocídio do negro” (Nascimento 2016, título), que também se manifestou no trato das chamadas mães negras, exploradas cruelmente como amas de leite: “For every gesture of affection between the wet nurse and her white charge, there is a Black child who would have been torn away from her mother’s breast and placed in a baby hatch or left to die” (Löfgren e Gouvêa 2018, 7). Em Das avós, o citado retrato duplo, tirado por Villela, de Mônica na sua função de ama de um menino branco, causa uma intensa reação emocional por parte da performer. Em contraste com seu sorriso tenro provocado por uma fotografia anterior, esse retrato duplo afeta a performer a tal grau que as lágrimas lhe escorrem pela face. Sua reação emocional se manifesta também no ato da sutura: uma punção da agulha fere a mão, que deixa rastros de sangue nas imagens das mulheres escravizadas. Manifesta-se assim a ferida traumática do abandono forçado das crianças negras pelas suas mães, que fazia parte do sistema escravocrata e afetou profundamente as estruturas familiares afro-brasileiras. Porém, o sangue não só aparece como símbolo da violência sofrida pelas mulheres negras e do trauma transgeracional surgido dela. Ao mesmo tempo, a ferida estabelece simbolicamente laços de sangue que afirmam uma conexão ancestral – em consonância com os fios vermelhos que atravessam o orí das mulheres retratadas e recriam genealogias apagadas pela escravidão.
Em contraponto com o retrato duplo de Villela, com toda a violência nele contido, o ato da sutura também afirma laços familiares através de outras fotografias. Destaca-se o retrato “Negra com criança na Bahia” (c. 1869, Salvador da Bahia), de Alberto Henschel. Essa fotografia mostra, num plano geral de perfil, uma jovem mulher negra com seu filho às costas. Em contraste com o retrato original da mulher tipificada como vendedora de frutas, num cenário criado no estúdio do fotógrafo, em Das avós esse fundo é recortado para dar ênfase à individualidade da mulher com seu filho. Nessa reconfiguração, o retrato ganha força como imagem emblemática da maternidade negra.
Os retratos das mulheres negras são revelados na indumentária branca da performer e viram uma espécie de segunda pele, transformando-se em um corpo-imagem. Em seu conjunto, os retratos vertical e horizontalmente arranjados se assemelham a uma árvore genealógica que afirma a ancestralidade negra. Neste contexto é significativo que a performance tenha sido realizada por Charlene Bicalho (*1982), uma artista e ativista negra que, além de trabalhos de sua própria autoria, principalmente no âmbito da performance e do vídeo experimental, já concebeu ações e eventos coletivos focados na ancestralidade afro-brasileira e no orgulho negro, nos quais também participou como performer.19 Embora Das avós seja, sem dúvida, uma obra autoral de Rosana Paulino, o fato de Charlene Bicalho atuar no vídeo reforça a dimensão coletiva e transgeracional da obra. Além dos laços ancestrais entre as mulheres negras das fotografias oitocentistas e a performer, se manifesta a conexão entre Paulino, figura-chave da arte afro-brasileira desde os anos 1990, e a nova geração de artistas, representada por Bicalho.20
A conexão afetiva que a performer cria em sua prática imagética, baseada na corporeidade negra, contrasta com o espaço branco do vídeo e sua qualidade asséptica. Em Das avós, a configuração espacial evoca um cubo branco, característico dos espaços expositivos institucionalizados, como museus e galerias de arte, com suas implicações ideológicas:
A galeria ideal subtrai da obra de arte todos os indícios que interfiram no fato de que ela é ‘arte’. A obra isolada de tudo o que possa prejudicar sua apreciação de si mesma. Isso dá ao recinto uma presença característica de outros espaços onde as convenções são preservadas pela repetição de um sistema fechado de valores (O’Doherty 2002, 3).
Contrário à ideologia do espaço da arte como sistema fechado, Das avós traz à tona o arquivo fotográfico da escravidão no Brasil, com suas implicações históricas e as consequências até o presente, inclusive o racismo estrutural no país. Nesse sentido, o espaço branco também parece simbolizar a ausência da representação, na esfera estética e também política, de mulheres negras. No ato de ocupar o espaço (em) branco, a performer presentifica uma arte afro-brasileira baseada na ancestralidade de mulheres negras, resgatada do arquivo fotográfico colonial, no qual suas subjetividades, na maioria dos casos, estão invisibilizadas em representações racistas.21
Com a criação de um corpo-imagem, de uma memória corporal baseada em apropriações fotográficas do arquivo da escravidão, se estabelecem laços emotivos, surge uma convivialidade afetiva da performer com as pessoas retratadas. No âmbito das artes, Rosana Paulino logrou realizar o que a psicanalista Neusa Santos Souza reivindicou: a necessidade de “elaborar um gênero de conhecimento que viabilize a construção de um discurso do negro sobre o negro, no que tange à sua emocionalidade” (Souza 1983, 17). Esse gênero de conhecimento se baseia, na arte de Rosana Paulino e em Das avós em particular, em um conjunto de procedimentos estéticos que possibilitam um pensamento crítico em relação à escravidão no Brasil, sua representação e suas reverberações até hoje. Através da performance e de diversas transformações da materialidade, da medialidade e do dispositivo das fotografias apropriadas, se manifestam outros sentidos nos retratos tirados no contexto da sociedade escravocrata. Esses outros sentidos criados por Rosana Paulino se dão como significados e também percepções, rompendo com a naturalização das representações originais e reconfigurando as imagens e, consequentemente, suas reverberações no imaginário do Brasil.
Em Das avós, Rosana Paulino reflete o trauma coletivo transgeracional que a escravidão causou, especialmente em relação aos retratos de amas de leite. Seu vídeo mostra um processo penoso de cura das feridas abertas da escravidão. Das avós restabelece simbolicamente a dignidade das mulheres negras escravizadas e recria uma genealogia interrompida pela “necropolítica” (Mbembe 2003) em vigor no Brasil desde a época da escravidão até o presente.
As obras de Rosana Paulino logram “ocupar a epistemologia”22 da colonialidade racista manifesta no arquivo visual do Brasil escravocrata, particularmente nas representações fotográficas de pessoas negras da época, com suas fortes reverberações no imaginário do país até hoje. Trazendo saberes relacionados ao corpo e baseado nele, de alto teor conceitual, Paulino conseguiu criar, em Das avós, um arquivo vivo, uma espécie de imagem-corpo performático, que descoloniza as fotografias das mulheres escravizadas e restabelece, simbolicamente, suas subjetividades numa conexão ancestral.
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Recebido: 11.11.2022
Versão reformulada: 06.06.2023
Aprovado: 03.07.2023
1 Usa-se aqui o termo “colonial” para referir-se ao arquivo fotográfico do Brasil Imperial, considerando, porém, que o colonialismo escravocrata não terminou com a chamada Independência do Brasil.
2 Cf. entrevista com Musa Michelle Mattiuzzi em Schulze e Saavedra (no prelo).
3 Rosana Paulino entrou para o cânone da arte brasileira na exposição individual da sua obra na Pinacoteca de São Paulo, de dezembro de 2018 a março de 2019, com mais de 130 trabalhos produzidos entre 1993 e 2018. O catálogo da exposição, bilíngue com textos também em inglês disponível numa versão online, evidencia a obra magistral de Rosana Paulino (Piccoli e Nery 2018). O autor agradece a Rosana Paulina por ceder gentilmente os direitos de reprodução de imagens de suas obras neste artigo.
4 Das avós foi inaugurada em 2019 no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, na 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil. O vídeo, de 9’11’’, foi projetado em looping.
5 A própria Rosana Paulino enfatiza que o seu uso de linha não se trata de costura, mas de sutura. Cf. entrevista com Rosana Paulino em Schulze e Saavedra em (no prelo).
6 A importância de Atlântico Vermelho se manifesta no fato de que Rosana Paulino retomou esse título para o nome de duas grandes exposições individuais que ocorreram em 2016, na Galeria Superfície, em São Paulo, e no ano seguinte no Padrão dos Descobrimentos em Lisboa, símbolo da expansão colonial portuguesa. Esse monumento, que hoje abriga um museu, foi erguido em 1940, por ocasião da Exposição do Mundo Português, para homenagear os chamados “descobrimentos portugueses”. O monumento está localizado no bairro de Belém, onde os “descobrimentos” começaram sob a égide de Manuel I. Como é característico na obra de Rosana Paulino, na exposição se desdobrou uma reflexão crítica da colonização portuguesa e suas representações, particularmente em relação à escravidão.
7 Desde a publicação do influente livro The Black Atlantic (1993), de Paul Gilroy, o termo Atlântico Negro teve muitas reverberações nas artes. No Brasil, a concepção do Atlântico Negro tingido de vermelho se encontra já na obra Black Atlantic (2013). Essa escultura de Ayrson Heráclito consiste numa garrafa de vidro cheia de óleo de dendê com seu característico tom de vermelho, que forma o fundo para o título em letras negras no vidro. Embora o vermelho evoque a morte de pessoas africanas escravizadas, no candomblé, o dendê simboliza os fluidos vitais –sangue, sêmen e saliva– e, assim, enfatiza a resistência contra a escravidão e contra a “necropolítica” (Mbembe 2003) existente no Brasil até hoje. Sobre o conceito de Atlântico Negro, cf. Gilroy (1993).
8 Cf. entrevista com Rosana Paulino em Schulze e Saavedra (no prelo).
9 Para uma análise de Assentamento, cf. o excelente ensaio de Araújo (2019).
10 Sobre as fotografias de pessoas negras de Alberto Henschel, cf. Prussat (2008, 90-102).
11 O “ato fotográfico” não se limita ao gesto da produção da imagem, mas também inclui sua circulação e sua recepção (Dubois 1990).
12 “Studium” e “punctum” são dois conceitos centrais da abordagem à fotografia de Roland Barthes, que enfocam, principalmente, a recepção fotográfica (Barthes 1980).
13 A outra fotografia é “Ama-de-leite com criança”, de Constantino Barza, sucessor de Alberto Henschel, c. 1880-1890.
14 Sobre o papel de resistência das religiões de matriz africanas no Brasil, cf. Vitória et al. (2020).
15 A redução à função profissional manifesta-se também no fato de que o nome e o sobrenome da criança em geral estão especificados, enquanto a mulher negra na maioria das fotos é identificada apenas como “ama de leite”. Um exemplo dessa desindividualização é a fotografia intitulada “Antônio da Costa Pinto com a sua ama de leite” (Salvador da Bahia, 1868), de Antônio Lopes Cardoso.
16 Rosana Paulino também abordou a temática das amas em esculturas de terracota com plástico e fitas de cetim intituladas Ama de leite I e II (2005); sobre esta última obra, cf. Fontes Filho (2020, 343-365).
17 Sobre o uso do termo, cf. Spivak (1985, 128).
18 Instalação na Senzala da Fazenda Mato Dentro, Campinas, São Paulo. Fitas de cetim, cerâmica, papel machê, fotografia digital, vidros de relógio, parafina e pétalas de rosas brancas. Dimensão variável.
19 Charlene Bicalho foi, por exemplo, a produtora cultural da 1ª Marcha do Orgulho Crespo (2017), evento coletivo de valorização da estética corporal afro-brasileira, e autora-performer de mergulhos em si (2018), uma reflexão performática sobre os álbuns de fotografia da sua família.
20 De fato, Rosana Paulino foi, e segue sendo, uma importante mentora para a nova geração da arte afro-brasileira, inclusive para nomes tão relevantes como Dalton Paula e Priscila Rezende, que também abordam questões em torno da escravidão e seu traumático legado no presente.
21 Cabe mencionar que no pensamento e nas práticas socioculturais afro-brasileiros, “spaces of body encounters” são, com frequência, de grande importância para a memória ancestral. No pensamento de Beatriz Nascimento, por exemplo, o quilombo é um lugar – concreto e simbólico – de convivialidade, onde se manifesta o ato de “sentipensar memory politics” (cf. Tosold 2021, 2).
22 Santos, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: A afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019, 18.