DOI: 10.18441/ibam.23.2023.84.85-108

 

 

 

 

Três caminhos para a descolonização da filosofia em contextos de convivialidade-desigualdade: O eurocentrismo de Hegel como estudo de caso1

Three Paths to Decolonizing Philosophy in Contexts of Conviviality-Inequality: Hegel’s Eurocentrism as Case Study

Mariana Teixeira

Universidade de Lisboa, Portugal

mariana.o.teixeira@edu.ulisboa.pt
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-2534-8439

Introdução: colonialidade epistêmica em contextos de convivialidade-desigualdade

Sociedades desiguais e saberes hegemônicos em crise

O tema da desigualdade há tempos deixou de ser objeto de estudo exclusivo dos campos disciplinares voltados para as relações sociais e econômicas com enfoque na dimensão material. A partir de uma perspectiva relacional e multidimensional, compreende-se que “as desigualdades podem ser materiais, mas também de poder, de acesso aos recursos naturais e à proteção contra riscos derivados da ação humana, de direitos, de possibilidades epistêmicas e de posições e condições sociais” (Mecila 2022, 10). As causas e os efeitos das desigualdades sociais vêm sendo exploradas em diversas áreas, inclusive na teoria do conhecimento, durante muito tempo considerado como o campo da neutralidade axiológica por excelência. Com efeito, nas últimas décadas, com crescentes reivindicações pela desestabilização das estruturas hegemônicas da produção de conhecimento nas mais diversas áreas, grupos historicamente relegados às margens da sociedade têm denunciando o caráter predominantemente eurocêntrico (isto é: branco), masculino, heteronormativo e elitista ou classista do cânone tradicionalmente reverenciado nas instituições de ensino e pesquisa acadêmica. Esses grupos têm exigido a formação de um novo currículo, um currículo que seja antirracista, feminista, queer, anticapitalista – isto é, não baseado na eliminação ou na exploração da alteridade que está nas margens. Propostas e práticas neste sentido têm se tornado cada vez mais presentes nos debates das mais diversas disciplinas que compõem as ciências sociais e humanas, da geografia à linguística, da crítica literária à psicologia, da teoria das relações internacionais à arqueologia.

A filosofia aparece nesse contexto como uma das áreas disciplinares em que as desigualdades raciais, de gênero e classe parecem persistir de forma muito renitente.2 Apesar de os projetos para combater a “colonialidade do saber” (Quijano 2005) no campo filosófico não serem um advento recente –na América Latina, por exemplo, críticas ao eurocentrismo da filosofia e seus cânones surgiram muito cedo com a busca do caráter distintivo das filosofias latino-americanas, incluindo as filosofias indígenas–, pode-se dizer que este projeto têm ainda um longo caminho a percorrer. Ainda assim, propostas nesse sentido têm brotado com cada vez mais frequência e graus variados de radicalidade. Essas denúncias a respeito dos saberes hegemônicos os têm levado a um estado de crise, no qual a sua legitimação, antes dada de forma quase automática, passa a ser colocada em xeque com frequência cada vez maior.

Diante deste bem-vindo florescimento, o presente artigo propõe uma reflexão sobre o projeto de descolonização epistêmica do cânon filosófico a partir de um ponto de vista sistemático: nossa intenção é esboçar um quadro interpretativo que permita compreender as instanciações desse projeto em diferentes modelos gerais de acordo com os seus pressupostos filosóficos (manifestos ou tácitos), em especial no que diz respeito ao caráter da relação entre saber marginalizado e saber hegemônico. Antes de passar a este esboço de sistematização, porém, é importante fazer algumas considerações prévias sobre as noções de descolonização e de colonialidade que orientam nossa proposta.

Colonialidade do saber e descolonização epistêmica a partir da perspectiva da convivialidade-desigualdade

A ideia de descolonização tem o seu sentido original no processo de independência jurídico-formal das antigas colônias europeias nas Américas, África e Ásia. Trata-se inicialmente, assim, de um processo localizado espacial e temporalmente: o desmantelamento do colonialismo europeu caracterizado pela dominação e exploração formalizada jurídica e politicamente de territórios e suas populações. Esse é um primeiro sentido, mais restrito, da ideia de descolonização. Em um sentido mais amplo, que é o utilizado aqui a partir da distinção proposta pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano (2005), a descolonização aparece como uma oposição não apenas ao colonialismo em seu sentido histórico e geopolítico, mas à forma de dominação expressa na ideia mais geral de “colonialidade”, que compreendemos aqui como toda forma de dominação apoiada sobre a particularização, a marginalização e a subsequente subjugação de um Outro. Este Outro é assim reduzido à sua dimensão passiva, carente de universalidade e agência, podendo desta maneira tornar-se objeto de exploração, expropriação e formas mais ou menos violentas de controle. É importante ter em mente que, de acordo com o aporte metodológico da convivialidade-desigualdade aqui adotado, as relações de colonialidade não são vistas como algo imposto sem oposição, mas sim como frutos de constelações particulares de relações marcadas por variados graus de dominação e resistência, violência e negociação em uma realidade social profundamente desigual.3

É evidente que o colonialismo, como fenômeno geopolítico e historicamente situado, tenha sido permeado pela colonialidade como forma central de imposição de poder; o fim do colonialismo em termos jurídico-políticos na maior parte do mundo, no entanto, não significou a erradicação das relações de colonialidade. Para além do imperialismo exercido pelas potências mundiais sobre os países mais pobres –formalmente independentes– por meio de mecanismos econômicos, militares e culturais, as relações de colonialidade estão também presentes de maneiras mais ou menos institucionalizadas nas mais diversas áreas da vida social. Não apenas nas relações entre países ou regiões, mas também nas relações entre sujeitos e grupos no contexto de um mesmo país, a colonialidade como forma de dominação e exploração exerce um papel de primeira importância nos dias de hoje. Igualmente importantes são os movimentos de resistência e oposição à colonialidade, que é o que entendemos aqui como o projeto de descolonização em sentido amplo.

Dada essa caracterização de colonialidade e de descolonização, o que pode então significar o apelo a uma descolonização epistêmica? De saída, a descolonização do conhecimento implica o questionamento da prevalência de práticas epistêmicas e perspectivas teóricas eurocêntricas e racistas presentes na base que deu suporte às empreitadas colonialistas do passado e que mantêm, ainda hoje, uma marcada assimetria de poder em contextos nacionais e transnacionais. Mas mais do que isso: este projeto implica a oposição também a práticas epistêmicas e perspectivas teóricas permeadas por outras formas de manifestação da colonialidade entendida do sentido amplo, como o falocentrismo ou o hetero-/cis-normativismo, por exemplo, os quais particularizam, marginalizam e subjugam respectivamente as mulheres e a população LGBTQIA+, bem como os saberes produzidos por estes sujeitos. Trata-se, em suma, de combater toda forma de conhecimento que se apoia sobre –e ao mesmo tempo serve como instrumento para– a particularização, marginalização e subjugação de um Outro.

Diversas tentativas nesse sentido descolonizador vêm sendo empreendidas nas últimas décadas mediante uma crítica à suposta neutralidade dos saberes hegemônicos, que se colocam como universais ao mesmo tempo em que relegam tudo que lhes é externo, isto é, toda alteridade, à rubrica do particular, do inessencial, do insignificante – e, muitas vezes, do perigoso e do nocivo, daquilo que deve ser controlado e, no limite, eliminado.

Caminhos de descolonização do cânon filosófico

Apesar de compartilharem um objetivo comum, as diversas estratégias utilizadas com a intenção de descolonizar o conhecimento podem ser bastante distintas entre si. Existem também, por consequência, inúmeras maneiras de interpretá-las e de articulá-las. Elas podem variar, por exemplo, de acordo com o aspecto da alteridade particularizado e considerado como o objeto de relações epistêmicas de colonialidade – ou seja, de acordo com que identidade é considerada o Outro. Assim, por exemplo, ao passo que algumas empreitadas descolonizadoras enfocam a subjugação epistêmica de alteridades racializadas, outras se debruçam sobre esse fenômeno a partir da perspectiva da dominação de gênero, da dominação de classe, e assim por diante. É na busca por compreender as intersecções e reforços mútuos entre essas diferentes formas de colonialidade do saber que se dá, por exemplo, o importante debate em torno da noção de opressões entrelaçadas (Hill Collins 2016 [1986]) ou interseccionais (Crenshaw 2019 [1989]; Hill Collins e Bilge 2021 [2016]).

O enfoque do presente texto, no entanto, segue por outro caminho. Exploramos conceitualmente formas de buscar um conhecimento descolonizado que diferem não quanto à dimensão da alteridade que é sujeita à colonialidade (nos exemplos dados acima: racialização, gênero e classe), mas antes quanto à relação que pressupõem entre o saber hegemônico e o saber produzido a partir da alteridade marginalizada. Como esta sistematização não tem como eixo organizador o aspecto de identidade utilizado para a determinação do Outro, cada um desses modelos pode abrigar críticas à colonialidade epistêmica com diferentes focos – racialização, gênero e classe, e diversos outros. Este enfoque na dinâmica das relações e não em objetos mais ou menos estáticos tem por objetivo levar em conta o caráter complexo e contraditório das sociedades em que vivemos, marcadas por contextos de convivialidade-desigualdade.4 Tais contextos são contraditórios na medida em que são compostos por “constelações constituídas por laços de solidariedade e cooperação, mas também por diferenças, conflitos, violência e dominação” (Mecila, 2022, 12).

Identificamos, em nossa proposta de sistematização, três modelos gerais de estratégias de descolonização do conhecimento, a saber:5 a) a conversão dos saberes marginalizados a um status mais elevado a partir da sua inclusão no panteão dos saberes hegemônicos; b) a inversão entre os saberes hegemônicos e os marginalizados, sendo os primeiros substituídos pelos segundos; e c) a subversão dos saberes hegemônicos pelos marginalizados a partir do desvelamento da interdependência assimétrica e autoritária entre eles. Na primeira parte do texto, apresentamos em mais detalhe e de forma sistemática cada uma destas estratégias de descolonização epistêmica do cânon, com foco no campo filosófico (1). Em seguida, ilustramos nossa proposta de categorização com a análise de caso de diferentes tentativas de descolonizar a filosofia de G.W.F. Hegel, especificamente no que diz respeito a seus aspectos eurocêntricos (2). A proposta aqui é a de que, a partir dessa análise, é possível ter uma maior clareza acerca do que está em jogo em cada um dos caminhos que intentam combater a colonialidade do cânon filosófico e, com isso, aprofundar o debate para que a ideia de descolonização epistêmica não acabe se limitando a um chavão vazio (e portanto apropriável pelas mesmas estruturas que busca combater).

Caminhos para a descolonização do cânon filosófico6

a. Conversão

Comecemos pelo que estamos chamando de modelo de conversão. Projetos de descolonização do conhecimento que se encaixam sob esta rubrica têm defendido já há algum tempo que, para além dos cânones tradicionalmente brancos, europeus e masculinos, uma miríade de outras vozes devem ser ouvidas e levadas a sério no processo de produção do conhecimento, sendo então convertidas em saberes com igual legitimidade ao cânone estabelecido. Do contrário, grupos inteiros e seus saberes são negligenciados e o conhecimento permanece confinado a um escopo extremamente limitado.7 A estratégia de descolonização do conhecimento proposta por esse modelo consiste, portanto, em uma política de valorização das contribuições epistêmicas de grupos marginalizados para a totalidade do conhecimento socialmente disponível em cada momento histórico, valorização que tem como objetivo elevar perspectivas teóricas previamente negligenciadas ao mesmo estatuto canônico dos saberes hegemônicos.

Nesse sentido, o modelo da conversão tem assumido, em geral, duas formas de manifestação. De um lado, há um esforço em tornar visível na esfera pública que membros de grupos social e epistemicamente marginalizados também podem contribuir, e têm de fato contribuído de forma significativa, para a construção das formas de saber tradicionalmente reconhecidas. É o caso, por exemplo, de diversos projetos que buscam trazer visibilidade para a participação ativa, ainda que silenciada, das mulheres na história da produção do conhecimento em geral e da filosofia em particular. Aqui, não se trata tanto de alçar uma forma de saber marginalizada ao nível de legitimidade dos saberes hegemônicos, mas antes de incluir membros de grupos marginalizados no panteão que reúne os maiores representantes desses saberes.

De outro lado, há também um movimento em busca da valorização de formas de produção de conhecimento que escapam aos limites traçados pelos saberes hegemônicos, notadamente pelo domínio do racionalismo técnico ocidental. É o caso da crescente inclusão nos currículos de instituições de ensino e pesquisa de temas e mesmo quadros teóricos previamente excluídos do campo de legitimação científica. Nas ciências humanas, assim, currículos passam a englobar não somente as tradições europeias e anglo-americanas já consagradas do pensamento filosófico e social, como também, por exemplo, epistemologias feministas, ameríndias ou afrodiaspóricas. Busca-se com isso a formação de quadros acadêmicos com um repertório teórico que seja mais abrangente ou completo e que, ao mesmo tempo, faça justiça aos saberes silenciados de grupos marginalizados pela colonialidade epistêmica que acompanha a nossa história pelo menos desde a época do colonialismo como forma juridicamente legítima de dominação e exploração.

O modelo de conversão busca alcançar, em suma, um ideal de diversidade epistêmica que equipara os saberes marginalizados (bem como os sujeitos que os produzem) aos hegemônicos, e isso por meio da estratégia de alçar os primeiros ao nível de legitimação pública e institucional já alcançado pelos segundos. Os saberes hegemônicos são tomados como verdadeiros, apesar de limitados e carentes de complementação. A relação pressuposta entre os saberes hegemônicos e marginalizados é a de uma paridade a ser reconhecida pelas práticas de descolonização epistêmica.

b. Inversão

O modelo de inversão compartilha com o anterior grande parte do diagnóstico sobre a depreciação sistemática dos saberes produzidos por determinados grupos social e epistemicamente marginalizados e a sua consequente exclusão dos espaços institucionalmente legítimos de produção do conhecimento. As propostas de descolonização epistêmica que se enquadram nesse modelo, contudo, vão ainda mais longe. Não bastaria apenas reconhecer a validade dos saberes marginalizados, colocando-os em pé de igualdade com as formas de conhecimento que atualmente já gozam de legitimidade social; de acordo com este segundo modelo, os saberes hegemônicos se revelam como mais do que simplesmente incompletos; eles são tomados também e principalmente como falsos. Isso porque sua incompletude não é acidental, algo passível de ser corrigido pelo acréscimo do que ficou de fora, mas sim algo que é inerente ao seu modo de lidar com os seus objetos. Deste modo, por exemplo, a pretensão de universalidade do racionalismo técnico ocidental não é colocada em xeque apenas por ser parcial, isto é, por não contar toda a realidade, mas antes pelo fato de que a exclusão do seu Outro é uma consequência necessária do seu modo de proceder, baseado na contínua produção de dicotomias e hierarquias. É precisamente nessa necessidade de eliminação do Outro que reside, segundo este modelo, a colonialidade epistêmica dos saberes hegemônicos.

Na medida em que a concepção de colonialidade epistêmica subjacente ao modelo de inversão difere daquela que está na base do modelo de conversão, altera-se também de forma correspondente o projeto de descolonização epistêmica, que se torna então mais exigente. Não se trata mais, aqui, de incluir os saberes marginalizados lado a lado, por assim dizer, dos saberes hegemônicos; faz-se preciso, antes de tudo, desvelar a falsidade necessária de toda forma de conhecimento que se apoia em silenciamentos, exclusões, e, no limite, tentativas de erradicação daquilo que não cabe nos seus limites bem definidos. Defende-se, assim, alçar os saberes marginalizados a uma posição superior à dos saberes hegemônicos permeados pela colonialidade, atribuir-lhes um patamar mais elevado de validade precisamente na medida em que estes saberes não repousam sobre as relações excludentes e autoritárias que caracterizam a colonialidade.

Os projetos descolonizadores que se encaixam no modelo da inversão em geral denunciam o racionalismo ocidental por sua sanha classificatória, falo- e eurocêntrica, caracterizada ao mesmo tempo como produto e instrumento das práticas epistêmicas misóginas, racistas e predatórias que moldaram o mundo moderno. A isso, muitas vezes se contrapõe uma perspectiva epistêmica holista que foi historicamente marginalizada mas que ainda pode ser encontrada, por exemplo, nas cosmovisões de comunidades tradicionais e nas práticas quotidianas de grupos marginalizados.

Assim, em resumo, a descolonização epistêmica baseada no modelo de inversão busca desalojar os saberes hegemônicos do seu posto de perspectiva científica privilegiada e colocar em seu lugar saberes até então marginalizados, os quais se considera que oferecem os alicerces para um edifício teórico não somente mais completo ou abrangente, mas também, e principalmente, mais apropriado para dar conta do caráter relacional da realidade. Os saberes hegemônicos não são considerados apenas incompletos, mas também falsos, de modo que a relação entre os saberes hegemônicos e marginalizados é concebida como marcada pela primazia dos segundos a ser reconhecida pelas práticas de descolonização epistêmica.

c. Subversão

O caminho da subversão8 compartilha com os dois anteriores o diagnóstico básico a respeito do caráter parcial dos saberes hegemônicos, os quais são ao mesmo tempo fruto e condição de possibilidade das relações de poder que caracterizam a colonialidade. Além disso, este modelo compartilha com o modelo da inversão o entendimento de que a descolonização epistêmica não pode se resumir à elevação dos saberes marginalizados ao mesmo patamar dos saberes hegemônicos – os quais permaneceriam, assim, inalterados em seu cerne pelo processo de descolonização. Não se trata aqui, portanto, simplesmente de complementar, como propõe o modelo de conversão, os saberes hegemônicos mediante a justaposição dos saberes marginalizados; os saberes hegemônicos não são apenas incompletos, mas também, em sua parcialidade, falsos. Por outro lado, contudo, o modelo de subversão não descarta em sua totalidade os saberes hegemônicos, como faz o modelo de inversão, e nesse sentido específico ele aproxima-se do modelo da conversão. Os saberes hegemônicos, que se pretendem universais enquanto negligenciam uma miríade de formas de experiência e teorização, relegadas ao campo do não-saber, são decerto considerados falsos pelo modelo de subversão – mas não como inteiramente falsos.

Dessa forma, a ideia de descolonização epistêmica mediante uma subversão implica que os saberes hegemônicos não devem ser descartados, mas tampouco podem ser deixados inalterados.9 De acordo com essa concepção, a primeira tarefa da prática de descolonização epistêmica envolve desvendar as variadas formas pelas quais aquele Outro que os saberes hegemônicos negligenciam, silenciam e oprimem já está presente, como pré-condição material e existencial, nos próprios saberes hegemônicos. Dito de outra forma: trata-se inicialmente de demonstrar que os saberes hegemônicos pretensamente universais na realidade dependem daquilo que eles excluem como acidental ou particular.

Isso se dá de duas formas. No nível das condições materiais de produção do conhecimento, os saberes que atingiram seu estatuto de legitimidade científica mediante relações de colonialidade apenas puderam se desenvolver e estabilizar procedendo à apropriação dos resultados de atividades práticas e epistêmicas dos grupos que ele marginaliza. É preciso reconhecer que, historicamente, a produção de conhecimento pressupôs toda uma infraestrutura que engloba desde o acúmulo de capital por meio da expropriação de terras, matérias-primas e força de trabalho até a apropriação de práticas ligadas à reprodução social, tais como tarefas de cuidado, manutenção e assistência. Nessas atividades de produção e reprodução social historicamente relegadas ao Outro –por exemplo: populações racializadas ou despossuídas e mulheres– têm origem os requisitos materiais mais básicos e indispensáveis para toda práxis científica. Mas mais do que isso: surgem também, no desenrolar dessas atividades, saberes práticos com alto grau de sofisticação e complexidade, os quais são continuamente apropriados, sistematizados, reformulados e, por fim, sancionados pelos sujeitos que historicamente aparecem como os portadores dos saberes hegemônicos.

Ademais, os saberes hegemônicos encontram-se em uma relação de dependência com relação aos grupos marginalizados e seus saberes também no nível do que podemos chamar de condições existenciais da produção do conhecimento. Trata-se, aqui, da relação propriamente categorial por meio da qual algo se arroga o caráter de universal, verdadeiro e necessário precisamente no contraste com o que caracteriza como particular, falso e contingente. O universal depende da negação do particular para se colocar como tal. Revela-se, assim, uma contradição no interior do próprio campo dos saberes hegemônicos na medida em que eles se compreendem como totalmente distintos e independentes de tudo que lhes é estranho ao mesmo tempo em que necessariamente apoiam-se sobre esse processo de exclusão do Outro para poder afirmar a sua identidade. Dito de outra forma: assim como sem as margens não há centro, sem o Outro não há o Um. Os saberes hegemônicos não são capazes de reconhecer que eles também são um Outro, um Outro precisamente para aquilo que eles excluem do seu escopo. O Um acusa o Outro de ser particular, escamoteando assim que ele também é particular, situado, enraizado nas condições sociais do presente histórico. O Um revela-se então como falso. Mas o que o torna falso não é a sua particularidade, seu caráter situado, mas precisamente o contrário: sua malfadada pretensão de neutralidade, universalidade e autossuficiência.

Assim, diferentemente dos modelos da conversão e da inversão, o modelo da subversão não se limita a propor uma reorganização da relação entre saberes hegemônicos e marginalizados, seja para colocá-los no mesmo patamar, seja para elevar os segundos acima dos primeiros. Isso porque, em ambos os casos, essas formas de conhecimento permanecem inalteradas em sua estrutura interna e em sua exterioridade e impermeabilidade mútuas, ainda que se altere o seu posicionamento relativo na hierarquia de validade epistêmica. O projeto de subversão da colonialidade, por outro lado, implica reconhecer o caráter de interdependência –assimétrica e perniciosa– entre as formas hegemônicas e marginalizadas de conhecimento.

É crucial sublinhar que esse desvelamento dos saberes marginalizados presentes nas condições materiais e existenciais da produção dos saberes hegemônicos não é senão apenas um primeiro passo a ser tomado no caminho da subversão da colonialidade epistêmica. Ainda que importante, não é um passo por si só suficiente. Se se limitasse a esse reconhecimento, esta estratégia se confundiria com uma espécie de celebração da diversidade já inerente aos saberes hegemônicos, quando se trata, ao contrário, de uma denúncia da forma velada pela qual os saberes hegemônicos escamoteiam sua íntima e profunda dependência de práticas violentas de exclusão e mesmo de extermínio social e epistêmico,10 dotadas não raro de um alto grau de brutalidade.11 Como consequência, considera-se que o processo de descolonização do conhecimento somente poderá vir a termo com transformações concomitantes na própria estrutura social (política, econômica, cultural) em que estão inseridas as relações de colonialidade – incluindo as epistêmicas.

Análise de caso: descolonizando Hegel

Para ilustrar os caminhos propostos e tornar a discussão mais concreta, apresentamos nesta segunda parte algumas análises que têm por objeto uma das figuras mais destacadas do cânone da filosofia ocidental –a saber: Hegel–, e que podem ser consideradas sob a lente da descolonização epistêmica, ou ao menos como tentativas de acertar as contas com o eurocentrismo que permeia seus escritos. A escolha do objeto não é arbitrária: tomada ora como precursora do marxismo revolucionário e da teoria crítica, ora como o epítome do mais puro reacionarismo e defesa do status quo, a filosofia hegeliana oferece um terreno fértil para se explorar a diversidade de caminhos em direção à descolonização epistêmica.

Muitos autores e autoras apontaram aspectos eurocêntricos da filosofia hegeliana, com destaque para as suas preleções sobre a filosofia da história mundial (Weltgeschichte), onde é possível encontrar afirmações extremamente depreciativas a respeito dos povos não europeus, como as populações nativas da África, Ásia e Américas.12 Hegel afirma, por exemplo, que o continente africano “não tem nenhum interesse histórico próprio, a não ser o fato de que lá vemos o homem na barbárie, na selvageria” (Hegel 1955 [1830], 214). Na África “não pode haver história propriamente dita” (ibid., 216): os acontecimentos se sucedem de forma arbitrária e caprichosa. Não há finalidade, não há Estado, “não há subjetividade, mas apenas uma série de sujeitos que se destroem” (ibid., 216-7). A África é “a terra infantil (Kinderland), envolta, para além do dia da história consciente de si, na cor negra da noite” (ibid., 214), o lugar “onde predomina o princípio do altiplano, o da impossibilidade de cultura (Unbildsamkeit)” (ibid., 212).

É evidente que afirmações desse tipo –presentes nas obras de muitos dos grandes filósofos do ocidente– não são mais passíveis de recepção acrítica ou de serem ignoradas no mundo de hoje. Ora, o que fazer com Hegel diante das evidências da necessidade de descolonizar o cânone filosófico ocidental? Vejamos algumas das diferentes estratégias que têm sido adotadas para lidar com este aspecto profundamente perturbador da filosofia hegeliana.13 A intenção aqui não é chegar a um veredicto sobre quais delas estão mais corretas ou encontram maior lastro textual nos escritos do filósofo alemão, mas antes tornar mais concreta a sistematização proposta na primeira seção, em especial no que diz respeito aos distintos pressupostos filosóficos envolvidos em cada caso.14

a. Conversão: os não europeus também podem filosofar

Uma primeira estratégia para combater o eurocentrismo das afirmações de Hegel consiste em colocá-las em perspectiva, tomando-se o quadro mais geral da filosofia hegeliana. Ao se relativizar a importância filosófica (ou mesmo a autenticidade15) dessas passagens, procura-se resgatar o cerne da concepção hegeliana de filosofia do que seria um eurocentrismo de ocasião ali presente. Argumenta-se que, ainda que Hegel não o tenha feito explicitamente, é plenamente possível acomodar as contribuições das culturas não europeias no quadro geral da teoria hegeliana.16

Esta estratégia é bastante comum entre os estudiosos de Hegel. Na maioria dos casos, ela parece estar apenas pressuposta ou então aparece em ressalvas, notas de rodapé e textos introdutórios aos escritos de Hegel.17 Um ponto central ressaltado pelos intérpretes que partem dessa perspectiva é a firme recusa de Hegel ao determinismo biológico que tomou corpo nas pseudociências da frenologia e da fisiognomia, por exemplo na Fenomenologia do espírito.18 O filósofo defende, antes, uma concepção universalista de humanidade ao afirmar que “[o] homem é racional em si mesmo; aí reside a possibilidade da igualdade do direito de todos os homens, e a nulidade de uma distinção rígida em raças humanas com e sem direitos” (Hegel 1981 [1830], § 393, 57-8).

Com a crescente literatura apontando para o eurocentrismo de Hegel, alguns intérpretes passaram a se debruçar mais detidamente sobre essa questão, abordando inclusive os trabalhos mais problemáticos do filósofo nesse sentido. Para Joseph McCarney (2003, 33), por exemplo, Hegel traça em sua filosofia da história uma importante distinção entre a “nação” como entidade natural (Nation, cujo pertencimento se dá pelo nascimento e se aproxima assim na noção de “raça”) e o “povo” como entidade espiritual (Volk, caracterizado por uma cultura). Há história propriamente dita, para Hegel, somente quando o espírito escapa das amarras da natureza, das determinantes naturais representadas, por exemplo, pelas relações de sangue e ascendência comum. Assim, os sujeitos da história apenas podem ser entidades espirituais (povos), e não naturais (nações, tribos, castas, raças), o que faria com que a história, na concepção hegeliana, não pudesse ser compreendida por meio de categorias racistas. McCarney (2000, 145) chega a afirmar que “dificilmente se pode conceber uma base teórica mais firme para a igualdade fundamental dos seres humanos do que aquela que o espírito Hegeliano proporciona”.

Outro indício de que a filosofia de Hegel não é inerentemente racista, para McCarney (2003, 32), é o fato de que ele reconhece que a arte e a religião da Grécia antiga, importante ponto de virada para o avanço do espírito, foram significativamente influenciadas pela cultura egípcia (e possivelmente pela etíope), o que faria de Hegel até um precursor de Black Athena, o famoso estudo de Martin Bernal (1987, 1991 e 2006) que propõe uma hipótese alternativa sobre as origens da civilização grega clássica a partir da influência de culturas africanas e asiáticas, especialmente egípcios e fenícios.

Andrew Buchwalter (2009) é outro intérprete que procura alçar, no contexto da concepção hegeliana de filosofia da história, os povos não europeus a um estatuto homólogo ao dos povos da Europa moderna. Ele o faz de pelo menos duas maneiras. De um lado, aponta para o caráter incompleto e carente de superação da própria cultura europeia na visão de Hegel, o que a igualaria às demais culturas na sua necessidade constante de autotranscendência (ibid., 94). A cultura europeia não poderia ser vista, assim, como um produto acabado caracterizando uma espécie de “fim da história”. De outro lado, Buchwalter (ibid., 102-103) relembra a importância que Hegel atribui à autonomia do outro no processo de alcance da própria autonomia: “Como sabemos pela epistemologia e pela ontologia social de Hegel, ambas baseadas em aportes de intersubjetividade, a afirmação da autoconsciência autônoma de um ser (seja um indivíduo ou um grupo) é ininteligível sem o reconhecimento da autoconsciência de um outro”. Buchwalter aplica assim às comunidades o que Hegel diz sobre a formação da subjetividade individual na Fenomenologia do espírito, de forma que a liberdade propriamente realizada em uma comunidade está entrelaçada com a liberdade de uma outra comunidade – e mesmo com a formação de uma cultura e um senso compartilhado de identidade global, um Weltgeist (ibid., 103). Para Buchwalter, mesmo quando fala da “ânsia infinita por conhecimento” (Hegel 1981 [1830], § 394) da Europa, Hegel não é um apologista do expansionismo ocidental: “Ao invés disso, o infinito impulso característico dos princípios modernos de liberdade e racionalidade não é apenas limitado, mas cumprido em reconhecimento da autonomia do outro” (Buchwalter 2009, 95). O intérprete ainda lembra do que Hegel afirma a respeito do colonialismo na Filosofia do direito: “A libertação das colônias revela-se ela própria como a maior vantagem para o estado da mãe-pátria, assim como a libertação dos escravos o é para o senhor” (Hegel 2022 [1821], 521, apud Buchwalter 2009, 95).

Nicholas Mowad (2013) adota uma outra estratégia e argumenta que ao falar dos povos germânicos Hegel não está falando necessariamente das pessoas empíricas pertencentes à nação alemã. O “espírito germânico” é, em princípio, suprarracial e supranacional (ibid., 169); na realidade, ele nada mais é do que o espírito da modernidade e da abertura que a caracteriza: “O ápice da hierarquia ‘racial’ e ‘nacional’ de Hegel é assim uma não-raça e uma não-nação, um espírito e uma cultura que estão além da raça e da nacionalidade, tendo se libertado destas e de todas as outras determinações meramente naturais” (ibid., 169). A “germanidade” não estaria, assim, confinada ao noroeste da Europa, e nem pode ser possuída ou transmitida de uma forma meramente natural. A necessidade de uma “nação anti-nacional” é algo que Mowad considera estrutural no sistema hegeliano, diferentemente da sua identificação de certas partes da Europa como preenchendo excepcionalmente bem esse papel, algo que é discutível e “de cuja correção a integridade fundamental do sistema não depende” (ibid., 170).

Em que pesem as diferenças entre os argumentos utilizados para se contrapor ao eurocentrismo presente na filosofia de Hegel, o que esta posição defende é que, em seu cerne, a filosofia de Hegel não requer necessariamente a exclusão das culturas não europeias do desenvolvimento da história mundial. Para descolonizar a filosofia hegeliana, seria necessário portanto um esforço de separar os aspectos determinantes da estrutura fundamental (com destaque, por exemplo, para o universalismo que caracteriza sua concepção de ser humano) daqueles momentos incidentais em que os europeus –e mais especificamente os povos germânicos– aparecem em suas preleções como os portadores da versão mais avançada do desenvolvimento do espírito. A tarefa consiste, então, em converter (no nível da teoria) os povos não europeus em sujeitos da história, incluindo-os explicitamente no esquema teórico de Hegel, o qual precisa ser complementado, e tornado assim mais rico e abrangente, mas não carece essencialmente de transformações em sua estrutura mais fundamental.

b. Inversão: a dialética é um método colonial

Uma segunda forma de lidar com o eurocentrismo de Hegel consiste na recusa da possibilidade de separar o conjunto de sua filosofia das posições mais abertamente eurocêntricas encontradas, por exemplo, nas Preleções sobre a filosofia da história mundial. Defende-se, assim, que para descolonizar o cânon filosófico ocidental seria preciso não complementar ou ajustar a contribuição de Hegel, mas sim denunciá-la e rejeitá-la em seu conjunto, procurando abordagens filosóficas alternativas.

Muitos dos autores e autoras que poderiam ser enquadrados nessa categoria não dedicaram muitas linhas para destrinchar o eurocentrismo de Hegel, contentando-se em geral com a menção às suas posições mais notoriamente problemáticas, e concentrando-se em lugar disso no desenvolvimento de propostas concorrentes.19 É crescente, porém, o número de intérpretes que vêm colocando no primeiro plano uma análise mais detalhada das assunções eurocêntricas de Hegel e de seu funcionamento no âmbito da filosofia hegeliana como um todo.

Um destes intérpretes é Robert Bernasconi, que já dedicou alguns trabalhos à análise do racismo de Hegel. Na sua resposta a Joseph McCarney em debate publicado na Radical Philosophy, Bernasconi (2003) rebate alguns dos argumentos característicos das tentativas de superar o eurocentrismo da filosofia hegeliana que seguem pelo caminho da conversão. Ele concede, como quer McCarney, que Hegel distingue entre raças (ou nações) como entidades naturais e povos como entidades espirituais, mas relembra que, para o filósofo alemão, nem todas as raças ou nações podem dar origem a povos, o que redunda precisamente na exclusão da África da história mundial (ibid., 36).20 Bernasconi também contesta o argumento utilizado para relativizar o eurocentrismo de Hegel que insiste que as fontes a que o filósofo tinha acesso à época tendiam para uma caracterização totalmente estereotipada a respeito das populações africanas, e que essa seria a razão para as afirmações preconceituosas do filósofo. A partir da análise das obras de literatura de viagem mencionadas por Hegel, Bernasconi (1998) defende que, ao contrário de ter sido um refém de suas fontes, Hegel parece na realidade ter muitas vezes exagerado as histórias relatadas, e até inventado algumas partes. Com relação ao reconhecimento da influência africana e asiática na civilização grega clássica e, portanto, na cultura europeia, Bernasconi lembra que o apagamento desta influência –antes plenamente reconhecida– se dá, segundo o próprio estudo de Martin Bernal, em torno dos anos 1820. Isto faz com que Hegel seja um precursor não de Black Athena, mas da tendência de meados do século xix de organizar as filosofias da história em torno do conceito de raça, como encontramos em Robert Knox e Gobineau (Bernasconi 2003, 37).

Para Bernasconi, em resumo, os defensores de uma leitura da filosofia da história de Hegel como não eurocêntrica não foram bem sucedidos até o momento em estabelecer nitidamente o critério para definir o que é essencial nesse projeto filosófico e o que é apenas secundário.21 O fato de que os filósofos do iluminismo tenham também formulado ideias emancipatórias não apaga o fato de que eles não só refletiram os preconceitos do seu tempo como os reinventaram ao dar novas formas ao racismo: “a enunciação de bons princípios –o stock in trade do filósofo– não é garantia de que não se esteja ao mesmo tempo minando ou negando esses princípios” (Bernasconi 2003, 37).

Uma formulação ainda mais radical da crítica ao eurocentrismo de Hegel encontra-se no texto sobre a “dialética do racismo” de Ferit Güven (2006), para quem o próprio método hegeliano é inerentemente eurocêntrico e colonial. O caráter eurocêntrico da filosofia de Hegel estaria longe, assim, de estar confinado a afirmações encontradas em anotações de seus estudantes, mas atingiria as suas bases profundas. O autor destaca que, inicialmente, o modelo de subjetividade de Hegel parece ser uma alternativa promissora à concepção moderna e atomística do sujeito, o qual se constituiria ao excluir e dominar seu(s) outro(s). A especificidade do modelo hegeliano de subjetividade, ao contrário, é a necessidade da relação dialética com o outro, do reconhecimento mútuo e uma constituição interdependente. O sujeito hegeliano “pode incorporar, emprestar uma voz e acomodar seu outro, não em termos de um confronto estático, mas como um movimento dialético que se torna o outro, passa pela negatividade e volta a si mesmo e, assim, constitui a própria subjetividade do sujeito” (ibid., 51-52).22

Essa impressão, contudo, é enganosa: o modelo hegeliano do sujeito seria, na realidade, a fonte dos problemas nas relações entre o eu e o outro em geral, e entre o colonizador e o colonizado em particular (ibid., 52). Isso porque a possibilidade do movimento dialético é atribuída por Hegel somente a um tipo de sujeito, a saber: o europeu (ibid.). O europeu é capaz de mudança, diversidade e transformação, ele não está parado no tempo como os membros de outros povos (ibid., 56).23 No sistema colonial, a dinâmica da formação dialética da subjetividade esconde, então, uma insidiosa relação de dominação. O poder colonial não apenas exclui e domina o outro de maneira direta, mas também define esse outro, lhe dá uma voz determinada, e assim define as possibilidades de existência no –e de resistência ao– sistema colonial. O poder deste sistema, diz Güven (ibid., 53), “tem que ser medido hoje por sua capacidade de incorporar seu outro, situando-o de forma precisa e insidiosa em termos da oposição possível ao sistema”.24 O privilégio europeu é, assim, a capacidade de assimilar e incorporar aquilo que é diferente dele, de modo que “a concepção de Hegel do sujeito, longe de oferecer um quadro possível para pensar uma noção pós-colonial do sujeito, é a expressão mais sofisticada, mais incontornável e assim mais insidiosa do colonialismo, não tanto no que ela diz, mas no que ela permite que o seu outro diga” (ibid., 57).

Como podemos observar, também aqui os argumentos mobilizados por cada autor são variados e atingem diferentes aspectos da filosofia hegeliana. Em comum, contudo, eles têm a avaliação de que o eurocentrismo nela presente não é uma característica incidental que pode ser ignorada ou mesmo relativizada. Todo edifício teórico de Hegel estaria comprometido com o preconceito racial que se expressa de forma mais aberta em seus escritos sobre o espírito subjetivo e em suas preleções sobre a filosofia da história e, no limite, o próprio método dialético é tomado como uma expressão teórica da colonialidade ao postular uma alteridade que é em seguida incorporada, assimilada.

Para estes autores, descolonizar o cânon filosófico ocidental significa, no que diz respeito à filosofia de Hegel, denunciar a sua dimensão eurocêntrica e dela tomar distância. Em seu lugar, caberia, numa inversão entre os polos, dar visibilidade a outros esquemas filosóficos, especialmente aqueles provenientes dos contextos considerados por Hegel como em estágios menos avançados do desenvolvimento do espírito do mundo, como os continentes africano, asiático e americano. O esforço dos autores contemporâneos em relativizar o racismo de Hegel e de outros filósofos canônicos do ocidente, a dificuldade de afastar-se decididamente desses paradigmas e de substituí-los por outros, seriam expressões do eurocentrismo que ainda permeia a disciplina nos dias atuais (Bernasconi 2000a e 2003). A filosofia hegeliana não pode ser corrigida, descolonizada, com a mera inclusão desses outros esquemas em seu quadro teórico; este quadro tem que ser desconstruído e, no limite, abandonado.

c. Subversão: Hegel, Haiti e Martinica

No esquema proposto, a terceira estratégia para descolonizar a filosofia hegeliana exige que ela seja subvertida. Para isto, não basta complementá-la com perspectivas até então ausentes em seu discurso, como as tradições de pensamento formuladas fora do contexto europeu. Tampouco seria produtivo, por outro lado, descartá-la por completo e passar a valorizar, em seu lugar, uma multiplicidade de perspectivas anteriormente silenciadas. Para descolonizar a filosofia hegeliana segundo o modelo da subversão, é necessário desvelar as formas pelas quais ela encobre o fato de que, em vez do universal, ela é apenas um momento particular, por sua vez dependente de outros momentos particulares que ela insiste em excluir e dominar. Revelada na sua limitação e, portanto, na sua falsidade, a filosofia hegeliana pode ser transformada de tal forma que se torna possível apropriar-se dela de forma crítica.

Isso pode ser feito de diferentes maneiras. Em Hegel e o Haiti, por exemplo, Susan Buck-Morss (2017 [2000]) propõe a hipótese de que Hegel teria sido decisivamente influenciado pela revolta dos negros escravizados do Haiti em 1804 na escrita da Fenomenologia do espírito – ou, mais especificamente, da seção que ficou conhecida como “a dialética do senhor e do escravo” (Hegel 2019 [1807], capítulo IV, parte A). Esta é uma das passagens mais conhecidas e debatidas de toda a filosofia hegeliana, e seu impacto na história da filosofia dos séculos xix e xx –em particular nas teorias com intenção crítica ou revolucionária– dificilmente pode ser superestimada.25 Nela, Hegel narra a luta por reconhecimento entre duas consciências, cada uma desejando provar para a outra, e para si mesma, que é independente (selbständig). A luta termina com a parte vencedora como o senhor (Herr) e a parte perdedora como o servo ou escravo (Knecht). O senhor aparece então como independente, essencial e sujeito, enquanto o servo aparece como dependente, inessencial, coisa ou objeto. No entanto, Hegel opera uma inversão nessa relação ao revelar que, em verdade, o servo é a parte independente dessa relação, não uma coisa ou objeto, mas antes um sujeito que transforma a natureza e o mundo material no seu trabalho e seu cultivo. O senhor, por outro lado, depende do servo para tudo e é, assim, a verdadeira parte servil.

Em sua investigação de história intelectual, que inclui a análise de como a Revolução Haitiana foi relatada nos periódicos da época, Buck-Morss conclui que, “[s]em dúvida, Hegel sabia dos escravos reais e de suas lutas revolucionárias” e que “ele recorreu aos sensacionais eventos do Haiti como o pilar de sua argumentação na Fenomenologia do espírito” (Buck-Morss 2017 [2000], 95). Muito mais avançada que a França metropolitana em termos de recusa da escravidão e de combate à discriminação racial, a “revolução real e bem-sucedida dos escravos caribenhos contra seus senhores é, diz a autora, o momento em que a lógica dialética do reconhecimento se torna visível como a temática da história mundial, a história da realização universal da liberdade” (ibid.). Ao postular que, para a formulação dessa figura, Hegel teria encontrado inspiração em um evento histórico ocorrido no Caribe e protagonizado por sujeitos de ascendência africana, Buck-Morss desestabiliza a narrativa característica da colonialidade de que as concepções mais abrangentes e universalistas de emancipação humana surgem exclusivamente nas metrópoles europeias modernas e são apenas posteriormente transpostas para as periferias do mundo.

A hipótese de Buck-Morss a respeito da composição da Fenomenologia do espírito serve assim como contraponto às afirmações posteriores do próprio Hegel a respeito da exclusão dos povos africanos do campo da história mundial. Sem entrar no mérito aqui da correção factual da hipótese interpretativa da autora, destacamos entretanto que ela mobiliza de maneira engenhosa os próprios escritos de Hegel e o contexto em que foram formulados. A filosofia hegeliana é parcial e limitada – mas, na sua limitação, revela algo de verdadeiro, a sua própria condição de possibilidade.

Ao fim de seu estudo, Buck-Morss questiona a importância de retomar essa relação entre Hegel e o Haiti “[d]iante da aceitação final de Hegel da continuidade da escravidão – e mais, diante do fato de que a filosofia da história de Hegel ofereceu por dois séculos uma justificativa para as mais complacentes formas de eurocentrismo” (ibid., 117). Para a autora, dentre as muitas respostas possíveis,

uma certamente é o potencial de resgatar a ideia de história universal humana dos usos aos quais a dominação branca a condenou. Se os fatos históricos a respeito da liberdade podem ser extirpados das narrativas contadas pelos vencedores e recuperadas para a nossa própria época, então o projeto da liberdade universal não deve ser descartado, mas, pelo contrário, deve ser resgatado e reconstituído sobre novas bases (ibid.).

Uma direção oposta à de Buck-Morss, mas com uma intenção igualmente subversiva, é seguida por Jamila Mascat em “Hegel and the Black Atlantic”: seu objeto de análise não é o Caribe em Hegel, mas Hegel no Caribe. Em lugar de explorar a possível influência de acontecimentos no Haiti na filosofia de Hegel, a autora analisa a presença da filosofia hegeliana em três autores martinicanos que foram figuras-chave do pensamento e ativismo anticolonial e antirracista do século xx: Aimé Césaire, Frantz Fanon e Édouard Glissant. Mascat argumenta que o penetrante engajamento dos três escritores com diferentes aspectos da filosofia de Hegel não deve ser considerada como uma assimilação sem mais.

Em Césaire e sua concepção de négritude, ecos da filosofia hegeliana se fazem presentes de maneira eminente na forma como ele concebe o particular como um momento a ser afirmado, e não eliminado, pelo universal (Mascat 2014, 96). A ideia do Retorno ao país natal (Césaire 2013 [1939]), de um re-enraizamento na negritude e no particular contra a alienação, assimilação ou diluição no universal ressoa com a linguagem da dialética hegeliana e o conceito de negação determinada (Mascat 2014, 97-98), mas agora com uma carga política e uma perspectiva anticolonial.26 A negritude designa a Bildung fenomenológica da consciência negra (ibid., 98), é uma experiência transformativa, ao mesmo tempo corrosiva e construtiva, por meio da qual “a consciência colonizada de fato segue um itinerário fenomenológico no qual ela se perde e então se encontra novamente, realizando movimentos hegelianos paradigmáticos” (ibid., 99).

Em Pele branca, máscaras negras Fanon (2020 [1952]), por sua vez, faz referências diretas à Fenomenologia do espírito e à “dialética do senhor e do escravo”, submetendo a notória figura hegeliana a uma reelaboração histórica que a situa no universo colonial (Mascat 2014, 102). Contudo, a dinâmica do reconhecimento retratada por Hegel não pode ser simplesmente transposta para um regime baseado, por sua própria natureza, na desigualdade, na obstrução de qualquer reciprocidade, já que essa unilateralidade paralisa o movimento dialético (ibid., 103-104). Na perspectiva de Fanon, a luta anticolonial aparece no lugar da dialética hegeliana do reconhecimento como o elemento imperativo para destravar a possibilidade de libertação e criar um novo conceito de humanidade e de universalidade; como consequência, “[a] reconstrução de Fanon do esquema hegeliano do reconhecimento é ao mesmo tempo uma readaptação para ajustá-lo a um conjunto diferente de circunstâncias históricas e uma crítica de seus limites políticos” (ibid., 104).

A relação de Glissant com Hegel, finalmente, segue por rotas bem mais tortuosas (ibid., 106). Mais próximo do pós-estruturalismo que ganhava cada vez mais espaço na França com figuras críticas ao hegelianismo da geração anterior, Glissant favoreceu as ideias de errância, tout-monde e pensamento arquipélico em oposição a conceitos do pensamento logocêntrico e teleológico como os de universalidade, identidade e diferença. O tema da totalidade, contudo, revela para Mascat o intricado legado hegeliano em seu pensamento (ibid.). Hegel permanece uma “presença subterrânea e antagonista” nos seus escritos na medida em que Glissant busca uma concepção de totalidade que seja aberta, di-versa e dispersa, ligada à Poética da relação (Glissant 2011 [1990]), em oposição ao caráter fechado, uni-versal e binário da noção de conhecimento como compreensão (Begreifen), que se revela totalitário (Mascat 2014, 109).

A relação de cada um desses pensadores com a filosofia hegeliana é muito mais complexa, evidentemente, e não cabe aqui nos aprofundarmos nessas especificidades; o que nos interessa é a chave interpretativa proposta por Jamila Mascat para compreender essa relação, que ela chama de canibalismo intelectual. Na contramão da violência epistêmica, o gesto canibalizante de Césaire, Fanon e Glissant “produz uma reviravolta disruptiva que desnaturaliza a dialética hegeliana e reorienta sua própria funcionalidade”, em que ela “acaba sendo deslocada para constelações conceituais remotas e mobilizada a serviço da negritude, da revolução anticolonial e da ‘poética da relação’” (ibid., 111).

As propostas de Buck-Morss e Mascat indicam a possibilidade de, ao se desvelar a falsidade da filosofia hegeliana em sua pretensão de autonomia e universalidade, localizar precisamente nessa práxis de desvelamento um momento de abertura para uma concepção mais abrangente de libertação. Em lugar de ser complementada com ou substituída por saberes previamente excluídos, silenciados e dominados, a filosofia hegeliana é assim subvertida –posta de cabeça para baixo, para usar a metáfora de Marx– de modo a revelar a sua dependência constitutiva com relação àquilo que exclui como o seu outro.27

Considerações finais

Apontamos ao início do texto que os saberes hegemônicos passam por um período de crise. Se em uma primeira impressão essa crise parece atingir os saberes hegemônicos a partir de fora, a crise aparece, na medida em que a entendemos no sentido proposto por Lukács, ao contrário, como resultado das contradições imanentes aos próprios saberes hegemônicos e ao caráter autoritário de sua pretensão de universalidade.28 Se as contradições já estão presentes no funcionamento “normal” da produção dos saberes hegemônicos, a crise nada mais é do que o momento em que tais contradições são trazidas à luz, tematizadas, abrindo-se assim a possibilidade de transformações das relações sociais e epistêmicas. O caráter intrinsecamente aberto da crise é algo que está também no centro da perspectiva teórica da convivialidade-desigualdade: se a realidade social, em sua múltiplas dimensões, é composta por níveis maiores ou menores de desigualdades materiais e de poder que são a todo tempo negociadas e renegociadas, nada garante que uma crise leve de modo automático a transformações emancipatórias, nem que estas sejam sólidas e duradouras. Há sempre o risco de que, passado o momento mais volátil da crise, tudo permaneça em essência como está, ou, no pior dos casos, que ocorram retrocessos no sentido de reforçar a exclusão, a violência e a exploração que caracterizam as relações de colonialidade.

Precisamente por essa razão faz-se importante ter clareza acerca das estratégias de descolonização que temos à disposição, bem como acerca de seus pressupostos teóricos e suas implicações práticas. A sistematização proposta pode ser útil, por exemplo, para possibilitar a criação de pontes interseccionais entre projetos de descolonização epistêmica que, apesar de terem objetos distintos (relações de dominação de raça, gênero ou classe, por exemplo), compartilham uma prática –de conversão, inversão ou subversão– afim. Apontar concretamente essas possibilidades é um próximo passo nessa empreitada. De qualquer forma, a intenção desse mapeamento de caminhos da descolonização não é definir a priori qual deles é o melhor em todas as situações. Projetos de descolonização epistêmica segundo os três modelos propostos têm demonstrado seu potencial para desencadear debates mais amplos assim como práticas transformadoras. Pretende-se, antes, contribuir para criar as condições para optar pelo caminho mais adequado diante dos casos particulares com os quais nos deparamos. Ao aprofundarmos nossa autocompreensão enquanto proponentes da descolonização epistêmica em sociedades marcadas por agudas desigualdades, entenderemos também melhor as armas, os caminhos e as possibilidades de articulação que temos à frente.

Referências bibliográficas

Baldraia, Fernando. 2021. “Epistemologias para convivialidade ou Zumbificação”. Afro-Ásia 63: 486-525.

Bernal, Martin. 1987. Black Athena: The Afroasiatic Roots of Classical Civilization. Volume I: The Fabrication of Ancient Greece, 1785-1985. New Brunswick: Rutgers.

— 1991. Black Athena: The Afroasiatic Roots of Classical Civilization. Volume II: The Archaeological and Documentary Evidence. New Brunswick: Rutgers.

— 2006. Black Athena: The Afroasiatic Roots of Classical Civilization. Volume III: The Linguistic Evidence. New Brunswick: Rutgers.

Bernasconi, Robert. 1998. “Hegel at the Court of the Ashanti”. Em Hegel After Derrida, organizado por Stuart Barnett, 41-63. London: Routledge.

— 2000a. “Will the Real Kant Please Stand Up: The Challenge of Enlightenment Racism to the Study of the History of Philosophy”. Radical Philosophy 117: 13-22.

— 2000b. “With What Must the Philosophy of World History Begin? On the Racial Basis of Hegel’s Eurocentrism”. Nineteenth-Century Contexts 22: 171-201.

— 2003. “Hegel’s Racism. A Reply to McCarney”. Radical Philosophy 119: 35-37.

Bhambra, Gurminder. 2022. “Undoing the epistemic disavowal of the Haitian Revolution”. Em De-Centering Global Sociology: The Peripheral Turn in Social Theory and Research, organizado por Arthur Bueno, Mariana Teixeira e David Strecker, 67-81. London: Routledge.

Bourgeois, Bernard. 1992. Études hégéliennes: Raison et décision. Paris: Presses Universitaires de France.

Brennan, Timothy. 2013. “Hegel, Empire, and Anti-Colonial Thought”. Em The Oxford Handbook of Postcolonial Studies, organizado por G. Huggan, 142-161. Oxford: Oxford University Press.

Buchwalter, Andrew. 2006. “Is Hegel’s Philosophy of History Eurocentric?” Em Hegel and History, organizado por W. Dudley, 87-110. Albany: SUNY.

Buck-Morss, Susan. 2017 [2000]. Hegel e o Haiti. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições.

Carneiro, Aparecida Sueli. 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de doutorado, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo.

Césaire, Aimé. 2013 [1939]. The 1939 Notebook of a Return to the Native Land (Bilingual Edition), traduzido e organizado por A. James Arnold e Clayton Eshleman. Middletown: Wesleyan University Press.

Copilaș, Emanuel. 2018. “Hegel, Eurocentrism, Colonialism”. Romanian Journal of Political Science 2: 1-19.

Crenshaw, Kimberlé. 2019 [1989]. “Desmarginalizando a intersecção entre raça e sexo: uma crítica feminista negra da doutrina da antidiscriminação, da teoria feminista e da política antirrascista”. Em Género e performance: textos essenciais, Vol. II, organizado por Maria Manuel Baptista e Fernanda de Castro, 53-89. Coimbra: Grácio Editor.

Fanon, Frantz. 2020 [1952]. Pele Negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu.

Femenías, María Luisa. 2012. “El ideal del ‘saber sin supuestos’ y los límites del hacer filosófico”. Sapere Aude 3, n.º 5: 7-31.

Ferreira da Silva, Denise. 2007. Toward a Global Idea of Race. Minneapolis: University of Minnesota Press.

Glissant, Edouard. 2011 [1990]. Poética da relação, traduzido por Manuela Mendonça. Lisboa: Sextante.

Güven, Ferit. 2006. “Hegel and the Dialectic of Racism”. Proceedings of the Twenty-First World Congress of Philosophy 2: 51-57.

Hegel, G. W. F. 1955 [1830]. Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte. Band 1: Die Vernunft in der Geschichte. Organizado por J. Hoffmeister (5. ed.). Hamburg: Felix Meiner.

— 1981 [1830]. Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse 1830. Dritter Teil: Die Philosophie des Geistes Mit den mündlichen Zusätzen. Werke 10. Frankfurt a.M.: Suhrkamp.

— 2019 [1807]. Fenomenologia do espírito. 9. ed. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Editora Universitária São Francisco.

— 2022 [1821]. Linhas fundamentais da filosofia do direito. Tradução, apresentação e notas de Marcos Lutz Müller. Incluindo os adendos de Eduard Gans. Introdução de Jean-François Kervégan. São Paulo: editora 34.

Hill Collins, Patricia. 2016 [1986]. “Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro”. Revista Sociedade e Estado 31, nº. 1: 99-127.

Hill Collins, Patricia e Sirma Bilge. 2021 [2016]. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo.

Houlgate, Stephen. 2005. An Introduction to Hegel: Freedom, Truth and History. Oxford: Wiley Blackwell.

Lukács, Georg. 2003 [1923]. História e consciência de classe: Estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes.

Laurentiis, Allegra de. 2014. “Race in Hegel. Text and Context”. Em Philosophie nach Kant: Neue Wege zum Verständnis von Kants Transzendental- und Moralphilosophie, organizado por Mario Egger, 591-623. Berlin: De Gruyter.

Mascat, Jamila. 2014. “Hegel and the Black Atlantic: Universalism, Humanism and Relation”. Em Decolonizing Enlightenment: Transnational Justice, Human Rights and Democracy in a Postcolonial World, organizado por Nikita Dhawan, 93-114. Opladen: Barbara Budrich Publishers.

McCarney, Joseph. 2000. Hegel on History. London: Routledge.

— 2003. “Hegel’s Racism? A Response to Bernasconi”. Radical Philosophy 119: 32-35.

MECILA. 2022. “Presentación”. Em Convivialidad-Desigualdad: Explorando los nexos entre lo que nos une y lo que nos separa, organizado por Mecila, 9-15. Buenos Aires/São Paulo: CLACSO/Maria Sibylla Merian Centre Conviviality-Inequality in Latin America.

Mignolo, Walter. 2005. The Idea of Latin-America. Oxford: Blackwell.

Moellendorf, Darrel. 1992. “Racism and Rationality in Hegel’s Philosophy of Subjective Spirit”. History of Political Thought XIII, n.º 2: 243-255.

Monahan, Michael, org. 2017. Creolizing Hegel. London/New York: Rowman and Littlefield.

Mowad, Nicholas. 2013. “The Place of Nationality in Hegel’s Philosophy of Politics and Religion: A Defense of Hegel on the Charges of National Chauvinism and Racism”. Em Hegel on Religion and Politics, organizado por Angelica Nuzzo, 157-185. Albany: SUNY Press.

Na, Jong Seok. 2019. “The Dark Side of Hegel’s Theory of Modernity: Race and the Other”. Esercizi Filosofici 14: 49-71.

Nobre, Marcos e Sérgio Costa. 2019. “Apresentação: Convivialidade em sociedades desiguais: uma proposta para colaboração interdisciplinar”. Novos Estudos 38, n.º 1: 9-13.

Pinkard, Terry. 2000. Hegel: A Biography. Cambridge: Cambridge University Press.

Purtschert, Patricia. 2010. “On the limit of spirit: Hegel’s racism revisited”. Philosophy and Social Criticism 36, n.º 9: 1039-1051.

Quijano, Aníbal. 2005. “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”. In A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas, organizado por Edgardo Lander, 227-278. Buenos Aires: CLACSO.

Sanguinetti, Federico. 2021. “Ratio e raça: Sobre humanidade e racismo em Hegel”. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos 18, no. 32: 1-40. https://ojs.hegelbrasil.org/index.php/reh/article/view/464.

Schutte, Ofelia M. 1990. “The Master-slave Dialectic in Latin-America: The Social Criticism of Zea, Freire and Roig”. The Owl of Minerva 22, n.º 1: 5-18.

Sousa Santos, Boaventura. 2009. “Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes”. Em Epistemologias do Sul, organizado por Boaventura Sousa Santos e Maria Paula Meneses, 23-72. Coimbra: Almedina.

Stone, Alison. 2017. “Hegel and Colonialism”. Hegel Bulletin 2017: 1-24.

Teixeira, Mariana. 2018. “Master-Slave Dialectics (in the Colonies)”. Krisis: Journal for Contemporary Philosophy 2018, n.º 2: 108-112.

— 2022a. “Masters, Slaves, and Us: The Ongoing Allure of the Struggle for Recognition”. Em Hegel’s Phenomenology of Spirit: Exposition and Critique of Contemporary Readings, organizado por Ivan Boldyrev e Sebastian Stein, 74-95. New York: Routledge.

— 2022b. “Três modelos de descolonização epistêmica: Inclusão, substituição e subversão”. Em Psicologia e teoria crítica: Descolonização, interseccionalidade e a crítica do capitalismo, organizado por Carlos Barros, José Fernando Costa e Stefanie Macêdo, 69-89. Feira de Santana: UEFS Editora.

Terada, Rei. 2023. Metaracial: Hegel, Antiblackness and Political identity. Chicago: The University of Chicago Press.

Tibebu, Teshale. 2011. Hegel and the Third World: The Making of Eurocentrism in World History. Syracuse: Syracuse University Press.

Yancy, Georges, org. 2012. Reframing the Practice of Philosophy: Bodies of Color, Bodies of Knowledge. Albany: SUNY Press.

Zambrana, Rocío. 2017. “Hegel, History, and Race”. Em The Oxford Handbook of Philosophy and Race, organizado por Naomi Zack, 251-260. Oxford: Oxford University Press.

Zea, Leopoldo. 1976. La dialéctica de la conciencia americana. Ciudad de México: Alianza.

Recebido: 11.11.2022
Versão reformulada: 06.06.2023
Aprovado: 03.07.2023

 

 

 


1 Gostaria de agradecer aos participantes do colóquio da Área de Pesquisa “Politics of Conviviality” do Mecila (Maria Sibylla Merian Centre Conviviality-Inequality in Latin America), em especial ao debatedor Fernando Baldraia, pela leitura generosa, as provocações e o debate de uma versão prévia deste texto em maio de 2023.

2 Ver, por exemplo, George Yancy (2012) no campo do antirracismo, María Luisa Femenías (2012) no campo do feminismo, e Georg Lukács (2003) no campo do marxismo.

3 Sobre o nexo entre convivialidade e desigualdade, cf. por exemplo Nobre e Costa (2019).

4 A noção de convivialidade-desigualdade que nos orienta na escrita desse artigo não é “nem um conceito, nem uma teoria, nem um método”, mas antes um enfoque, uma “perspectiva que se dirige tanto às interações quanto aos elementos estruturais dos padrões de convivência existentes” (Mecila 2022, 12).

5 Devo ao Fernando Baldraia a preciosa sugestão de utilizar os termos conversão e inversão para as duas primeiras estratégias de descolonização epistêmica.

6 Uma primeira versão dessa tentativa de sistematização foi apresentada no II Colóquio Psicologia e Teoria Crítica, realizado pelo Grupo de Pesquisa Psicologia e Teoria Crítica da Universidade Estadual de Feira de Santana (Brasil) em 21 de outubro de 2020, tendo sido posteriormente publicada em Teixeira 2022b.

7 Ressalte-se que essa perspectiva denuncia não apenas a exclusão de outros saberes do campo epistêmico dotado de legitimidade e reconhecimento, mas também o empobrecimento dos próprios saberes hegemônicos ora reconhecidos como legítimos. O caráter deletério da colonialidade epistêmica não se limita, portanto, ao fato de que os saberes de determinados sujeitos são relegados à condição de não-saber, o que traz consequências perniciosas para estes grupos marginalizados. Para além disso, a colonialidade epistêmica deve ser combatida, segundo o modelo da conversão, também em benefício dos próprios saberes hegemônicos, os quais, com a inclusão dos saberes previamente negligenciados, tornam-se eles mesmos mais ricos, completos ou abrangentes. Ao tornarem-se menos limitadores, os saberes hegemônicos se tornam também menos limitados.

8 “Subversão” é como (sub)vertemos para o português o termo alemão Aufhebung, que pode significar tanto suprimir quanto conservar e que justamente por conta desta polissemia é utilizado por Hegel para se referir ao procedimento da negação determinada. Utilizamos essa “tradução traidora” para reforçar o caráter conflituoso, potencialmente destrutivo, desse procedimento (o que não fica explícito nas traduções correntes do termo, tais como “superação” ou “suprassunção”), ao mesmo tempo em que retém a ideia de que algo é conservado, ainda que transformado, posto abaixo, de ponta-cabeça (diferente, portanto, de “supressão”, outra tradução usual).

9 Um argumento semelhante, a partir de um outro quadro teórico de referência, é defendido por Gurminder Bhambra (ver, por exemplo: Bhambra 2022).

10 Sobre a noção de epistemicídio, cf. Carneiro (2005).

11 Este ponto é vividamente enfatizado por Fernando Baldraia (2021) em sua abordagem da “zumbificação” como prática epistemológica de resistência.

12 Além dos que abordaremos nas próximas seções, cf. Brennan (2013), Ferreira da Silva (2007), Laurentiis (2014), Moellendrof (1992), Purtschert (2010), Stone (2017) e Tibebu (2011). Especificamente sobre a América Latina, cf. Zea (1976) e Schutte (1990).

13 Tentativas similares de categorização podem ser encontradas, por exemplo, em Copilaș (2018), Na (2019) e Sanguinetti (2022), ainda que haja diferenças tanto na caracterização de cada grupo quanto nos autores e autoras que são agrupados em cada categoria. Cf. também Teixeira (2018). É importante frisar que, como se trata aqui de tipos ideais, não se pretende que os autores e autoras arroladas a seguir correspondam perfeitamente, de forma pura, à categoria em que foram agrupados. Destaque-se, além disso, que os autores e autoras abordados nas seções que seguem não se posicionaram explicitamente nos termos de proponentes de uma descolonização de Hegel; ao tematizarem, questionarem e proporem formas de lidar com o eurocentrismo de Hegel, porém, suas análises podem ser caracterizadas como contribuições para a contestação da colonialidade epistêmica tal como foi delineada na introdução deste artigo.

14 Um passo ulterior, que não cabe nos limites deste texto e que pretendemos desenvolver mais adiante, consistiria em uma análise mais aprofundada das implicações conceituais e práticas não só de cada estratégia de descolonização epistêmica, como também das possibilidades de articulação entre elas.

15 Nicholas Mowad (2013, 158), por exemplo, enfatiza que as denúncias do racismo de Hegel têm em geral por objeto “comentários ofensivos supostamente feitos por Hegel em suas preleções”. De fato, as Preleções sobre a filosofia da história mundial não foram publicadas durante a vida de Hegel e consistem, além dos escritos do próprio Hegel para suas aulas, também das anotações feitas por estudantes que assistiram às preleções. Mowad destaca, assim, que “Os comentários de Hegel sobre raça são poucos e quase completamente limitados às adições de Boumann e outras notas de aula (cuja autenticidade está sempre em questão)” (ibid.).

16 Andrew Buchwalter (2009), por exemplo, não nega o eurocentrismo e até o “eurochauvinismo” dos escritos de Hegel sobre a história mundial, mas defende que a lógica hegeliana da história mundial não é eurocêntrica em um sentido pejorativo ou pernicioso. No mesmo sentido, Joseph McCarney (2003) considera que há uma distinção indispensável a ser feita entre o que pertence à estrutura de uma filosofia e o que não.

17 Cf., por exemplo: Bourgeois (1992, 246-248), Houlgate (2005, 22-23 e 175-176), e Pinkard (2000, 493).

18 Cf. Hegel (2019 [1807]), capítulo 5, parte A, item c (“Observação da relação da consciência-de-si com sua efetividade imediata: fisiognomia e frenologia”). Joseph McCarney destaca também a recusa de Hegel do antissemitismo, a “forma mais poderosa de racismo de sua época” (McCarney 2003, 33 e 2000, 156).

19 Cf., por exemplo, Mignolo (2005, 35) e Sousa Santos (2009, 45).

20 Em outro texto, Bernasconi (2000b) detalha justamente a base racial do eurocentrismo hegeliano que considera que a história propriamente dita começa apenas com os caucasianos.

21 Sobre a inseparabilidade entre a discussão de Hegel sobre raça e sua concepção de história e modernidade, bem como de sua concepção do humano, cf. também Zambrana (2017) e Terada (2023).

22 Note-se a semelhança desse argumento com aquele defendido por Andrew Buchwalter (2009) e descrito no item anterior (2.a).

23 Güven ressalta os comentários de Hegel a respeito dos árabes na parte sobre o espírito subjetivo da Enciclopédia das ciências filosóficas, em que o filósofo atribui a suposta imutabilidade do caráter nacional árabe à imutabilidade do clima e da geografia onde estão localizados (Güven 2006, 56).

24 Nota-se que este argumento lembra a crítica adorniana ao princípio da identidade, o que ecoa as tentativas recentes de aproximar a teoria crítica frankfurtiana e as teorias decoloniais.

25 A literatura em torno dessa figura da filosofia hegeliana é bastante vasta, e tem aumentado nos últimos anos. Remeto aqui somente a Teixeira (2022a), onde exploro uma hipótese interpretativa para explicar o duradouro fascínio exercido por esta passagem (a saber: o modo de exposição utilizado por Hegel que, em uma alternância entre as perspectivas da “consciência natural” e da “consciência filosófica”, abre um extenso leque de leituras e apropriações possíveis).

26 “A negritude significa então a memória que, recuperando o passado, retorna ao presente e torna-se um anseio por libertação” (Mascat 2014, 98).

27 Ver num sentido semelhante também as contribuições para a coletânea Creolizing Hegel (Monahan 2017). Sobre a ideia de crioulização (inspirada em Glissant, aliás), diz o organizador na introdução do livro: “O projeto de crioulizar Hegel envolve, portanto, arrancá-lo do solo imaculado e muitas vezes estéril do cânone mitologizado e colocá-lo em contextos desconhecidos e em conversas com interlocutores não ortodoxos. [...] a prática da crioulização não pode jamais deixar os participantes inalterados e estáticos” (Monahan 2017, 8).

28 Em História e consciência de classe, Lukács defende que as crises no capitalismo sãos momentos de intensificação, em termos quantitativos e qualitativos, das contradições da vida cotidiana da sociedade capitalista (Lukács 2003 [1923], 224). Em períodos de normalidade, diz Lukács, a coesão da vida cotidiana parece ser regida por uma série de “leis naturais”, aparentemente imutáveis. As crises são concebidas então como situações anômalas, extraordinárias, que surgem de forma externa, mais ou menos arbitrária e aleatória, e parecem colocar em xeque aquelas leis consideradas quase “naturais”. Para Lukács, ao contrário, o que acontece durante uma crise –uma crise econômica, política, sanitária, uma guerra–, não é que aquelas leis simplesmente deixam de funcionar; mas antes aquelas “leis” passam a ser desveladas em sua historicidade, em seu caráter de algo socialmente produzido. A crise, então, aponta para uma exacerbação das contradições que já habitam o funcionamento “normal” da vida social sob o capitalismo, e não um acontecimento que lhe atinge de fora.