DOI: 10.18441/ibam.24.2024.85.209-232

 

 

 

 

Direitos Humanos, Revolução Cubana e a Guerra Fria Interamericana (1959-1963)1

Human Rights, Cuban Revolution and the Interamerican Cold War (1959-1963)

Alexandre Queiroz

Universidade de São Paulo, Brasil

alexandrezqueiroz@gmail.com
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-9592-0712

Introdução

A movimentação político-ideológica nas Américas teve um limiar no ano de 1959. A partir de uma convergência político-diplomática, neste ano foi criada a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ratificada em uma Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores em Santiago do Chile. Na ata do encontro foi expresso o desejo de formar “[...] um sistema jurídico, para que os homens não se conduzam ao expediente extremo da revolta contra a tirania e a opressão” (OEA 1959, 11), buscando projetar os Direitos Humanos como um parâmetro jurídico-social, não violento e normatizado, oposto aos desígnios mais revolucionários. Não obstante, a prerrogativa de que os Direitos Humanos pudessem atravessar as fronteiras dos Estados Nacionais nas Américas, criando tensões com a soberania estatal, também era uma questão sensível no Sistema Interamericano de Direitos Humanos (que abrange a Comissão e, posteriormente a Corte) da Organização dos Estados Americanos (OEA).

O ímpeto de “promover a liberdade” é um paradigma que permeou a formação da CIDH, e também permite um paralelo analítico com a Revolução Cubana. Uma das mais importantes revoluções no continente no século xx, a Revolução trinfou também no ano de 1959, em outro ponto das Américas, no Caribe. Em janeiro, a insurreição levada a cabo por guerrilheiros, na última hora apoiada pelo Partido Socialista local, entrou na capital Havana e formou um governo revolucionário. A Revolução foi possível por uma convergência nacional de rechaço à Ditadura de Fulgêncio Batista (no poder desde 1952) e a promessa de uma “nova independência” - depois do jugo colonial espanhol e imperialista estadunidense. Assim como a CIDH não inaugurou a pauta dos Direitos Humanos no continente, a Revolução Cubana também não introduziu o Comunismo, mas ambos os acontecimentos são emblemáticas manifestações políticas e demarcações institucionais que atravessaram fronteiras, inspirando utopias e embates.

A apropriação dos Direitos Humanos e do Comunismo intensificaram a Guerra Fria na região, influenciando-se mutualmente. Nesse sentido, não buscaremos retratar como a América Latina refletiu esses marcos globais, mas sim como agiu nesse cenário. Essa premissa é fundamental para analisar o período da Guerra Fria para além da bipolaridade tradicional entre Estados Unidos e União Soviética, demarcando o restante do mundo como satélite. Seguindo Aldo Marchesi (2017), buscaremos mostrar uma Guerra Fria latino-americana não restrita a uma suposição historiográfica do “Sul” local e do “Norte” global, mas como um processo integrado e multilateral. Todavia, considerando as relações de poder, nesse caso ponderando o papel dos Estados Unidos, em diálogo com a perspectiva da Guerra Fria Interamericana (Harmer 2016).

No curto período que destacamos, a relação entre a Comissão e o novo governo de Cuba passou por mudanças drásticas: inicialmente, houve apoio à formação da CIDH, em 1959, respaldo que foi analisado na primeira parte do artigo pela dinâmica caribenha da Guerra Fria; depois, houve um processo de desgaste, que foi considerado em duas partes: primeiro ressaltando as escolhas e contradições do governo revolucionário cubano, depois, privilegiando o desenvolvimento das atividades da Comissão; concluímos com a ruptura de relações, em 1962, em decorrência da expulsão do governo de Castro da OEA, e a publicação de mais um Informe da CIDH sobre Cuba, no ano seguinte. Esses três momentos estruturam a divisão deste artigo. Para articular essa proposta foram usados documentos de arquivos estatais e institucionais de vários países do continente: os arquivos dos Ministério de Relações Exteriores da Argentina, do Brasil e do Chile e o Foreign Relations of the United States; os arquivos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA no Columbus Memorial Library, em Washington; além dos jornais estadunidenses The New York Times e o Washington Post.2

Buscamos destacar a atuação dos atores latino-americanos e dialogar com novas perspectivas historiográficas. A premissa que norteia esse artigo é entender como os sentidos conferidos aos Diretos Humanos estavam em debate nesse período da Guerra Fria nas Américas e estão integrados aos embates sobre os caminhos de Cuba após a Revolução. Dessa forma, é um esforço para descaracterizar os Direitos Humanos como um conceito hermético e atemporal, assentado em raízes liberais, e a Revolução cubana como um evento destinado ao triunfo da guerrilha, teleologicamente calcado no Socialismo. Foi nos meandros da relação entre o governo revolucionário e a CIDH que descortinamos um processo mais amplo e transnacional de apropriações e disputas.

Para dissertar sobre a constituição da CIDH, é importante considerar uma nova historiografia sobre os Direitos Humanos, retratada em Samuel Moyn (2014) e Stefan-Ludwig Hoffmann (2011). Essa abordagem tem buscado romper com um entendimento linear e etapista dos Direitos Humanos, conferindo historicidade ao seu processo de apropriação. Nesse sentido, acreditamos que a relação entre o governo de Cuba e a Comissão apresenta um caso instigante para questionar essa interpretação teleológica, apresentando dilemas e impasses importantes tanto no desenvolvimento da CIDH, quanto na afirmação do regime revolucionário. Sobre a formação da Comissão, estudos anteriores já apontaram que sua criação decorreu de um processo de oposição às Ditaduras no Caribe (a exemplo de Goldman 2009), sendo recordada sua atuação na República Dominicana na primeira metade dos anos 1960, uma Missão cumprida como o presidente da CIDH à época Manuel Bianchi nomeou uma publicação sobre o caso. Porém, acreditamos ser oportuno analisar mais detidamente essa relação, tendo Cuba como elemento central.

A apropriação dos Direitos Humanos e as relações interamericanas durante a Guerra Fria é um campo de estudos que tem se desenvolvido consideravelmente nas últimas duas décadas. Os anos 1970 tem sido o período privilegiado, pois durante essa década muitas organizações de Direitos Humanos na região agiram em diálogo transnacional. A oposição às Ditaduras instauradas sob a Doutrina de Segurança Nacional marcou essa fase mais intensa, analisada em Patrick Kelly (2018) ou na relação com a Igreja Católica, em Alexandre Queiroz (2021). Outro ponto de destaque, normalmente abordado de forma concomitante, é a forma como a sociedade e a política externa dos Estados Unidos se adaptaram a esse novo cenário, a exemplo de Kathyrin Skkink (2004). Nesse artigo buscamos deslocar o recorte temporal para a passagem dos anos 1950 para a década de 1960, abordando um outro período da Guerra Fria Interamericana e privilegiar a perspectiva latino-americana, ainda que integrada à processos globais.

Consideraremos a relação entre a Revolução Cubana e sua dimensão interamericana (não centrada exclusivamente na perspectiva estadunidense), em linhas parecidas ao estudo de Luiz Alberto Moniz Bandeira (2009), e acreditamos que a problematização quanto aos Direitos Humanos no âmbito das relações continentais da OEA é um espaço privilegiado para essa abordagem. Não obstante, ao longo desse artigo, também levaremos em conta as dinâmicas internas da Revolução, e as especificidades de suas relações internacionais, demarcando como a problemática com os Direitos Humanos revela nuances das contradições da afirmação do Estado socialista.

A tempestade política caribenha e a formação da Comissão

Embora a proximidade temporal, a formação de uma Comissão de Direitos Humanos na OEA3 não foi uma simples reação à Revolução na ilha de Cuba. Havia um contexto de turbulência política no Caribe, nos marcos da Guerra Fria (Pettiná 2019). O destacado fluxo de indivíduos e ideias na região movimentou os embates e reformulações das forças de tendência democrática e autoritárias, reformistas e revolucionárias. A Legião do Caribe exemplifica esse embate, pois congregava exilados, políticos e aventureiros com o intuito de derrocar regimes ditatoriais. Constituída sob o prelúdio da Guerra Fria latino-americana, a Legião foi uma articulação transnacional que chegou a ser patrocinada por ex-presidentes, como Juan José Arévalo (Guatemala), Rómulo Betancourt (Venezuela) e José Figueres (Costa Rica). Como Nicolás Prados Ortiz de Solórzano (2020) demonstrou, a luta insurrecional do Movimento 26 de julho (M-26-7) integrou essa rede, sendo decisiva para os laços transnacionais de combate à Ditadura de Batista.

O clima político nas relações interamericanas passava por mudanças, incorrendo numa maior pressão às Ditaduras do continente. Como demonstrou Stephen Rabe (1996, 56), a política estadunidense para a América Latina, particularmente o Caribe, começou a esboçar mudanças ao final dos anos 1950. Houve uma redução da característica tolerância e apoio da administração republicana de Dwight Eisenhower às Ditaduras, que até então pouco considerava as respectivas violações de Direitos Humanos. O ano de 1959 foi um momento particularmente favorável aos desígnios democráticos no continente, apesar de ainda prevalecerem Ditaduras longevas, como no Paraguai, Nicarágua, Haiti e República Dominicana.

Inicialmente, após a derrocada da Ditadura em Cuba, o novo governo adotou uma postura de não enfrentamento com os Estados Unidos nos organismos internacionais. Um mês antes da viagem de Fidel Castro aos Estados Unidos em abril de 1959, o representante cubano na Organização das Nações Unidas (ONU), Manuel Bisbé y Alberni, pediu que os EUA colaborassem na destituição das Ditaduras no continente, mas sem recorrer ao “big stick”, e sim apostando na ação coletiva.4 Mas a postura cubana se modificou ao longo de 1959. Em poucos meses, Bisbé já denunciava abertamente na ONU que oficiais estadunidenses conspiravam em Miami contra Fidel Castro,5 e a delegação cubana paulatinamente realocou seu posicionamento em temas sensíveis à agenda da Guerra Fria, aproximando-se dos países socialistas. Manuel Bisbé y Alberni era um experiente diplomata, doutor em Direito, Filosofia e Letras, além de professor de literatura e língua grega, na Universidade de Havana. Em março de 1961, ele morreu num ataque súbito do coração nas dependências do prédio da ONU, em Nova York, local onde defendeu os desígnios da Revolução cubana desde 1959.

Na OEA, observamos um movimento semelhante, sob a condução do marxista Raúl Roa. O encontro de autoridades americanas em Santiago (1959), que fundou a CIDH, foi uma contenda diplomática que tinha o Caribe como plano de fundo e as interpretações sobre Democracia, Não Intervenção e Direitos Humanos como questões norteadoras, e muitas vezes conflitantes. Nesse encontro de ministros, a representação cubana se juntou ao apelo venezuelano pela suspensão das Ditaduras do continente da OEA, tendo o regime de Rafael Trujillo na República Dominicana como alvo mais eminente. O apoio dos EUA para essa ação também foi requisitado.6 No contexto de êxito da Revolução, Fidel Castro e Rómulo Betancourt eram aliados, e a primeira viagem internacional do cubano foi à Venezuela, logo em janeiro de 1959, na qual pediu apoio e financiamento. Em abril de 1960, o presidente cubano Dórticos ofereceu, em um tom americanista, homens e armas ao governo venezuelano para barrar o avanço das investidas que Trujillo, Batista e Pérez Jimenez teriam orquestrado contra Betancourt.7

A cobertura do jornal The New York Times da Reunião de Ministros em Santiago expressa o impacto da ação conjunta da Venezuela e de Cuba contra às Ditaduras latino-americanas, que chegaram inclusive a questionar a autoridade moral dos países se oporem ao Comunismo enquanto existissem Ditaduras opressivas no continente (Szulc 1959a, 2). Os ministros de Relações Exteriores reunidos buscavam uma alternativa que conciliasse o princípio da Não-Intervenção e a defesa da Democracia (Szulc 1959b, 1). A proposta do secretário de Estado dos EUA, Christian Herter, de criar uma comissão para estudar as causas dos conflitos no Caribe foi recusada pelos delegados cubanos e venezuelanos, pois ambos gostariam de fortalecer a já existente Comissão Interamericana de Paz (CIP - criada em 1940), para que o órgão recebesse denúncias de violação de Direitos Humanos (Onis 1959, 1). A delegação de Cuba propôs, sem sucesso, que a Comissão de Paz analisasse a relação entre subdesenvolvimento e instabilidade política, e voltou a insistir na importância dos direitos sociais e econômicos no debate sobre a formação da CIDH,8 demonstrando que essa relação, influenciada pela cadeia de eventos da própria Revolução de 1959, permeava uma leitura que acenava aos direitos sociais antes do governo cubano se firmar socialista.

Apesar da tentativa de tramitar a questão das Ditaduras latino-americanas na Comissão Interamericana de Paz, os ministros deliberaram criar um órgão específico para lidar com as violações de Direitos Humanos –o que viria a ser a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A delegação cubana na OEA foi a favor da ideia, cobrando celeridade para seu estabelecimento e advogando que o novo órgão tivesse relevância no assunto.9 Na comissão encarregada de redigir o estatuto, cujos trabalhos foram descritos como trabalhosos, desordenados e até caóticos, Leví Marrero Artiles representou os interesses cubanos. Marrero era escritor e historiador, nos anos 1950 assumiu a cátedra de História Econômica na Universidade de Havana e ingressou no Ministério de Relações Exteriores enquanto se desenrolava a Revolução.

A comissão tinha a difícil tarefa de conciliar países resistentes a uma atribuição de poderes muito extensa à CIDH e outros que buscavam fortalecê-la. Cuba, Honduras e Equador foram os únicos países que votaram a favor de todos os 29 artigos do estatuto da CIDH na votação de 26 de maio de 1960. Inclusive em artigos polêmicos, que tiveram franca oposição dos Estados Unidos, Brasil e Argentina ao estipularem mais poder de atuação ao órgão.10 A aprovação de uma versão mais branda do estatuto frustrou a representação cubana, e o delegado Enrique Perez Cisneros, que era diplomata de carreira e historiador, chegou a afirmar que “esse será um tácito encorajamento para cada ditador no continente” (Unna 1960, A10).

O endosso à recém-formada Comissão também se desdobrou na tentativa de integrá-la. Nos primeiros meses de 1960, em meio a negociações para a eleição da primeira turma de comissionados, o governo cubano indicou dois nomes:11 O primeiro foi Adriano Carmona Romay, professor da Faculdade de Havana, doutor em Direito e Ciências Sociais e assessor do Ministério de Estado. O acadêmico era um destacado municipalista, com várias publicações e membro da Comissão Nacional Cubana da UNESCO. O outro indicado tinha mais proximidade com a temática dos Direitos Humanos e ainda era uma peça importante das relações interamericanas da ilha. Ernesto Dihigo y Lopéz Trigo era doutor em Direito Civil e Filosofia e Letras na Universidade de Havana e professor nessa faculdade na cadeira de Direito Romano. Foi ministro de Relações Exteriores (1950-1951), e integrou várias missões internacionais do governo cubano no pós-Segunda Guerra. Participou da comissão que redigiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos na ONU e tinha publicações sobre Direito Internacional. Quando foi indicado à Comissão, Dihigo chefiava a estratégica embaixada cubana nos Estados Unidos desde janeiro de 1959. Integrava o círculo de intelectuais da Universidade de Havana próximos ao Partido Ortodoxo e o Autêntico do primeiro gabinete revolucionário, a exemplo do ex-primeiro-ministro José Miró Cardona e do ex-chanceller Roberto Agramonte. Poucos meses antes de sua candidatura ser apresentada à OEA, Lopéz Trigo foi chamado à Havana em protesto contra as investidas contrarrevolucionárias de Washington (Gómez 2022), sendo o último embaixador cubano nos EUA no século xx. Adriano Carmona Romay e Ernesto Dihigo Lopéz Trigo não foram eleitos. Porém, é significativo destacar que nos primeiros meses após o triunfo da Revolução, a CIDH foi vista como uma plataforma para que os cubanos criticassem algumas Ditaduras em âmbito continental, espelhando a própria experiência de deposição do ditador Fulgêncio Batista como um caminho para os latino-americanos.

Era perceptível que os Direitos Humanos integravam a nova agenda das relações internacionais de Cuba, como o presidente do Conselho da OEA, Gonzalo Escudero, relatou à diplomacia argentina.12 No entanto, ele destacou duas tendências na condução da política externa de Cuba: uma moderada e outra extremista –essa última preocupada em atacar os governos tidos como opositores. Com o acirramento do cenário político na ilha, os personagens cubanos que endossaram à Comissão e vocalizavam os Direitos Humanos na OEA expuseram divergências: Leví Marrero, passou a exercer a docência no exílio nos anos 1960 e se tornou uma importante figura da comunidade de exilados cubanos; Enrique Perez Cisneros rompeu com a Revolução e entrou para o Banco Interamericano de Desenvolvimento em 1960; e havia ainda Ernesto Dihigo y Lopéz Trigo, que era próximo a um grupo de tendência liberal que progressivamente perdia espaço para os guerrilheiros no novo governo. Assim, num primeiro momento houve convergência quanto à criação de um órgão que propagasse os Direitos Humanos pelas Américas, mas o ambiente dinâmico e tenso das mudanças na região exacerbou as dissidências internas e a relação entre a CIDH e o novo regime em Cuba entrou em nova fase.

Cuba e os sentidos dos Direitos

A dimensão interamericana do processo revolucionário cubano esteve presente desde o seu prelúdio. A oposição às Ditaduras banhadas pelo Mar do Caribe, que violavam os Direitos Humanos e mantinham laços com o regime de Batista (como Rafael Trujillo na República Dominicana, Gustavo Rojas Pinilla na Colômbia, Marcos Pérez Jimenéz na Venezuela, Anastasio Somoza na Nicarágua e François Duvalier no Haiti), era parte do componente ideológico guerrilheiro prévio à tomada do poder. Esse rechaço também esteve presente nas declarações iniciais de Manuel Urrutia, primeiro presidente após 1959, e do primeiro gabinete, que contava com vários juízes e advogados (Rojas 2015, 73-106).

O amplo arco de alianças contra Batista, que tomou posse do Estado de Cuba em 1959, era heterogêneo. As modificações legais do regime, como a suspensão do habeas corpus, adiamento das eleições e os Tribunais de Guerra, geraram atritos entre os mais liberais e o grupo guerrilheiro liderado por Fidel Castro. Enfraquecido, Urrutia foi substituído da presidência por Osvaldo Dorticós, que permaneceu no posto até a promulgação da Constituição de 1976. No entanto, o cargo de presidente foi subordinado ao de primeiro-ministro, que Fidel Castro assumiu pelo mesmo período e, paulatinamente, consolidou sua hegemonia. Em certa medida podemos considerar essa disputa pela dualidade proposta por Louis A. Pérez em Cuba: beteween Reform and Revolution (2011, 240). Para o historiador, “Aqueles que defendiam a lei e o ordenamento jurídico estavam em conflito com aqueles que demandavam justiça imediata”. Ao longo de 1959, o grupo liberal que defendia as liberdades individuais e a propriedade privada perdeu espaço para os fidelistas, que pregavam a supremacia dos direitos coletivos e públicos. Essas concepções de Justiça e Direitos são fundamentais para compreendermos como os Diretos Humanos foram interpretados pelo grupo revolucionário, que deteve a primazia do poder em Cuba e se opuseram à concepção liberal amplamente disseminada entre os Estados americanos - e ocidentais, e que norteou os trabalhos da CIDH. Foi uma influência decisiva nos decretos e leis publicados nos primeiros meses da Revolução que compuseram o novo ordenamento jurídico e a própria concepção de Estado.

A condução diplomática de Cuba também refletiu esse novo posicionamento. Raúl Roa García, nomeado embaixador cubano na OEA no começo de 1959, assumiu o Ministério de Relações Exteriores em julho. Opositor destacado da Ditadura de Gerardo Machado na década de 1930 e professor da Universidade de Havana, Roa Garcia instituiu diversas mudanças na pasta durante sua longa permanência, até 1976. Teve de lidar com a delicada estrutura do Ministério, que só em 1959 instituiu uma divisa para assuntos latino-americanos, e teve várias demissões e defecções em embaixadas e postos diplomáticos após a Revolução. García figura como um dos heróis celebrados na ilha, el canciller de la dignidad, descrito como intérprete idôneo da diplomacia revolucionária de Fidel Castro. Nos primeiros anos de gestão diplomática, enfrentou o duplo desafio de defender os novos rumos do país, a princípio nacionalistas, reformistas e anti-imperialistas, e expandir sua base de apoio, principalmente pela América Latina.

A OEA foi um dos principais espaços de embate quanto à crescente percepção de perigo, e entusiasmo, que os cubanos passaram a representar nesses anos de Guerra Fria. Nesse sentido, houve um processo de tensionamento entre Cuba e os países americanos, a princípio pela inspiração, e em alguns casos pelo apoio cubano à movimentos sediciosos já nos primeiros meses de 1959. No sul do continente, o ministro de Relações Exteriores do Chile, Germán Vergara, foi informado dessas tensões. De acordo com o representante do Panamá Ricardo Espinosa, Raúl Roa e Fidel Castro, após serem informados dos rumores sobre a preparação de uma expedição de panamenhos em Cuba para depor o governo de Ernesto de la Guardia, afirmaram que o governo cubano não apoiaria uma agressão aos países latino-americanos.13 Em abril de 1961, a representação da Guatemala na OEA denunciou um levante armado no país que teria tido a colaboração do “governo totalitário de Cuba”, também descrito como um satélite articulado ao comunismo internacional.14 Piero Gleijeses (2002, 23-28) afirmou que o grau de envolvimento cubano com as guerrilhas ou tentativas de insurreições na América Latina foi variado, desde a seleção direta de lideranças na incursão argentina, até a escassa interferência na guerrilha dominicana. Em todos os casos, porém, Cuba ajudou aqueles que estavam dispostos a lutar, embora tenha se limitado a apoios de logística, treinamento e consultoria, e não intervenções diretas. A maioria dessas tentativas de insurgências fracassaram no curto prazo, mas criaram ruídos na relação com os Estados do continente.

Uma vez eleito presidente da CIDH, Rómulo Gallegos deparou-se com as denúncias de violação de Direitos Humanos pelo governo de Cuba já na primeira sessão do órgão. A relação do correligionário de Gallegos e presidente da Venezuela, Rómulo Betancourt, com Fidel Castro também havia mudado. Em seu segundo mandato como presidente, após uma longa estadia no exílio, Betancourt antagonizou com os ditadores da região, a exemplo da contenda contra Rafael Trujillo. Inicialmente próximo a Fidel Castro, a divergência entre ambos começou a surgir logo após a formação do governo revolucionário cubano, e também compreende o quadro de dissolução da Legião do Caribe. Para moderados como Rómulo Betancourt e José Figueres, não poderia haver colaboração com comunistas, o que não era seguido pelos castristas. O núcleo comandado por Castro também esboçava reações cada vez mais refratárias aos EUA, divergindo das boas relações que Betancourt mantinha com o país. Na escalada de tensões, a relação foi rompida e deu lugar à hostilidades.

Ainda no âmbito das relação interamericanas, é motivo de controvérsia precisar em que momento houve um rompimento das relações entre os Estados Unidos e Cuba: a maioria das análises situa esse momento no outono de 1959, quando Eisenhower declarou as diretrizes da nova política estadunidense em relação a Cuba, ou no começo de 1960, quando as pontes de conciliação ruíram e foi aprovado o plano de invasão da Baia dos Porcos (levado a cabo no ano seguinte). Para William LeoGrande (2017), esse desgaste ocorreu mais cedo, nos primeiros seis meses do governo de Havana, motivado pela crescente “insubordinação antiamericanista” do primeiro-ministro Fidel Castro e pelo sentimento de raiva experienciado na cúpula de poder em ambos os lados. Esse desgaste foi progressivo, tenso e negociado, amparado em fatores pragmáticos (como nacionalização de empresas estrangeiras, fim da compra da cota do açúcar cubano e até tentativas de invasões) e ideológicos (a exemplo da propagação do Comunismo e da aproximação com a União Soviética), frequentemente entrelaçados. Nesse processo, acreditamos que as violações e o debate sobre Direitos Humanos na dimensão interamericana podem ajudar a repensar questões historiográficas. Ainda que o peso dessas alegações foi menor se comparado com outros fatores, elas tensionaram a relação entre Cuba e o Sistema Interamericano como um todo, sendo um elemento fundamental no estabelecimento político, diplomático e ideológico tanto da CIDH como do novo governo cubano.

A repentina preocupação com os Direitos Humanos no Congresso e na imprensa dos Estados Unidos teria irritado os cubanos. Fidel Castro reclamou que semelhantes protestos não ocorreram frente à violência e abusos do ex-ditador Batista, que contava com a colaboração dos Estados Unidos. A crítica lastreada nos Direitos Humanos também se espraiou pela América Latina. O governo mexicano orientou seu embaixador em Havana a conversar privadamente com Raúl Roa sobre a repercussão das execuções sumárias em curso na ilha. Em 1960, as embaixadas argentina e chilena em Havana relataram aos respectivos governos o perigo que Castro passava a representar, sob o espectro do Comunismo (Harmer 2019, 122-123). Para Moniz Bandeira (2009, 219), as acusações de execuções sumárias e tortura dos opositores nessa fase inicial do regime acobertaram mais uma oposição ao caráter revolucionário do movimento do que uma preocupação pelos Direitos Humanos, uma premissa que se mostrou reiteradamente válida, mas acreditamos que tal interpretação pode contribuir para negligenciar o problema. Os Direitos Humanos, mesmo nesse período, não eram apenas uma retórica inócua, instrumentalizada, mas apresenta questões pertinente sobre reivindicações sociais, limites e contradições da Democracia Liberal, tensionamentos da Guerra Fria, além da própria dinâmica do Sistema Interamericano.

Nesse período, a CIDH não era o único fórum da OEA no qual a questão dos Direitos Humanos em Cuba foi abordada. O Departamento de Estado dos EUA, em junho de 1960, considerava a Reunião de Ministros de Relações Exteriores e a Comissão Interamericana de Paz caminhos possíveis para encaminhar o assunto e angariar apoio para uma “posição firme” contra Cuba. A atuação da Comissão de Paz ao abordar as violações de Direitos Humanos na República Dominicana foi avaliada como positiva, e os Estados Unidos pressionaram para que a Comissão voltasse sua atenção à Cuba. Os EUA também pressionaram seis países centro-americanos a levarem à CIP e à CIDH denúncias de violações de Direitos Humanos em Cuba. Todavia, as representações da Nicarágua e de El Salvador declinaram da iniciativa, seguidos por Honduras e Panamá. Sem entrar em detalhes, a representação da Guatemala afirmou que a proposta estadunidense foi mal conduzida.15 A campanha dos EUA contra Cuba na América Latina era ampla, como evidencia uma circular do Departamento de Estado destinada à todas as missões diplomáticas do país nas Américas - exceto Havana. A diretriz determinava que “todo material relacionado à infiltração comunista e orientação do governo cubano, violação dos direitos humanos e de propriedade privada e outras evidências da natureza da ditadura castrista devem ser revistos e transmitidos aos líderes responsáveis”.16

Se em junho de 1960, a CIP e a reunião de Ministros eram os canais principais da OEA para a campanha anti-Castro, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos passou a figurar nesse rol no âmbito da Operação Mongoose.17 Autorizada pelo presidente Kennedy em 1961, a operação coordenada pela CIA incluía desde ações encobertas de terrorismo até obter a chancela da OEA para deflagar ações contra o regime cubano. Assim, progressivamente a CIDH passou a deter mais espaço para analisar e criticar o regime cubano.

O governo de Cuba também buscava se defender e imputar aos Estados Unidos a marca de intervencionista. Em agosto de 1960, o representante cubano na OEA, Carlos Lechuga, posteriormente realocado como embaixador na ONU, enviou à CIP um documento que discorre sobre agressões econômicas, midiáticas e de contrainsurgência (como voos piratas e sabotagens nas plantações). Lechuga afirmou que a imprensa dos EUA, por anos em silêncio sobre o “horror e morte da violação diária de direitos humanos no nosso país”, apresentava uma imagem falsa dos fuzilamentos. O diplomata especulou que, se não fossem os julgamentos dos Tribunais Revolucionários, o povo teria feito “justiça com as próprias mãos”.18

Mas o clima no continente se tornava cada vez mais desfavorável ao novo governo cubano. Em outubro de 1961, a delegação do Peru, país que havia rompido relações com Cuba, denunciou no Conselho da OEA “atos de força” do governo cubano, sua incorporação à “órbita sino-soviética” e a infiltração do Comunismo, alegando que “a efusão de sangue e a opressão que sofre o povo cubano por parte do regime comunista que o governa constitui uma afronta à América [...]”.19 É significativo que a representação peruana apesar da afirmar que todos os direitos da Declaração Americana estavam sob ataque e das atribuições da CIP e da CIDH, tenha evocado o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) de 1947 na denúncia por considerá-lo a única forma possível de intervir em Cuba, numa crítica à falta de mecanismos de ação nesses dois órgãos.

Imbuído pelo Conselho da OEA, e após o governo de Cuba se declarar abertamente socialista, a CIP publicou em seu Informe de 1961 um tópico sobre a ilha. Além de relatar a “infiltração” comunista, o Informe abordou violações dos Direitos Humanos: a pena de morte aos contrarrevolucionários e os julgamentos nos Tribunais Militares –alvo de um informe da Comissão Internacional de Juristas em outubro de 1959; as restrições que os cubanos enfrentavam para sair do país e o descumprimento de normas sobre o exílio; a falta de liberdade de imprensa e religiosa; e as declarações contrarias à Democracia representativa.20 Esse informe da Comissão de Paz também reverberou em duas direções importantes no ano de 1962: o rol de direitos violados enumerados foi em grande medida os que a Comissão de Direitos Humanos considerou na elaboração de seu Informe; e esse documento também fundamentou o pedido de exclusão da ilha socialista da OEA.

A CIDH: informes e diretrizes

O dilema quanto a “impor a Liberdade” ou a forma como os Direitos Humanos viviam uma relação de tensão com os Estados Nacionais, permeou toda a atividade da CIDH –o que pode ser observado até os dias de hoje. Em caso concomitante ao cubano, as volumosas comunicações dos exilados haitianos dirigidas à Comissão motivaram, em setembro de 1962, um pedido ao governo do Haiti para a CIDH realizar parte do seu período de sessão no país - tal como havida sido feito com a República Dominicana. Porém, o governo haitiano negou o pedido, sob a justificativa de ingerência na sua soberania e continuou rechaçá-los durante toda a década de 1960.21

Cuba também não foi o único país objeto de escrutínio nos Informes da Comissão. Mas, até o Golpe Militar no Chile em 1973, todos os 8 Informes sobre a situação dos Direitos Humanos por país que a CIDH produziu foram sobre países da região do Caribe, e Cuba foi retratada em metade deles. Já no segundo período de sessões do órgão, Cuba foi alvo de 45 das 62 comunicações recebidas. Em 24 de abril de 1961, foi enviada a primeira nota (divulgada à imprensa) ao Ministério de Relações Exteriores de Cuba expressando temor que fossem aplicados “eminente e severas medidas repressivas na presente situação”.22

A frustrada tentativa de invasão da Baia dos Porcos, em abril de 1961, foi um evento de forte impacto na deterioração das relações entre Estados Unidos e Cuba, e também nos trabalhos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O destino dos cerca de 1200 prisioneiros que participaram da operação financiada pelo governo dos EUA se tornou uma questão de Direitos Humanos e, como William LeoGrande e Peter Kornbluh (2014, 47-67) revelaram, a primeira negociação substantiva entre os dois países desde o corte de relações diplomáticas três meses antes do incidente. Ao longo de 1961 e no ano seguinte, a CIDH recebeu diversas solicitações para impedir que a pena de morte fosse imputada aos prisioneiros.

Após o encerramento da segunda sessão da CIDH, na qual foi feito um apelo para o “tratamento humanitário” dos presos em Cuba, houve manifestações privadas sobre a questão. Em um encontro informal em Washington, alguns comissionados expressaram alinhamento com a posição dos EUA em relação as principais questões sobre a ilha caribenha, e se mostraram preocupados com a forma como os latino-americanos agiriam na disputa: Gabino Fraga, mexicano, ponderou que apesar da simpatia do México por Cuba, eles, os comissionados, não eram simpáticos à entrada do Comunismo no Ocidente; a única comissionada mulher, Ángela Acuña de Chacón, da Costa Rica, expressou satisfação pelo exílio político concedido pelo presidente costa-riquenho Mario Echandi aos grupos anti-Castro; Durward V. Sandifer, estadunidense, afirmou que não esperava que a ação da Comissão mudasse de imediato o curso do governo revolucionário, mas que modificasse o posicionamento dos Estados latino-americanos em relação a Cuba (Donihi 1961, C1). Em uma obra publicada pouco tempo depois, Sandifer contrapôs a defesa da Democracia e dos Direitos Humanos ao regime castrista e o Comunismo (Sandifer e Scheman 1967).

O alinhamento com os Estados Unidos se evidencia não só pelo que os comissionados disseram, mas também pelo que deixaram de falar: não houve condenação à invasão da Baia dos Porcos, ocorrida no mesmo mês em que os comissionados se pronunciaram. A preocupação dos comissionados gravitou quanto à reação dos latino-americanos, além de um conteúdo expressamente anticomunista, tendo sido emitidas dias após Fidel Castro publicizar o caráter socialista da Revolução. Sandifer, Fraga e Chacón contabilizam 3 dos 7 comissionados, e permaneceram durante toda a década de 1960 no cargo, numa época em que a CIDH tinha um baixo índice de renovação. Os outros comissionados demostravam um perfil anticomunista, que pode ser observado pela própria presidência e vice-presidência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.23 Tanto Rómulo Gallegos, o primeiro presidente da Comissão, como Manuel Bianchi, vice que assumiu a presidência na sequência, eram próximos de grupos políticos que postulavam uma espécie de “terceira via” ideológica durante a Guerra Fria, contrária à orientação marxista de Fidel Castro em Cuba. Gallegos foi presidente da Venezuela por um breve período em 1948, era aliado de Rómulo Betancourt e um dos fundadores da Ação Democrática. Bianchi era próximo do Partido Democrata Cristão, que chegou à presidência do Chile com Eduardo Frei (1964-1970).

O perfil dos comissionados, as manifestações públicas e o alinhamento com a postura dos Estados Unidos em relação a Cuba são elementos que corroboram a tese do anticomunismo da CIDH na sua etapa formativa. Porém, veremos que também a forma como o conceito de Direitos Humanos era apropriado pela Comissão nesse período firmou a posição contrária ao governo de Cuba. O regime castrista violou vários artigos da Declaração Americana de 1948 e nos interessa analisar a forma como essas violações foram processadas, compreendendo-as no marco das relações interamericanas e da Guerra Fria. Acreditamos que o debate sobre os Direitos Humanos em Cuba revela impasses e tensões tanto do novo regime na ilha, quanto da apropriação dos Direitos Humanos nas Américas.

Os “apelos humanitários” da Comissão foram em parte encobertos pelo que foi caracterizado como uma campanha intervencionista contra a ilha caribenha. Em 26 de abril de 1962, o ministro interino de Relações Exteriores de Cuba respondeu aos apelos da Comissão quanto aos prisioneiros da Baia dos Porcos, alegando que “aplicará as leis vigentes idênticas, em seu fundamento, às que vigoram nos países civilizados sobre defesa, território e soberania [...]” (CIDH 1963, Cap. I. Antecedentes, s. p.). Manuel Bianchi replicou reiterando que não se aplicasse a pena de morte, “inspirada pelo mais elevado espírito humanitário”, e que o governo cubano respeitasse o direito a um julgamento justo tal como ratificado na Declaração Americana.24 Após idas e vindas nas negociações, os prisioneiros da Baia dos Porcos foram libertos no final de 1962, em troca de artigos de saúde e alimentação.

A Comissão de Direitos Humanos integrou o processo de tensionamento do Sistema Interamericano em relação a Cuba. Em 1962, a CIDH passou a elaborar Informes sobre a situação dos Direitos Humanos nos países do continente americano. O país objeto de exame era selecionado de acordo com a conjuntura política e as denúncias de violação. A estrutura desse documento de análise possuiu semelhanças com o Informe anual geral da instituição (que começou a ser publicado em 1970), e conta com uma exposição das comunicações e denúncias recebidas, além de detalhar a situação dos direitos contidos na Declaração Americana ou tematiza violações especificas. Esses Informes foram se tornando mais elaborados, fruto do aprimoramento da atuação da CIDH e de um maior amparo legal. Eles tendem a ser publicados quando a Comissão realiza uma visita in loco ao país (sempre com o consentimento do respectivo governo), e foram beneficiados com a formação de uma rede de proteção dos Direitos Humanos em diálogo com a Comissão, principalmente a partir da década de 1970 –a visita e os Informes sobre o Chile (ambos em 1974) e Argentina (1979 e 1980, respectivamente), sob Ditadura militar, foram expressões emblemáticas nesse sentido.

Cuba foi o primeiro país escolhido para esse novo tipo de análise da Comissão. A demanda por um relatório sobre Direito Humanos sobre a ilha foi apresentada logo no seu terceiro período de sessões e se desdobrou em um outro Informe sobre a situação dos presos políticos no ano seguinte. O governo cubano vetou a possibilidade de uma visita ao país, e não havia uma rede estruturada de organizações que pudesse remeter muitas informações à Comissão. Dessa forma, a Comissão utilizou as informações das denúncias enviadas pela comunidade de exilados em Miami (EUA). Durante esse período, foram recebidas centenas de denúncias de violação que subsidiaram a elaboração desses dois Informes: para o de 1962, a Comissão Interamericana utilizou as informações submetidas em 426 denúncias de violação e 549 comunicações gerais sobre Direitos Humanos em Cuba (CIDH, 1962, Capítulo II. Comunicaciones, s.p.); no seguinte, em 1963, foram recebidas 1350 comunicações (CIDH, 1963, Capítulo I. Antecedentes, s. p).

Para o Informe de 1962, a base informativa foram as denúncias enviadas à CIDH e algumas audiências realizadas com cubanos exilados. No rol de entrevistados, há organizações e indivíduos que ativamente conspiravam de Miami contra o regime cubano e em colaboração com o governo dos Estados Unidos. Foram ouvidos, entre outros: Eduardo Escagedo e outros representantes das Corporações Econômicas de Cuba; Fernando García Chacón, do Diretório Revolucionário Estudantil de Cuba, entidade envolvida nas ações de contrarrevolução; o jornalista e antigo membro do Partido Ortodoxo, Luis Conte Aguero, que posteriormente escreveria diversos livros contra o regime socialista; e José Miró Cardona, opositor de Batista, advogado e o primeiro-ministro designado após o triunfo revolucionário em 1959, mas substituído após um mês no cargo por Fidel Castro e realocado para a embaixada espanhola. Após romper com o regime, emigrou para os EUA. Foi ouvido pela CIDH na condição de presidente do Conselho Revolucionário de Cuba, entidade que participou da invasão da Baia dos Porcos. O necrológio do The New York Times ressaltou que Cardona “cooperou intimamente com Washington por dois anos, tão intensamente, na verdade, que alguns exilados cubanos o chamaram de fantoche dos Estados Unidos”.25

Ainda sobre as audiências, vale mencionar que os comissionados se reuniram com cerca de 15 cubanas esposas de prisioneiros políticos na ilha, acompanhadas do Anti-Communist Christian Front. No encontro, foi apresentada uma lista com 1789 cubanos executados (638 identificados com nome). Apesar do apoio da CIDH, ao final as manifestantes teriam se dado conta de que a Comissão não tinha autoridade para tomar ações diretas,26 o que ajuda a dimensionar as limitações da Comissão que havia sido criada a poucos anos e as tensões com a soberania dos Estados Nacionais.

Em 1963, a Comissão decidiu expandir o mecanismo de escuta e, para ouvir os testemunhos que subsidiavam as denúncias, a CIDH se transladou para Miami. A estadia na cidade da província da Flórida é emblemática por esse ser o principal centro de recepção dos exilados do novo regime cubano, de movimentação contrainsurgente (recorrentemente sob patrocínio do governo dos Estados Unidos) e estar geograficamente próxima à ilha, pouco mais de 350 km separam Miami de Havana. A especificidade de Miami foi notada por um enviado do Bureau Interamericano dos EUA à cidade: “Enquanto Havana parece não ter o ar alegre e despreocupado de um ano atrás, os cubanos não perderam o senso de humor e as piadas antirrevolucionárias não faltam. Miami é conhecida como ‘Berlim Ocidental’”.27 A brincadeira demonstra a dimensão global da Guerra Fria na qual a CIDH estava inserida, ao ter optado por transladar-se a Miami, vista com um foco de combate anticomunista, na alusão com a divisão setorial de Berlim pós-Segunda Guerra, e atuado, assim como os Estados Unidos, em oposição aos rumos socialistas em Cuba.

A oposição cubana em Miami foi caracterizada por Louis Pérez (2011, 256) como “quase totalmente dependente do financiamento e suporte da CIA”, tornando-se “instrumentos da Política Norte-Americana, sem meios de organizar-se como uma força de oposição genuína”. De fato, esse segmento era estratégico para a Casa Branca. Earl E. T. Smith, embaixador dos EUA em Cuba entre 1957 e 1959 e conselheiro de John Kennedy, conclamou os exilados a se organizarem e fossem representados na OEA.28 Nos primeiros anos da Revolução, o perfil dos cubanos exilados em Miami era peculiar, pois muitos provinham da classe média, com elevado número de profissionais liberais, médicos, empresários e membros do clero. Estimava-se que 256.187 cubanos haviam entrado no país no período entre janeiro de 1959 e junho de 1963 e em Miami 40% desses exilados provinham de classes ricas cujas posses foram expropriadas pelos processos de socialização da ilha, e a CIDH (1968, 516-530) concluiu que não precisavam de ajuda econômica. O êxodo de cubanos foi se tornando um fenômeno de massa ao final da década de 1960. Mas importa destacar que a oposição ao governo revolucionário não era um segmento estático, e o apelo às medidas de sabotagem e ações militares foram se tornando um dos principais instrumentos de ação de parte desse grupo. O apoio do governo dos EUA é crucial nesse sentido, arregimentando a oposição. Porém, é imprescindível balancear esse contingente com o forte apoio popular à Revolução em Cuba, um dos seus principais ativos de legitimação.

Os comissionados Manuel Bianchi, Ángela Acuña e Galindo Pohl chegaram em Miami no dia 20 de janeiro de 1963. Na cidade, realizaram 5 reuniões oficiais. Foram ouvidos 97 relatos anônimos, normalmente apenas identificando a ocupação ou condição civil, que conferem ao Informe um tom de veracidade pela experiência desses indivíduos. A CIDH organizou e selecionou os relatos, conduzindo uma narrativa que, apesar de buscar transparecer o conteúdo de uma verdade revelada, foi mediada pela instituição.

Sobre o conteúdo do Informe, há considerações pertinentes sobre a estrutura política cubana, que conduzem à exposição da violência do governo revolucionário. De imediato, a Carta constitucional e a divisão dos poderes foram modificadas. Em janeiro de 1959, o Congresso foi dissolvido e as funções legislativas foram atribuídas ao Conselho de Ministros, que promulgou a Lei Fundamental da República. A Lei Fundamental de 1959 encampou partes da Constituição de 1940, marco legal modificado pelos Estatutos Constitucionais de Viernes de Dolores da Ditadura de Fulgêncio Batista em 1952, e que diversos segmentos políticos cubanos haviam concordado em restituir, tornando-se uma pauta que agregou a oposição –inclusive o grupo guerrilheiro castrista. Entretanto, após o triunfo da Revolução, a Constituição de 1940 não foi restituída, mas adaptada aos projetos do novo regime.

Além da modificação na divisão de poderes, a Lei Fundamental mudou o sistema penal, conferindo retroatividade de análise dos delitos e estabelecendo um regulamento penal ditado durante o período de guerrilha em Sierra Maestra (1958), que tipificava o crime de atividade contrarrevolucionária, julgado em fóruns diferenciados, e ampliava a aplicação da pena de morte (antes admitida para crimes de caráter militar). Outra legislação criada em tempos de conflito armado, as leis processuais da República em Armas de Cuba durante a Guerra de Independência de 1898, tinha uma função complementar. Em suma, o novo ordenamento legal conferia fundamento aos Direitos Humanos, tal como disposto na Declaração Americana, mas a CIDH (1962, Cap. I, s.p.) julgou que as disposições transitórias tornavam o exercício dessas leis inoperantes na prática.

Ainda que a Comissão Interamericana admitisse a “faculdade soberana” do governo cubano, advertiu suas imprecisões e excessos, como o “aterrorizante” número de fuzilamentos - estimados em 1789 entre 1959 e 1961, muitos sem juízo prévio. Dessa forma, as violações do direito à vida, à segurança e à igualdade perante a lei foram o principal foco desse Informe sobre Cuba, que também contemplou casos de tortura, insegurança jurídica (a exemplo da formação dos Tribunais Revolucionários), prisões arbitrárias (as comunicações recebidas pela CIDH estimavam em mais de 50 mil presos políticos), restrição de sufrágio (sem previsão de eleições e reconhecendo apenas o Partido Socialista Popular e o Movimento 26 de julho) e asilo. Os direitos sociais, econômicos e culturais não foram considerados pela Comissão.

O II Informe, de 1963, ao deter-se exclusivamente na situação dos presos políticos, enumerou como ocorriam as prisões, sua arbitrariedade de método e fundamento, a suspenção do recurso de habeas corpus e episódios de violência com os detidos e seus familiares. Foram descritas as condições dos presos políticos, desde as instalações (o documento chega a dizer que “parecem existir”, no termo usado pela CIDH e nas denúncias, campos de concentração nas áreas rurais) até as torturas e maus tratos (subdivididos em categorias, como negligência médica, loucura por maus tratos, saques, ofensas, etc.) (CIDH 1963). A situação das detentas mulheres (que voltariam a integrar uma seção em separado no Informe de 1976) e dos familiares dos presos (objetos de um segundo Informe em 1970 junto com os presos políticos) também compõem o Informe, atentando para as especificidades desses dois grupos.

Embora a relação da CIDH com Cuba esteja pautada nas denúncias de violação, ela também pode ser considerada pela forma como a Comissão interpretava o sentido dos Direitos Humanos no período. Entre a redação do I e do II Informe sobre Cuba, em outubro de 1962, os comissionados aprovaram um Programa Geral de Trabalho. Destacamos um dos cinco eixos, sobre a efetividades dos Direitos Humanos, que compreendia a proteção dos cidadãos frente as ingerências do Estado, que almejava fortalecer o poder de petição dos indivíduos e a obtenção de reparação de agravos. Essa demanda ampliaria o poder de atuação da Comissão, que desde a sua primeira sessão em 1960 pleiteava que o Conselho da OEA reformasse seu estatuto. Essa também era uma questão importante nos debates sobre o Direito Internacional dos Direitos Humanos que pautava o fortalecimento dos indivíduos como sujeitos jurídicos. No começo dos anos 1960, a CIDH estava num impasse, pois recebia denúncias de violação, mas não tinha competência para processá-las, apenas de considerá-las. Após uma reforma, a CIDH passou a tramitar denúncias a partir de 1965, e acreditamos que a experiência com as denúncias cubanas pode ter contribuído nesse sentido.

O Programa de Trabalho ainda revela que os Direitos Humanos eram interpretados próximos a uma concepção de Democracia Liberal: defesa do Estado de Direito e sua judicialidade; amparo do cidadão frente ao Estado; ênfase no sufrágio como forma de participação popular na esfera pública; e primazia dos direitos civis e políticos. Todos esses pontos eram sensivelmente críticos no novo governo revolucionário de Cuba: a Constituição de 1940 não foi restituída, e o Estado era governado pelas Leis Revolucionárias promulgadas em 1959, que previam medidas excepcionais de Segurança Nacional; o apelo à noção de coletividade, diminuindo os direitos individuais por um contexto de “defesa da revolução”; as prometidas eleições gerais foram reiteradamente postergadas; e o governo de Cuba, ainda mais após a adoção do Socialismo em 1962, foi enfático em defender a primazia dos direitos sociais e econômicos. Dessa forma, havia uma divergência entre a concepção de Direitos Humanos da CIDH e a do novo regime de Cuba, e ambos se atribuíam o papel de difundir seus valores. Assim, a forma como os Direitos Humanos eram apropriados por ambos se integrou a outros fatores de tensão como o anticomunismo, as denúncias de violação e a política interamericana. Essas dimensões explicativas não são excludentes e estão conectadas: a adoção do Socialismo enfatizou os direitos coletivos e sociais, em detrimento do ideário liberal e alimentou o “combate ao Comunismo” por todo o continente; além das prerrogativas de soberania do Estado e defesa da Revolução nos marcos da Guerra Fria.

Rompimento e crítica

O decorrer do tensionamento da relação entre Cuba e os demais Estados do continente é conhecido. Com a aproximação do novo regime à esfera socialista soviética e valendo-se do arcabouço político-jurídico da OEA contra o Comunismo, o estado de Cuba foi expulso da Organização na Reunião de Ministros de Relações Exteriores em Punta del Este (Uruguai), em janeiro de 1962. A maioria dos Estados latino-americanos chancelou a condenação de Cuba no âmbito da OEA, e em 1964 o bloqueio a Cuba foi estendido. A expulsão não denotou o isolamento global do país, pois Cuba adensou seu alinhamento com os Estados socialistas e com o movimento de países não-alinhados do dito “Terceiro Mundo”. Além disso, alguns Estados latino-americanos se abstiveram na votação da OEA e não se aderiram sistematicamente à política de exclusão.

Um efeito imediato da expulsão do governo cubano da OEA foi o rompimento de relações com a CIDH. Havana parou de responder as comunicações, e o diálogo que antes era rarefeito, agora estava suspenso. Quando a CIDH pediu informações sobre a legislação de Direitos Humanos em abril de 1962, Raúl Roa respondeu estar “perplexo” com o pedido, pois Cuba havia sido expulsa da OEA poucos meses antes. Em episódio similar, Roa afirmou em novembro de 1964 que “Nem legal, nem factualmente, nem moralmente, a Organização dos Estados Americanos tem jurisdição ou competência sobre um Estado que foi ilegalmente privado de seus direitos” (CIDH 1963, Anexo II, s. p.). Manuel Bianchi rebateu afirmando que o atual governo foi excluído de participar da OEA, mas não o Estado. A Comissão também alegou ter competência de matéria, pois sua missão seria defender os Direitos Humanos, sendo necessário manter um vínculo com o representante jurídico do Estado, nesse caso, o governo de Cuba. Essa missão não poderia ser afetada pela decisão “política” de outros órgãos da OEA. Diante disso, os comissionados decidiram que “[...] em nenhuma circunstância poderia renunciar a sua obrigação de promover o respeito pelos direitos humanos em todos os Estados membros da Organização” (CIDH 1967, anexo III, s. p.). A justificativa da Comissão denota que seu trabalho de proteger e propagar os Direitos Humanos não se restringia aos aspectos jurídicos, conferindo um dever político, uma missão que se qualificava moral e inquestionável, além de invariável.

De toda forma, os Informes da CIDH sobre a situação dos Direitos Humanos em Cuba que se seguiram não continham a defesa e alegações do governo cubano sobre as acusações. O pedido para realizar uma sessão da Comissão na ilha enviado em setembro de 1962 não foi respondido. Para o Informe de 1963, foram emitidos 48 pedidos de esclarecimentos referentes a 112 denúncias. Destes, apenas 12 foram respondidas, e os retornos contestavam a competência da CIDH e criticavam a motivação e credibilidade da OEA e de seus membros:

Por muitos anos, a Organização dos Estados Americanos permaneceu cega e surda às violações dos mais elementares direitos humanos e, ainda hoje, execráveis tiranias vestidas com o falso manto da chamada “democracia representativa” continuam negando ao homem americano seus direitos mais essenciais (CIDH 1963, Cap. I, s. p).

Além disso, a nota do regime cubano solicitou formalmente que a CIDH investigasse as agressões do governo dos Estados Unidos contra seu país, citando a invasão da Baia dos Porcos (abril de 1961), o que não ocorreu. Os Informes da CIDH sobre Cuba transmitiram, desde muito cedo, as contradições e violências do processo revolucionário cubano, na contramão da propaganda entusiasmada dos jovens corajosos que derrubaram uma Ditadura e construíram um novo governo. A exclusão de Cuba da OEA e o alinhamento com a política estadunidense na Organização minou parcialmente o alcance dessa denúncia, formulada em grande parte pelos dissidentes do regime e no contexto de isolamento da ilha.

A construção da narrativa de denúncia foi estabelecida de forma diferente nos dois Informes da CIDH. No de 1962, houve pouco espaço para testemunhos, que cumpriram uma breve função ilustrativa, condicionados às palavras da própria Comissão. Por outro lado, o Informe de 1963 conjugou a disposição de “vozes a serem ouvidas” em território estadunidense, tornando-as “provas vivas” das arbitrariedades do novo regime. A validade humanitária desses relatos, a situação execrável que o governo cubano dispensava aos presos políticos, além do evidente uso político dessas afirmações, no contexto interamericano, embasaram o forte tom crítico que a Comissão direcionou à Cuba ao longo da década de 1960 (outros Informes, também bastante críticos, foram publicados em 1967 e 1970). Também é necessário contextualizar a ação da CIDH com a oposição conduzida pelos Estados Unidos e ditadores vizinhos contra o governo de Havana, que por muitas vezes se valeu de meios ilegais. Mas esse entendimento deve ser assuntado não apenas de forma instrumental e automática, mas também com a identificação anticomunista e liberal com a qual os Direitos Humanos eram apropriados nos primeiros anos da CIDH.

Considerações finais

Desde 1959, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o regime cubano seguem atuantes, modificados pelo tempo. Nesse artigo analisamos as origens de ambos e sua relação nessa fase inicial (até 1963) para compreender como importantes questões foram suscitadas, como a apropriação dos Direitos Humanos e os impasses sobre a soberania dos Estados Nacionais, o Estado de Direito Liberal e o Comunismo. Dessa forma, conferimos historicidade aos Direitos Humanos, analisando a Guerra Fria Interamericana em diálogo com a perspectiva transnacional e as dimensões específicas do processo revolucionário cubano. Fontes primárias de distintos arquivos estatais e institucionais do continente, além de órgãos da imprensa, foram mobilizados na análise. As três fases que demarcamos (o apoio inicial de Cuba para a formação da CIDH, o desgaste das relações e o rompimento), não denotam que o caso cubano deve ser lido sob o signo do fracasso. Para os propósitos assinados pela Comissão e a dinâmica política na qual ela esteve inserida, foram alcançados certos objetivos: expor as violações de Direitos Humanos do novo regime; dar legitimidade aos grupos anticastristas; e prover base jurídica e política para a exclusão do governo de Cuba da OEA, tornando-se um importante vértice de pressão contra Cuba no Sistema Interamericano. Já sob o prisma de Havana, a Comissão que prometia uma cruzada contra a tirania se tornou obsoleta, deformada pelo liberalismo e manipulada pelo imperialismo estadunidense. A obstrução do diálogo com esse órgão de projeção continental, reforçou as credenciais socialistas do regime e seu entendimento de Direitos Humanos.

Os Informes da CIDH sobre Cuba de 1962 e 1963 são importantes documentos históricos, possibilitando analisar a forma como os Direitos Humanos eram interpretados, as articulações da Guerra Fria Interamericana e o processo revolucionário em Cuba. Um testemunho que foi moldado pelos comissionados e que deve ser lido no contexto de relações e dos interesses que o embasaram. Como demonstramos, houve limitações e contradições na forma como a Comissão avaliou a ilha de Cuba: o anticomunismo e o alinhamento com a postura estadunidense; a forma como os Direitos Humanos eram apropriados; além da impossibilidade de realizar visitas ou ter um maior poder de atuação.

A “dimensão interamericana” não foi devidamente ponderada nos Informes. Não foram consideradas as incursões militares e pressões ilegais e “legais” (inclusive respaldadas pela OEA) dos Estados Unidos, dos países latino-americanos opositores e dos contrarrevolucionários. Há uma breve citação ao boqueio econômico dos Estados Unidos no Informe de 1983, quando se dissertou sobre as dificuldades do governo cubano em garantir alimentos e produtos, e apenas o Informe da CIDH sobre Cuba de 2020 condenou o bloqueio. No entanto, devemos considerar a natureza do documento, que almejava analisar a situação dos Direitos Humanos e não se enveredar em questões de conjuntura política internacional. A relação entre a CIDH e o governo cubano também passou por distintas fases. Na segunda metade da década de 1970, com a institucionalização do regime, culminando com a promulgação de uma Constituição em 1976, a melhora na relação com os países latino-americanos e com os Estados Unidos, e a diminuição da repressão dos “tempos de guerra”, a CIDH apontou uma relativa melhora na situação dos Direitos Humanos, conforme expresso nos documentos de 1976, 1979, até o último Informe sobre Cuba no século xx, em 1983.

O regime cubano incorreu em várias violações da Declaração Americana dos Deveres e Direitos do Homem (1948), algumas inclusive admitidas pelo regime posteriormente. Do ponto de vista da Democracia liberal, o regime cubano é uma Ditadura, pela organização centralizada, partido único, monopólio estatal dos meios de expressão, restrição das liberdades individuais, etc. Na ilha socialista, a liberdade e o direito dos indivíduos estão subordinada aos desígnios do Estado. Assim, incorre uma inversão da concepção liberal de Democracia e Direitos Humanos, que defende limitar a ação do Estado pelos direitos “inerentes” dos indivíduos, concepção ideológica majoritária na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Entretanto, devemos considerar que a Democracia não se restringe ao Liberalismo, e postulados socialistas também denotam sentidos de democratização, como a ênfase no acesso e na universalidade dos direitos, níveis diversos de participação popular e o combate à desigualdade. No caso cubano, essa também foi uma escolha de autodeterminação política, contextualizada (e não determinada) pela Guerra Fria e a história anti-imperialista. Para o governo cubano a questão estaria resolvida pela primazia dos direitos sociais e econômicos, enquanto a Comissão insistiu na prerrogativa civil e política. Ambos estavam imbuídos pelo ideal de impor a liberdade que acreditavam ser indubitável e redentora. Não se trata de subtrair as contradições e erros do processo revolucionário cubano, nem eliminar a concepção socialista por ser ontologicamente contrária à Democracia e aos Direitos Humanos, mas de ponderar esses elementos e construir uma análise histórica que considere as díspares narrativas, conjunturas e experiências sobre Direitos e Liberdades desenvolvidos desde 1959.

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Recebido: 03.02.2023
Versão reformulada: 31.10.2023
Aprovado: 04.12.2023

 

 

 


1 Esse artigo é parte da pesquisa de doutorado intitulada Uma História por Direito: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a História Política das Américas (1959-1980).

2 Durante um período como Research Fellow na American University (Washington/EUA), entre 2021 e 2022, consultamos a representação cubana nos Estados Unidos sobre a existência de documentos relativos à CIDH nos arquivos do Ministério de Relações Exteriores. Fomos informados que esses documentos não existiam. Cientes das dificuldades em consultar fontes primárias do governo cubano pós-Revolução e considerando a articulação transnacional do nosso objeto, consultamos outros arquivos nas Américas que nos dispuseram de informações sobre o processo analisado nesse artigo. O doutorado sanduiche na American University que auxiliou o desenvolvimento do presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –Brasil (CAPES)– Código de Financiamento 001. Nº Processo: 88887.578157/2020-00.

3 Numa abordagem histórica mais ampla, a formação da CIDH também foi possível pela apropriação do Direito Internacional e do Direitos Humanos no pensamento jurídico e as elaborações, no âmbito da OEA, de formas de promover um ordenamento político e jurídico pautado em ideias próximas aos Direitos Humanos nas Américas. Entretanto, pela proposta que elencamos, não iremos nos aprofundar nesse debate, e iremos nos centrar no contexto político caribenho, mais próximo à Revolução Cubana.

4 “Cuban urges U. S. oppose dictators”. The New York Times, 26 de fevereiro de 1959, p. 16.

5 “Cuba Makes Charge at U.N.”. The New York Times, 24 de outubro de 1959, p. 4.

6 “90. Background Paper Prepared by the Officer in Charge of U.S. OAS Delegation Matters (Redington)” (Washington, 7 de agosto de 1959). Foreign Relations of the United States (FRUS), 1958-1960, AMERICAN REPUBLICS, VOL. V. Disponível em: https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1958-60v05/d90 (Acesso em 25.01.2024).

7 “Delegación de Cuba” (20 de abril de 1960). Arquivo Histórico do Ministério de Relações Exteriores do Brasil, Brasília (AH-MREB), Caixa OEA Ofícios março e abril 1960.

8 Diario Las Americas. 1 de agosto de 1959. Archivo Histórico de Cancillería Argentina, Buenos Aires (AHCA), Caja AH/005. Em 10 de julho, o Conselho da OEA também rejeitou a proposta cubana, apresentada por Levi Marrero, de incluir como tema na próxima reunião de ministros o subdesenvolvimento econômico. Circularam rumores de que Cuba poderia boicotar a reunião de ministros em Santiago por causa da derrota, o que não ocorreu.

9 Embajada de la República Argentina ante la OEA, “Reservada n. 75” (27 de janeiro de 1960). AHCA, Caja AH/001.

10 Delegação do Brasil junto à OEA, “N. 251. Resultado de la votación del proyecto de estatuto de la CIDH” (26 de maio de 1960). AH-MREB, Caixa OEA Ofícios Maio 1960.

11 “Dados biográficos” (16 de fevereiro de 1960) e “Ternas para la elección de los miembros de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos” (Cuba, 15 de janeiro de 1960). AHCA, Caja AH/001.

12 Embajada de la República Argentina ante la OEA, “Reservada. N. 300. Nueva posición de Cuba” (15 de abril de 1959). AHCA, Caja AH/001.

13 De Washington (OEA). Para el Gabinete del ministro y Dirección política, “N. 276” (5 de dezembro de 1959). Archivo General Histórico-Ministerio de Relaciones Exteriores de Chile, Santiago (AGH-MREC). Carpeta 209, 1959.

14 Delegación de Guatemala ante la OEA, “Classificación n. 013-023” (11 de abril de 1961). AH-MREB, Caixa OEA Ofícios. Março-Abril 1961. s. p.

15 Delegação do Brasil junto à OEA, “Reunião da Comissão Interamericana de Paz. n. 12206” (14 de outubro de 1961) AH-MREB, Caixa OEA Telegramas 1961. s.p.

16 “552. Circular Telegram from the Department of State to Certain Diplomatic Missions in the American Republics” (Washington, July 11, 1960). FRUS, 1958-1960, CUBA, Vol. Vi. (Tradução nossa). Disponível em: https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1958-60v06/d552 (Acesso em 25.01.2024).

17 “338. Priority Operations Schedule for Operation Mongoose (Washington, May 17, 1962). FRUS, 1961-1963, Volume X, CUBA, JANUARY 1961-September 1962. Disponível em: https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1961-63v10/d338 (Acesso em 25.01.2024).

18 “Memorandum sobre Agresiones del gobierno de los Estados Unidos al pueblo y gobierno cubanos y su responsabilidad máxima en las tensiones hemisféricas y en el área del Caribe en particular” (1 de agosto de 1960), p. 23. AGH-MREC, Carpeta 235, 1960.

19 “Nota del embajador representante del Perú en la cual presenta los antecedentes y consideraciones que fundamentan la solicitud de convocatoria de la reunión del órgano de consulta de acuerdo con el Tratado Interamericano de Asistencia Recíproca” (16 de outubro de 1961), p. 1. AGH-MREC, Carpeta 257, 1961.

20 “Informe de la Comisión Interamericana de Paz a la octava reunión de ministros de relaciones exteriores” (12 de janeiro de 1962), pp. 22-50. AGH-MREC, Carpeta 287, 1962.

21 Em contraste a postura cubana e haitiana, o governo da República Dominicana deu anuência para a primeira visita da CIDH à América Latina, em 1961, e para outras missões da Comissão até o contexto da guerra civil e a intervenção estadunidense na ilha, respaldada pela OEA, entre 1965 e 1966.

22 Carta redigida por Manuel Bianchi e Luís Reque ao ministro Raul Roa, após CIDH, “Relatório sobre os trabalhos realizados durante seu segundo período de sessões” (Washington: União Pan-Americana, 1961), p. 12. Columbus Memorial Library, Washington (CML), Collection Inter-American Commission on Human Rights.

23 Os outros dois membros eram: Reynaldo Galindo Pohl, de El Salvador, diplomata e advogado, foi ministro da educação e presidiu a Assembleia Constituinte de 1950; e o equatoriano Gonzalo Escudero, que era poeta, diplomata e jurista.

24 Carta redigida por Manuel Bianchi e Luís Reque ao ministro Raul Roa, após CIDH, “Relatório sobre os trabalhos realizados durante seu quarto período de sessões” (Washington: União Pan-Americana, 1962), pp. 11-12. CML, Collection Inter-American Commission on Human Rights.

25 “Jose Miro Cardona, 71, Dies”. The New York Times, 11 de abril de 1974, p. 53. Tradução nossa.

26 “Protesting Cuban Group Spurns Food”. The Washington Post, 6 de outubro de 1961, p. A13.

27 “497. Memorandum from Richard G. Cushing of the Office of the Public Affairs Adviser, Bureau of Inter-American Affairs, to the Deputy Director of the United States Information Agency (Washburn)” (Washington, April 5, 1960). FRUS, 1958-1960, CUBA, VOL. VI. (Tradução nossa). Disponível em: https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1958-60v06/d497 (Acesso em 25.01.2024).

28 Delegação do Brasil junto à OEA, “Declaração do ex-embaixador norte-americano em Cuba e atual conselheiro do Presidente Kennedy sobre aquele país. n. 13318” (12 de dezembro de 1960). AH-MREB, Caixa OEA Cartas 1959-1962.