DOI: 10.18441/ibam.25.2025.88.205-226

 

 

 

 

O Enigma de Qaf, de Alberto Mussa: A Heterodoxa Reinvenção da Tradução na Ficção Brasileira Contemporânea

The Riddle of Qaf by Alberto Mussa: The Heterodox Reinvention of Translation in Contemporary Brazilian Fiction

Alva Martínez Teixeiro

Grupo de Investigación Lingüística e Literaria Galega-ILLA, Universidade da Coruña España

alva.teixeiro@udc.gal
ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-8156-7732

DO FICTIONAL TURN À RELEVÂNCIA DA TRANSCRIAÇÃO E À ESTÉTICA DO DIVERSO

Não é de estranhar que, num contexto como o latino-americano, tenha surgido uma obra tão original e singular como o romance O enigma de Qaf (2004), de Alberto Mussa, por várias razões. Em primeiro lugar, por ser uma renovada expressão do “fictional turn”, proposto, por Else Vieira (1995), como expressão do interesse para os estudos da tradução da centralidade de certos tópicos associados a essa atividade na escrita de grandes autores do cânone latino-americano. Entre esses autores antes pioneiros e hoje consagrados, podemos destacar os argentinos Jorge Luis Borges ou Julio Cortázar, pois a sua exuberante compreensão da ficção influencia a labiríntica arquitetura romanesca proposta por Mussa no seu romance, uma fabulosa estrutura que serve para abrigar, como veremos, um sujeito dominado por uma ambígua procura fáustica de conhecimento e de reconhecimento através da prática da tradução.

Em segundo lugar, por, talvez, poder ser entendida a proposta ficcional de Mussa também como uma manifestação indireta, atualizada e ficcionalizada da liberdade instaurada no campo da tradução no Brasil da segunda metade do século xx, graças à relevância da transcriação nas práticas culturais brasileiras posteriores às neovanguardas; isto é, graças à centralidade que a celebração da apropriação crítica e da criatividade teve na teorização e nas excêntricas práticas tradutórias concebidas por outros três autores-tradutores brasileiros de perfil fáustico: Décio Pignatari, Augusto de Campos e, principalmente, Haroldo de Campos.

Como é sabido, Haroldo de Campos, autor seminal da neovanguarda de meados do século xx, fundador do Concretismo – juntamente com o seu irmão, Augusto de Campos, e Décio Pignatari – e um dos escritores e intelectuais mais lúcidos e prolíficos do Brasil contemporâneo, dedicou quase quarenta anos a uma formidável tarefa de tradução criativa, que denominou transcriação. A singular transcriação haroldiana é um conceito difícil de definir, pois o autor utilizou o termo com diferentes sentidos ao longo de toda a sua carreira. Contudo, uma das definições mais relevantes do autor concebe a transcriação como um método hiperpoundiano, en el que “o produto obtido guarda, com o texto de partida, uma relação formal e semântica de reimaginação, para além tanto do rudimentarismo literal, quanto da banalidade explicativa” (Campos 2006, 17).

A escrita haroldiana e, nomeadamente, a sua atividade tradutória, escolheu como fonte de inspiração e apropriação escritas complexas, num exercício alto-modernista, mas também, insistimos, fáustico, como Jacques Derrida, num texto de 1999, destacou luminosamente a respeito da obra do autor das Galáxias:

il y faudra pourtant une autre vie. C’est-à-dire qu’il faudra des siècles pour mesurer ce que ce siècle doit à cette oeuvre unique: “unique source” d’avoir signé un corpus poétique et théorique original tout en fécondant pourtant, volant chaque fois d’une langue à l’autre, une sorte de traduction inflexible et adorant, génératrice et généreuse, c’est-à-dire qui se déborde pourtant elle-même, penchant simultanément, avant de se poser sur la piste d’écriture, sur le sol du poème, pour ne renoncer à rien (ne renoncer à rien, c’est la génie de l’inconscient et l’inconscient du génie, l’unique source libidinale de toute pensée poétique), à la fois du côté de la mondialité et pourtant du côté de la plus irréductible singularité de l’idiome (2015, 18).

Em terceiro lugar, porque a obra de Mussa se insere na interseção de duas linhas relevantes da ficção brasileira contemporânea – e não só: a emergência, nas últimas décadas, de obras literárias e cinematográficas protagonizadas por tradutores a nível mundial (Ben-Ari 2010, 221) e a consolidação de um corpus migrante, de uma literatura migrante dentro das literaturas americanas contemporâneas, em que, através daquilo que Simon Harel (2005) e Pierre Ouellet (2003) denominam “sensibilidade” ou “estesia migrante”, os escritores nos falam de migrações, exílios, errâncias, diversidade, coesão, pluralidade de patrimónios culturais e literários. Mas também de diversos modos, dos processos migratórios como origem de processos tradutórios complementares, antagónicos ou paradoxais, marcados por fenómenos de adaptação, aculturação, preservação da memória, importação, valorização e visibilidade da cultura de origem no novo meio cultural.

Essas considerações tornam-se ainda mais interessantes se levarmos em conta que esses fenómenos se materializam no romance de Mussa numa tentativa de tradução e recriação da memória familiar árabe e do Oriente literário, protagonizada por um tradutor situado nos confins do Ocidente, no Brasil, um outro espaço notavelmente marcado, do ponto de vista das relações culturais, pelos desejos de evasão e exotismo das culturas hegemónicas, que, como afirma Victor Segalen (2017, 19), escolhe sempre como objetos de desejo e fascínio os céus tórridos, desdenhando um improvável exotismo polar.

Enfim, como Segalen, o protagonista do romance, através do seu exercício de tradução, parece propor um convite a repensar a relação com o diverso e a alteridade como expressão ambivalente da realidade, a partir da sua condição ambígua, da condição intermediária desse tradutor situado entre dois polos, um periférico – América do Sul – e outro diferente de Ocidente – Próximo Oriente. Isto provoca uma condição incerta e original a respeito da relação de alteridade que convencionalmente é atribuída às literaturas ocidentais nos seus contactos com esse imaginário oriental. Ao diminuir ou mudar a distância histórica, antropológica e cultural relativamente ao “exótico”, no exercício do tradutor protagonista não é possível encontrar de modo puro o bazar do raro e do distante, porque ele não é um simples estrangeiro, é um descendente de imigrantes, distante da cultura e do património cultural dos seus ancestrais, mas não integralmente alheio, e que, portanto, no seu criativo exercício de tradução, como veremos, distanciando-se do exotismo superficial – mas compreendendo os seus mecanismos profundos e as suas convenções – vai propor, na esteira do defendido por Segalen, uma estética do diverso.

Assim, a obra de Mussa revela-se como um interessante objeto de estudo, em que podemos encontrar lúcidas – e lúdicas – reflexões sobre a linguagem, sobre as intrincadas relações entre a literatura e a oratura e entre os originais e as suas interpretações e/ou traduções – neste caso, materializadas numa inextricável (con)fusão entre tradução, releitura, reapropriação, retradução, transcriação e adaptação – e, igualmente, sobre a função da literatura traduzida no contexto migratório e no âmbito da Literatura-Mundo.

A TRADUÇÃO ENTENDIDA COMO UMA REABILITAÇÃO MÍTICA E LÚDICA DO PASSADO

O livro, que recebeu os relevantes prémios da “Associação Paulista dos Críticos de Arte” e da seção brasileira da “Casa de las Américas”, é protagonizado por um investigador e tradutor, descendente de imigrantes árabes no Brasil, que assume a responsabilidade de preservar e divulgar o património cultural dos seus ancestrais, através do estudo, tradução e, posteriormente, retradução e (re)escrita ficcional da oratura pré-islâmica. O motor do romance é a recusa, no âmbito académico, de um poema conservado oralmente na memória familiar em português e que ele teria, como parte essencial da sua formação como arabista, reconstruído e traduzido para o árabe. Essa rejeição provoca a escrita do texto que o leitor lê, uma retradução para o português da história contida no poema, convertida agora, juntamente com outras histórias complementares, num fascinante romance de aventuras.

Assim, a partir de uma certa escrita do eu, Mussa situa no centro da narrativa um arabista, tradutor e escritor, como ele, que, agora de modo dúbio, como veremos, dedica os seus esforços ao conhecimento, interpretação e divulgação em língua portuguesa do património poético pré-islâmico.

Destarte, a obra inspira-se na recuperação da memória cultural e na apropriação poética realizadas por Mussa para traduzir e publicar no Brasil os Poemas suspensos [Al-Mullaqat] (2006), textos clássicos e fundadores, criados no século vi pelos maiores poetas beduínos e denominados dessa forma porque mereceram ser pendurados na Pedra Negra da Meca. Numa duplicação especular, a partir dessa experiência como tradutor, Mussa constrói um artefacto literário profundamente original, baseado numa articulação conflituosa entre ficção e realidade, em que essa realidade e os diversos níveis da diegese são, de certo modo, (con)fundidos. A experiência da tradução do escritor carioca e o seu profundo conhecimento da poesia pré-islâmica nutrem o relato ficcional de diversos modos. O protagonista, o Senhor Mussa, alter ego literário do próprio autor, realiza uma recuperação mítica e lúdica do passado, através da reconstrução prosificada e traduzida de um dos poemas suspensos, supostamente perdido e preservado na memória do seu avô, acompanhado de outros elementos da tradição pré-islâmica, que tornam mais rico e complexo o livro.

A atípica bagagem desse avô ilustrado, cujos souvenirs da pátria são livros, narrativas e poemas, fará com que o seu neto, narrador e protagonista do romance, decida agir como depositário do património familiar, neste caso, literário. Neste sentido, importa salientar que o protagonista não é apenas descendente de imigrantes árabes, porque, de acordo com as suas palavras, a sua família é originária, por sua vez, “da tribo de Labwa, estabelecidos desde o quinto século nos desertos que circundam as colinas de Hebron” (Mussa 2006a, 18). Essa remota linhagem alargará ficcionalmente o entendimento da tradução como compromisso com o património cultural e familiar, pois o autor do suposto poema suspenso que ele reconstruiu e traduziu, al-Gatash, pertenceu também à tribo de Labwa.

Assim, o erudito protagonista do romance devotará as páginas da obra que está a escrever a realizar uma inesperada reabilitação mítica do passado beduíno por essa improvável ligação com a imigração árabe no Brasil, através da tradução e reconstrução em prosa do poema Qafiya al-Qaf, o poema aparentemente perdido de entre os textos líricos suspensos, considerado pelos especialistas “a maior das falsificações académicas forjadas nas letras semíticas” (Mussa 2006a, 11).

Esse problemático compromisso com a memória e o património cultural desdobra-se em dois planos narrativos, que frequentemente se confundem e entrecruzam. Em primeiro lugar, o plano da investigação, da tradução e da escrita da obra, em que, numa mise en abyme, acompanhamos o exercício recriativo do tradutor-escritor. Nesse primeiro plano, na abertura do romance, na denominada “Advertência”, o autor textual propõe ao leitor uma estrutura que evidencia, a partir de uma aparente simplicidade, uma preferência pelas formas elaboradas e complicadas e pela deformação dos modelos canônicos, de gosto borgesiano e cortazariano. Mussa subverte a estrutura convencional do romance através de uma obra-labirinto, uma obra de estrutura aberta que dá liberdade ao leitor, mas também apresenta um conjunto de obstáculos que dificultam a leitura, a começar pela proliferação do mítico, do simbólico e do enigmático.

Nesse segundo plano, o plano do literário e do mítico, situa-se no centro da obra a Idade da Ignorância, que finalizou com o advento do islamismo e foi um período áureo, poética e socialmente: nesse plano, os beduínos e a sua cultura transladam-se ao presente sob a forma de um inesperado florescimento, o da complexa tradução e reconstrução ficcional de uma Idade de Ouro que, até então, tinha sido ignorada pela enciclopédia moderna da evasão ocidental.

Tal como o autor textual nos explica, nessa reconstrução, a principal história do livro é organizada “em vinte e oito capítulos, nomeados conforme as vinte e oito letras do alfabeto árabe” (2006a, 7). Além disso, na sua mediação entre a configuração do texto e a reconfiguração do leitor, afirma: “[o]s que pretendem apenas se entreter com um breve romance de aventuras (e este é o meu conselho) devem-se ater à história principal de maneira linear e directa” (2006a, 7).

Perante a recusa da autenticidade da sua reconstrução do poema Qafiya al-Qaf por parte dos especialistas na matéria e a consequente impossibilidade de publicar a sua tradução do texto em árabe, o protagonista resolve divulgar por outros meios o seu trabalho, exacerbando, num novo processo de tradução, a natureza criativa e crítica desse processo. A tradução abre-se, então, como possibilidade inventiva e como exercício de memória de modo mais explícito, pois o autor textual entrelaça na escrita ficcional informações relativas a essa reconstituição, intercalando na narração referências à tradução e a outros processos hermenêuticos, às dificuldades associadas com esse exercício literário e académico,1 assim como certas lembranças da receção primeira do poema, isto é, da descoberta do esplendor da oratura através das palavras do avô. A visibilidade do tradutor torna-se, assim, um elemento central da obra, pelo seu estatuto de coprotagonista e narrador e pela sua intrincada tentativa de religação com a cultura dos seus ancestrais remotos:

A narração da história principal é assumida tanto pelo personagem do escritor especialista em literatura pré-islâmica, como pelo poeta Al-Gatash, protagonista da história, explorando “os efeitos de colisão de temporalidades (tempo presente/tempo passado/tempo de ficção”), recurso característico, segundo Jean-Marc Moura, das narrativas contemporâneas que se constroem em torno de uma viagem retrospectiva, relatando um encontro com a alteridade (Olivieri-Godet 2007, 239).

Essa cultura é distante, mas, ao mesmo tempo, por causa da ligação afetiva estabelecida através da memória do avô, é sentida pelo protagonista como próxima. Desse modo, paradoxalmente, simboliza para ele a alteridade e, simultaneamente, uma possibilidade de reconstrução da sua identidade híbrida, daí a sua forte presença no livro. O tradutor representa-se como uma personagem subversiva, com a sua própria “voz” e com uma clara consciência de si próprio no texto, concebido como mecanismo de resgate do poema, mas, insistimos, também como tentativa de reconstrução da própria identidade da personagem como árabe.

Assim, devido à referida rejeição académica da sua tradução do poema Qafiya al-Qaf, uma, como nos diz o protagonista, “reconstituição do original – tão inverídico quanto possa ser um quadro, uma escultura, um monumento recuperado pelas mãos de um restaurador” (2006a, 10), a personagem de Mussa decide realizar “intervenções” mais evidentes no texto.

Tal é possível graças à sua conceção dos limites do restauro filológico e da tradução como equivalentes ao restauro, entendido como uma obra aberta, tal como foi sugerido por diversos autores:

Nos últimos anos, assistimos um pouco por toda a parte à proliferação de intervenções sobre o patrimônio monumental tendentes não a considerar o monumento como uma unidade ou complexo artístico historicamente definido, mas como ‘obra aberta’ passível de ser retomada, continuada, enfim atualizada figurativamente. Não nos referimos aqui, evidentemente, à ‘obra aberta’ no sentido que lhe dá Eco […], uma vez que os monumentos, enquanto produtos culturais por excelência são sempre atualizados em seus significados, permanentemente alterados pelo olhar de quem os vê e pelas culturas que os interpretam. Visto que a capacidade de serem sempre atuais é sua marca definitiva, poder-se-ia dizer mesmo que esses particulares produtos da atividade humana serão sempre novos, independentemente de qualquer ação projetual, quer voluntariamente modernizante ou restaurativa, que sobre eles possa vir a incidir (Silva 1997, 45).

De acordo com essa tese defendida pelo protagonista através da analogia estabelecida nas primeiras páginas do livro, o trabalho de reconstrução e tradução do texto deve ser entendido como uma recriação, num primeiro momento, “restaurativa” – consistente na fixação, reconstituição e tradução dos versos do poema conservado memorialmente e, portanto, já submetido a diversos processos de transmissão recriadora, própria da poesia tradicional, e já traduzido previamente do árabe para o português pelo avô do protagonista. Num segundo momento, esse trabalho poderia ser considerado uma recriação “modernizante” – baseada, como explicado anteriormente, numa nova tradução para português e numa ficcionalização do poema e dos conhecimentos adquiridos pelo protagonista na sua incompleta formação como arabista e como tradutor da poesia pré-islâmica.

Assim, como já foi assinalado, o tradutor assume o rol de autor, transitando da problemática reprodução inicial do poema para a produção ou (co)produção. O tradutor criado por Alberto Mussa exemplifica bem o fenómeno identificado por Hayes em certas obras ficcionais, em que, os personagens tradutores transcendem as suas funções, afirmando de modo aberto a sua “writerly presence” (Hayes 2009, 144) e posicionando-se como autores. Apesar de a precedência temporal dos autores no processo ter contribuído à perceção da sua preeminência, a intervenção tardia – ou, nas palavras de Thiem, “belated” –, do tradutor significa que é ele quem tem a última palavra, a autoridade, na realidade cultural do público-alvo da tradução (Thiem 1992, 213).

Neste sentido, a frustração derivada do facto de nunca ter alcançado a “graça de editar o poema” (2006a, 11) e de depender, para obter o seu diploma “em literatura pré-islâmica” (2006a, 52), de um professor que considera a sua defesa da autenticidade da Qafiya al-Qaf “uma fraude” (2006a, 53), parece ser aliviada pela estratégia de tradução recriadora, que, significativamente escolhe o romance de aventuras, um tipo de ficção com um estatuto ambíguo, devido à sua popularidade no Ocidente e à sua forma frequentemente popular, muito distantes do estatuto clássico e canônico dos poemas suspensos. Como sabemos, os poemas pré-islâmicos são, para o povo árabe, “[e]l más antiguo monumento de su historia literaria y nacional” (Gabrieli 1971, 23). A questão será então saber por que razão o protagonista resolve optar por um género que, para certos críticos ocidentais, é expressão do fenómeno contrário, isto é, do declínio cultural, por ser uma ficção vista como escapista e simplista. A primeira razão parece ser óbvia: por causa da popularidade do romance de aventuras, derivada do facto de ser associado ao entretenimento e ao apelo da evasão ocidental, a sua escolha parece evidenciar uma estratégia radical de divulgação do seu trabalho de tradução, que aparentemente renuncia ao reconhecimento dos pares, da intelligentsia, e procura a aceitação popular. É por isto que apela, de modo primeiro, ao fascínio provocado ainda, mesmo que de modo residual, pelo exotismo literário ocidental, de que, ironicamente, também tinha sido objeto o espaço cultural em que se insere o público-alvo da tradução, um Brasil frequentemente representado na literatura europeia, através das variações e mutações dos mitos do Éden, do Dorado ou do Inferno.

A CASSIDA E A REDESCOBERTA DA ARABIDADE

Apesar da identificação do romance de aventuras com a cultura de entretenimento e com o caráter aventureiro e romântico – mas também etnocêntrico – do Orientalismo europeu, a dimensão exótica não funciona, insistimos, a nível decorativo na tradução, mas se apresenta como um elemento de importância fulcral para a transmissão da sensibilidade que marca a poesia pré-islâmica – e, em consequência, poderíamos entender essa opção como uma excêntrica estratégia de adaptação do texto-fonte no polo recetor, isto é, nos confins do Ocidente.

Neste sentido, podemos adivinhar que o protagonista, como arabista, reconhece nessa forma romanesca afinidades mais profundas com a Qafiya al-Qaf e, de um modo mais geral, com a poesia pré-islâmica e com o género em que se inserem os poemas suspensos, uma forma poética denominada cassida. De acordo com as informações fornecidas por Alberto Mussa na introdução à sua tradução para português dos Poemas suspensos:

A cassida é, basicamente, uma afirmação da nobreza de caráter do poeta, um arrolamento de atitudes e qualidades que a comprovam, segundo um código de honra pelo qual se mede o valor da pessoa.

O elemento fundamental dessa espécie de código é a murua, termo que se costuma imprecisamente traduzir por “virilidade”, e que tem conexões etimológicas com os verbos “ser saudável; ser bom, útil para”, “ter traços femininos”, “ter qualidades viris”. Dessa mesma raiz derivam igualmente os substantivos “homem” e “mulher”.

O conceito, portanto, tange a idéia de plenitude e perfeição do gênero humano; e compreende, em síntese, a capacidade de suportar as hostilidades do deserto, de enfrentar e derrotar os inimigos, de ser capaz de garantir a sobrevivência coletiva. Na poesia, a murua é normalmente afirmada por atos de bravura e ousadia, pela vitória nas guerras, pela lealdade incondicional à tribo, pela obstinação em vingar o sangue dos parentes […]

O beduíno árabe se considera superior às demais espécies de homem, porque é só no seu mundo inóspito e hostil que se pode alcançar a plenitude da murua (Mussa 2006b, 15).

Portanto, como o mito, a epopeia ou o romance medieval, a cassida partilha com o romance de aventuras o protagonismo dado à ação épica de um herói errante, ator de um conjunto de aventuras e peripécias, cujo périplo lhe proporciona (auto)conhecimento e o dota de caraterísticas extraordinárias. Assim, a opção pelo romance de aventuras permite adaptar facilmente, nessa história principal, o relato contido no poema Qafiya al-Qaf, que apresenta as vivências e peripécias do poeta al-Gatash e da jornada que levou o herói a cruzar o deserto à procura de uma mulher desconhecida, impelindo-o a decifrar o enigma da letra Qaf.

Além disso, essa inteligente escolha adequa-se também à discursividade dos capítulos que acompanham a história central, protagonizada por al-Gatash. Complementarmente, nesse singular contrato ficcional proposto na “Advertência”, somos informados da existência de “capítulos intermediários” de dupla natureza. Os “parâmetros são lendas de heróis árabes, comparáveis ao protagonista e poetas como ele, cujos talentos poderão medir”, isto é, capítulos protagonizados por outros poetas-heróis e as suas aventuras, cuja leitura permitirá ao leitor obter “um conhecimento melhor da cultura pré-islâmica, assim como do universo mítico que envolve a narrativa” (2006a, 7).

Por último, além da constelação de histórias apresentada nos parâmetros, os excursos são destinados apenas aos leitores “que tiverem a ousadia de tentar decifrar o enigma de Qaf” (2006a, 7), um enigma ligado a um génio caolho que pode revisitar o passado e viajar no tempo e a uma fabulosa montanha circular, “uma enorme montanha mítica, que circundava, delimitava e mantinha a Terra em equilíbrio” (Mussa 2006a, 93). Isto é, de acordo com o autor textual, os excursos foram concebidos para os leitores mais curiosos e interessados no mítico e a sua relação com o fantástico, pois eles integram, além de possíveis chaves para decifrar o enigma, uma releitura da importância e do pioneirismo da cultura árabe, baseada na dissolução das normas lógicas no mundo criado.

Desse modo, o leitor é seduzido, igualmente, pela reinvenção da cultura pré-islâmica e dos primórdios da cultura árabe, presentes nos excursos que complementam o enredo da obra, onde se nos oferece, por exemplo, numa fecunda e fantástica redescoberta da arabidade e através de uma tese fabulosa, situada no âmbito do lendário, a contestação da ideia comum de que os árabes são originários do deserto.

Em consequência, Mussa esmerou-se a desfazer as fronteiras entre imaginação e realidade, mesmo fundamentando a sua escrita em dados históricos e literários falsificados, numa das mais refinadas e lúdicas desestabilizações narrativas do paradigma hegemónico de Ocidente na literatura brasileira:

o noso autor pode ser considerado, pola procurada hipertrofia do pracer da escritura e do gozo da lectura, un dos renovadores da escrita ficcional brasileira moderna […]. Pois ben, na súa terceira obra narrativa, O enigma de Qaf, 21ª letra do alfabeto árabe, Mussa continúa a poética agora referida, abordando o mundo mítico-literario preislámico e, máis en concreto, abalando entre a verdade histórico-literaria e a mentira literario-histórica (Martínez Pereiro 2007, 140).

Mussa desloca todo o bloco do pensamento lógico, ao abalar, por meio de paradoxos e outros artifícios, os alicerces principais da verossimilhança e, igualmente, da racionalidade, e é aí que, com efeito, a escrita atinge a maior força na desconstrução, possibilitando, no entanto, a reflexão e o contato do leitor a respeito de realidades alheias, flutuantes, onde coexiste o natural e o sobrenatural.

Assim, a tradução e ficcionalização do poema, das vivências de al-Gatash e de outros poetas contemporâneos dele e a mitificação da origem da cultura árabe não apenas situam a narrativa noutro tempo ficcional, mas também numa outra ordem, a do mítico, facto que, por sua vez, instaura uma grande liberdade no relato e na tradução, como o próprio autor textual destaca no post scriptum:

Os conhecedores da literatura árabe hão-de ter notado que minhas traduções da poesia pré-islâmica não são exactamente literais.

Procurei, é claro, ser mais fiel à imagem do que ao conteúdo.

Alguns também dirão que certas passagens da vida dos poetas não se acham em nenhuma das compilações conhecidas.

Espero que esses críticos compreendam bem a natureza dos mitos.

E não me acusem de ter sido falso: ser falso é da essência das coisas (Mussa 2006a, 217).

Segundo essa ordem mítica que rege a narração, fala-se das convenções e transgressões dos diferentes poetas deste período, das suas particularidades e excentricidades e do modo como são confrontados com situações que escapam ao nosso entendimento e cujas soluções se distanciam de uma visão de mundo propriamente realista, mas sempre mantendo uma certa ilusão de veracidade, capaz de provocar o questionamento das certezas da nossa visão ocidental, em favor da radical condição pioneira e da universalidade que lhe é atribuída à literatura e ao pensamento humanista e científico pré-islâmico, assim como ao corpus dos ‘poemas suspensos’. Para citar apenas três exemplos, podemos mencionar, em primeiro lugar, as informações apresentadas pelo tradutor na quarta nota de rodapé inserida no texto de um dos parâmetros. Nele, o protagonista narra a história de outro grande poeta e herói, Ântara, entrecruzando na narrativa alguns dos versos biográficos do autor, tal como acontece nos parâmetros dedicados a outros poetas. No final do parâmetro, é-nos apresentada a morte de Ântara, nos seguintes termos:

Ântara morreu de uma flechada na base da espinha. Estava montado em seu cavalo – Abjar –, pronto para descer o vale e atacar o clã rival. O atirador emboscado voltou correndo para dar a notícia da morte do herói. Mas Abjar, com o corpo de Ântara ainda sobre o dorso, também correu, na mesma direção.

E eles viram Ântara e Abjar. E debandaram, não sem antes executar o arqueiro, por ter dado uma mensagem que lhes pareceu falsa (Mussa 2006a, 35-36).

Essa passagem evoca a conhecida lenda segundo a qual o Cid venceu, depois de morto, as hostes de Búcar, que pretendia recuperar o controlo da cidade de Valência. Esse tópico poético não consta da versão que hoje conhecemos do Poema do Cid, o poema épico castelhano mais antigo, mas sim era tratado numa versão posterior e prosificada, hoje perdida, a Primeira Crónica Geral (Fuentes 1999, 309). Neste sentido, imediatamente a seguir, na nota de rodapé, encontramos o seguinte comentário da personagem do tradutor: “Essa cena chegou a Espanha e impressionou os rapsodos que narravam a história de El-Cid, o campeador” (Mussa 2006a, 36).

Em segundo lugar, podemos destacar a observação introduzida pelo narrador-tradutor, noutra nota de rodapé, a respeito do poeta árabe Imru al-Qays, cujo espírito “recebeu e guiou o profeta Mujammad em sua visita aos círculos do Inferno”, pois nela nos esclarece: “Já se disse que o plagiário florentino Dante Alighieri estudou profundamente a escatologia muçulmana antes de escrever a Comédia, e que deu a Imru al-Qays o nome latino de Virgílio” (Mussa 2006a, 21).

Por último, merece especial atenção a ideia de que “na verdade, foram as tribos do deserto que conceberam o cristianismo, dois séculos antes do próprio Cristo” (Mussa 2006a, 55). A seguir a essa afirmação, o narrador reformula a história de Isaac e Abraão, protagonizada por um fabricante de espelhos beduíno, a quem um oráculo lhe exigiu o sangue do primeiro filho, mas que apenas tinha filhas. Aflito, descobre a solução do problema ao observar-se num dos seus espelhos e perceber que fornece uma imagem invertida: “o lado direito do rosto aparecia à direita no espelho, e vice-versa. Para obtenção de um reflexo perfeito, era necessário um segundo espelho – ou seja, duas inversões da figura original” (Mussa 2006a, 56). Assim, uma vez que Alá lhe pedia o sacrifício do filho mais novo, para o satisfazer, ele optou por sacrificar a filha mais jovem.

A TRADUÇÃO ENTENDIDA COMO UM EXTRAVAGANTE EXERCÍCIO DE REIVINDICAÇÃO DE REPRESENTATIVIDADE

Em suma, como pode ver-se, este transbordar da memória poética beduína, fantasticamente inscrita na cultura ocidental, é impulsionada por uma exposição inspirada por um esplêndido cruzamento entre a imaginação de Jorge Luis Borges e a das Mil e uma noites, em que as afirmações apresentadas nas notas de rodapé podem ser entendidas como um irónico exercício de relativismo a respeito da autoria, a originalidade, a apropriação, a tradução e a recriação, que, de certo modo, pretenderiam questionar, através do exercício do tradutor, o etnocentrismo latente na conceção e delimitação da Literatura-Mundo. Desta perspetiva, poderíamos situar o Brasil, do ponto de vista da compreensão da cartografia estabelecida pela Literatura-Mundo, na posição denominada por Marko Juvan como ‘periferocentrismo’:

The […] blind spot is […] characteristic of peripheral zones that are dependent or on or controlled and influenced by powerful centers, but on the other hand self-referentially construct their own sense of cultural identity. I am tempted to call this kind of cognitive centrism by the oxymoronic term “peripherocentrism.”

This refers not only to the peripherys primordial cognitive centrism, which does not differ from that of metropolises or imperia, but also to the process in which peripheral discourses are becoming aware of their cultural position vis-à-vis the others and consequently attempt to come to terms with some geopolitically or culturally superior center in a special, ambivalent way (Juvan 2010, 54).

E, consequentemente, poderíamos entender o exercício desse tradutor brasileiro de origem árabe como uma expressão exacerbada, heterodoxa e subversiva desse modo ambivalente. Em vez de, por exemplo, tentar negligenciar ou ignorar propositadamente a cultura do centro, o tradutor opta por reduzi-la à condição de plágio, cópia ou sequela traduzida de uma das imagens mais profundas e recorrentes do Outro para o Ocidente, o Oriente. E, significativamente, isso é feito através, frequentemente, das notas de rodapé, um lugar privilegiado de visibilidade do tradutor, em que exibe o seu saber e exerce a sua – agora dúbia – função de mediador entre culturas e línguas. Assim, nas notas, o protagonista encontra um novo mecanismo subversivo para lutar contra a invisibilidade do tradutor (Venuti 1995) e da literatura pré-islâmica na Literatura-Mundo, invadindo o texto principal e impossibilitando a dinâmica de leitura convencional e a ilusão de transparência condensada, para citar só um exemplo, nas seguintes palavras de Hermans: “while reading translated fiction, readers are normally meant to forget that what they are reading is a translation. The translator withdraws wholly behind the narrating voice” (Hermans 2010, 197). A sua tradução assume a forma romanesca, mais ainda, a forma do romance de entretenimento, mas o protagonista, através das notas, obriga o leitor a interromper a leitura e a refletir, dando lugar a uma experiência de leitura totalmente diferente da do texto de partida, pois a sua tradução parece ser também um extravagante exercício de reivindicação de representatividade no cânone literário.

Por sua vez, a terceira história, ao focar de modo inesperado o tema do duplo, subverte metaforicamente a hierarquia que separa a conceção idealizada do original das suas distorcidas representações. Se aplicarmos essa conceção da dupla representação à compreensão da proposta do protagonista, afinal, a sua tradução, ou seja, a segunda inversão do poema Qafiya al-Qaf, não representaria uma distorção em segundo grau da plenitude e autenticidade do original, muito pelo contrário, seria um reflexo perfeito – isto é, não necessariamente idêntico, mas primoroso e sem defeitos – do original.2

Dito isto, a singular reflexão ficcional sobre as potencialidades da tradução entendida como exercício criativo torna-se mais complexa, quando temos em conta o problema de fundo da controversa tradução que o protagonista realiza e que o mundo académico recusa: a oralidade da tradição pré-islâmica, a difícil procura e fixação dos textos, que se serviu das fontes vivas da tradição oral, pois os poemas sobreviveram na memória coletiva dois ou três séculos, sendo transmitidos de geração para geração e, finalmente, transcritos pelos compiladores, supostamente, tal como eram recitados pelos beduínos. Assim, tal como indica Gabrieli,

En estas condiciones no ha de asombrar que la arabística moderna haya comenzado a considerar con creciente escepticismo el problema de la autenticidad de esta producción, que habría atravesado dos o tres siglos por mera tradición oral y luego habría sido fijada y recopilada por obra de personas con frecuencia nada escrupulosas en el manejo de sus materiales. Ya en la antigüedad, algunos de estos rapsodas del siglo viii gozaban notoria fama de falsificadores de las poesías que despachaban por productos de la antigüedad pagana. Y pueden haber contribuido a estas falsificaciones y contaminaciones la vanidad, la ambición de beneficios materiales cuando esta mercancía poética era ávidamente solicitada en cortes y escuelas, el orgullo genealógico de cada una de las tribus, deseosas de documentar con versos probatorios sus glorias y sus pretensiones ancestrales, la osadía de los gramáticos, que en esos versos buscaban apoyo para sus teorías […] El moderado escepticismo de los doctos en la segunda mitad del siglo xix, se agudizó en los primeros decenios de éste, y críticos occidentales (Margoliouth) y orientales (Taha Husain) han sostenido, con las razones mencionadas y otras menos valederas, el carácter espurio de la casi totalidad de lo que pasa por poesía anteislámica y sería en realidad falsificación de filólogos (mejor dicho, filólogos-poetas, en ocasiones nada despreciables) del segundo y tercer siglo de la hégira (Gabrieli 1971, 26-27).

Perante esta situação, compreendemos melhor o ambíguo retrato do protagonista criado por Mussa, que, talvez, seja um filólogo-tradutor que, por um improvável acaso, descobre um novo poema suspenso à espera de ser fixado, após ter sido transmitido de geração para geração até chegar ao presente, ao Brasil e ao português através da memória do seu avô. Ou, talvez, seja um filólogo-poeta, que, na esteira dos seus ancestrais, pretende fixar séculos depois um poema apócrifo, por vaidade – um sentimento constantemente evocado na narrativa como atributo dos poetas beduínos – ou por orgulho genealógico, que faria com que o protagonista, desejoso de documentar com versos provatórios a glória da sua linhagem, isto é, dos Labwa, tentasse integrar no cânone da poesia pré-islâmica uma recriação apócrifa.

Esta suposição é reforçada pelo retrato que o narrador protagonista faz de si próprio, como um pícaro, ou antes, como um verdadeiro malandro brasileiro, que “certa vez, quando entrava com fome e sem dinheiro num restaurante árabe da Rua Senhor dos Passos”, simulou interesse num “enorme libanês que comia quibe cru e contava histórias no estilo das Mil e uma noites” (Mussa 2006a, 93), para se aproximar do quibe, ou que anos atrás “roubava livros num sebo na rua do Carmo” (Mussa 2006a, 191).

Em conclusão, a multidão de manuscritos conservados, a diversidade de cancioneiros e a confusa cadeia de transmissão aproximam a pluralidade textual dos poemas suspensos da multiplicidade textual3 das Mil e uma noites, evocada em diversas relações intertextuais semeadas na narrativa.

Perante isto poderíamos ainda pensar de uma outra perspetiva no facto de o protagonista não ser beduíno, mas descendente de imigrantes árabes no Brasil, isto é, um sujeito híbrido também como tradutor, pois, apesar do fascínio provocado pelo imaginário oriental transmitido pelo avô, o seu instrumento para pensar o mundo, a língua portuguesa, é ocidental e, portanto, a sua posição, afinal, talvez esteja mais próxima da conjuntura de um Galland, ou seja de um tradutor e erudito moderno ocidental, do que de um rapsoda árabe do século viii:

Foi o desejo de recuperar os fragmentos perdidos e dar forma escrita à Qafiya que me impulsionou a aprender o árabe clássico, o hebraico, o conjunto de dialectos siríacos, até o extinto idioma epigráfico do Iémen. Também me detive sobre a arqueologia do Oriente Médio; me debrucei sobre a geografia dos desertos da Síria e da Arábia; estudei a etnologia beduína; e praticamente guardei de cor a poesia pré-islâmica (Mussa 2006a, 19).

O excerto destaca o árduo processo de aprendizagem, quase renascentista, realizado pelo protagonista antes de iniciar a sua tradução – uma dedicação plena que, muito provavelmente, contribuiu para agravar a sua frustração perante a impossibilidade de publicar a sua tradução em árabe. Enfim, apesar desse conhecimento enciclopédico, o seu olhar e a sua posição continuam a ser exógenas, como parece evidenciar o episódio em que o Professor Yáhia, o professor de quem depende para obter o seu diploma, censura no Líbano a sua eclética roupagem, ao dizer-lhe que “está ridículo com esse terno italiano e esse turbante de beduíno!” (Mussa 2006a, 53).

Apesar da vontade de “resmungar alguma coisa sobre raízes culturais” (Mussa 2006a, 53), a verdade é que a sua vestimenta se assemelha muito ao dandismo orientalista do, para citar apenas dois exemplos paradigmáticos, “arabizado” Lane, tradutor das Mil e uma noites, com o seu “turbante de muselina” (Borges 1996b, 398) ou de Gérard de Nerval (2014).

O escritor francês, que também misturou realidade e ficção de um modo inextricável no relato das suas várias estadias no Oriente, abominava os ocidentais que viajavam pelo Oriente sem penetrá-lo. Para ele, era um prazer especial mascarar a sua condição de estrangeiro, adotando os costumes, modos e modas locais, tal como descrito na seguinte passagem da sua Viagem ao Oriente:

J’avais grande envie d’ajouter à mon costume un détail de parure spécialement syrienne, et qui consiste à se draper le front et les tempes d’un mouchoir de soie rayé d’or, qu’on apelle caffiéh, et qu’on fait tenir sur la tête en l’entourant d’une corde de crin tordu; l’utilité de cet ajustement est de préserver les oreilles et le cou des courants d’air, si dangereux dans un pays de montagnes. On m’en vendit un fort brillant pour quarante piastres, et, l’ayant essayé chez un barbier, je me trouvé la mine d’un roi d’Orient (Nerval 2014, 24-25).

Em conclusão, essa pompa partilhada pelo protagonista com Nerval na sua, igualmente caricata, tentativa de se integrar na cultura árabe, parece sugerir a possibilidade de existirem algumas afinidades com as grandes figuras do Orientalismo, as mais notáveis, com Jean Antoine Galland.

Se, no caso do protagonista, o problema reside no facto de não haver “manuscritos conhecidos que pudessem fundamentar o meu trabalho” (Mussa 2006a, 10), essa situação não tinha sido um problema para Galland, cuja audácia talvez pretendesse emular e cuja sombra pretendesse evocar através das constantes referências intertextuais semeadas na sua narrativa.

Como sabemos e como lembra o protagonista da obra (Mussa 2006a, 150), o manuscrito original das Mil e uma noites não continha mil histórias, porque alguns dos relatos foram integrados por Galland ao conhecer ao sírio Hanna Diyab, um escritor e autor real dos contos – algumas histórias tão famosas quanto a de Aladim ou a de Ali-Babá – que Galland resolveu integrar na sua tradução para francês da obra As mil e uma noites, publicada entre 1707 e 1717.

Talvez o avô do protagonista seja, por assim dizer, o seu Hanna, e o tradutor pretenda, como um Galland contemporâneo, inserir um texto apócrifo num cânone marcado pela instabilidade e a pluralidade textual, desta vez, o dos poemas suspensos. Um cânone que, mutatis mutandis, apresentaria um processo de criação semelhante ao das Mil e uma noites, baseado, tal como defende a professora Ferial Ghazoul, como o da literatura oral, naquilo que denomina de “crystallization” de uma obra em permanente mudança e evolução (1996, 2), em que a variação e flexibilidade, derivadas dos diversos exercícios de fixação e tradução, são caraterísticas fundamentais.

A TRADUÇÃO ENTENDIDA COMO UMA VERSÃO MELHORADA NO SENTIDO BORGESIANO

Nesta linha de pensamento, a obra de Alberto Mussa, ao fazer com que o seu protagonista tradutor aja como um autor, parece dialogar ou apresentar notáveis afinidades com as célebres reflexões de Borges sobre “Los traductores de las 1001 noches”. Jaime Alazakri afirmou, com toda a razão, que escrever sobre Borges ou, simplesmente, mencionar o seu nome, se tornou um dos maiores hábitos intelectuais da contemporaneidade (1986, 11) e que o seu nome, como o de outros gigantes da literatura do século xx, como Joyce ou Kafka, passou a nomear um universo reconhecível. Um universo reconhecível na obra de Mussa que apresenta, se não uma ascendência explícita, pelo menos uma fortíssima afinidade com o cosmos criado pelo demiurgo Borges.

Como é sabido, o escritor argentino inicia o mencionado ensaio referindo a tradução de Galland e afirmando que “[p]alabra por palabra”, a versão do arabista francês “es la peor escrita de todas, la más embustera y más débil, pero fue la mejor leída”, pois “[q]uienes intimaron con ella, conocieron la felicidad y el asombro” (1996b, 398).

Esse vigarismo é destacado também no romance de Mussa, que não apenas sublinha, como Borges, a integração de novos contos “fundamentales, que el original no conoce” (1996b, 397) na tradução de Galland, mas, aproveita, numa volta de parafuso mais, e num gesto tipicamente borgesiano, para propor novas versões ‘verdadeiras’ de alguns desses relatos, como o de Simbad ou Aladim – integrando, aliás, significativamente nalgumas dessas versões apócrifas, personagens da tribo de Labwa.

Como sabemos, essa tradução pioneira foi a ‘melhor lida’, porque o tradutor domesticou o texto, expurgando a obra da sua violência, dos abundantes factos de sangue, e igualmente, suavizou o erotismo oriental para não perturbar os leitores franceses, que, assim, encontraram nela um Oriente ‘orientalizado’ ao gosto europeu, que, como ironicamente destaca Borges, “encandiló a cuantos aspiraban rapé y complotaban una tragedia en cinco actos” (1996b, 398).

Isso não acontece, contudo, na mencionada estratégia de adaptação do texto-fonte no polo recetor, isto é, na estratégia de tradução recriadora, que, significativamente escolhe o romance de aventuras, pois o tradutor não ‘domestica’ a alteridade, suavizando, tal como fez Galland, a violência e o erotismo presente na poesia pré-islâmica. Neste caso, a transfiguração da poesia num romance de aventuras, através, como foi referido, de um exotismo que não funciona a nível decorativo, torna os poemas suspensos um ‘repertório de maravilhas’, retomando as conhecidas palavras de outro dos tradutores das Mil e uma noites, Enno Littmann, a respeito da tradução de Galland, mas sem censurar ou elidir as diferenças culturais.

Enfim, essa escolha, que pode ser associada à procura de uma ‘melhor leitura’ no Ocidente, pode ser melhor entendida quando compreendemos a escura e hermética condição contemporânea dos poemas suspensos, destacada, entre outros, no citado estudo de Francesco Gabrieli, em que o especialista, apesar de salientar o seu estatuto de ‘brasão’ de espiritualidade da Antiguidade para o povo árabe, reconhece que “dicha poesía es casi ininteligible para el vulgo, y comprensible sólo en parte, a fuerza de comentarios y paráfrasis” (Gabrieli 1971, 23).

Essa conjuntura leva a perguntar-nos se, e em que medida, a opção pela tradução romanceada não será, afinal, mais eficiente do que a recriação e tradução primeira do poema Qafiya al-Qaf para a divulgação do texto na contemporaneidade.

Nesta linha de pensamento, os leitores familiarizados com o pensum de Borges poderão identificar na arquitetura textual da obra de Mussa afinidades com a sua compreensão da tradução como uma forma válida de escrita criativa, mas não só isso, também da sua recusa da ideia de que toda tradução é inferior ao original, pois, como sabemos, Borges afirma que a tradução, nalguns casos, pode melhorar o original ou que o original pode ser infiel à tradução, nomeadamente, nos casos em que o original apresenta detalhes e aspetos confusos – tal como acontecia na bem pensada tradução de Henley referida por Borges ao fazer tal afirmação aparentemente paradoxal.

Neste caso, a tradução romanceada melhoraria o original, não por o original ser escrito com desleixo – tal como acontecia no texto de William Beckford traduzido por Henley –, mas pela ininteligibilidade dos originais, os poemas suspensos, mesmo para o povo que continua a venerar esse corpus quase como se ele fosse um mistério, uma história de espiritualidade que a razão humana não pode compreender plenamente. Assim, a tradução romanceada revelaria a essência e valor do original ao povo do tradutor, o brasileiro, sendo, talvez, quem sabe, essa tradução um primeiro passo para que no futuro, numa nova tradução, essa verdade fosse revelada também ao povo árabe.4 A ficcionalização da tradução da Qafiya al-Qaf e, de modo complementar e parcial, de outros poemas da tradição pré-islâmica permitiria ao tradutor, introduzir de modo ameno e narrativo, as informações apresentadas nos comentários e paráfrases necessários para a compreensão do texto, mesmo entre os leitores árabes.

A tradução do protagonista poderia ser entendida, assim, como uma versão no sentido borgesiano, uma perspetiva sobre um facto mutável e um precioso documento das vicissitudes sofridas pelo texto, tal como delimitado em “Las versiones homéricas” (Borges 1996a, 239). A tradução seria, portanto, um “borrador”, porque todos os textos são provisórios:

Presuponer que toda recombinación de elementos es obligatoriamente inferior a su original, es presuponer que el borrador 9 es obligatoriamente inferior al borrador H – ya que no puede haber sino borradores. El contexto de texto definitivo no corresponde sino a la religión5 o al cansancio (Borges 1996a, 239).

Desta perspetiva, então, a estratégia de tradução escolhida pelo protagonista de Mussa pode ser entendida como um prolongamento e aprofundamento da atitude de familiaridade irreverente de Borges a respeito do literário e da tradução.6

Enfim, tal como destaca Rosemary Arrojo, na sua interessante reflexão sobre os ecos nietzscheanos na conceção não essencialista de Borges da linguagem e a tradução,

Borges’s views on the relationship between Homer’s poetry and its different translations seem to echo Nietzsche’s genealogically based approach to history outlined in “‘Guilt’, ‘Bad Conscience’ and Related Matters,” the second essay in On the Genealogy of Morality (Nietzsche 2007, trans. Diethe), originally published in 1887. Such an approach obviously denies the possibility of fully recovering the past and acknowledges the inevitability of change and its consequences. Even though Nietzsche’s focus in the essay is to critique possible connections generally taken for granted between “the origin and purpose of punishment” and “the history of the emergence of law,” his reasoning is quite relevant for any reflection on the mechanisms of interpretation.

[…]

According to Nietzsche, interpretation is practically a synonym for the will to power as the trigger behind any attempt to establish and control meaning, constituting a mechanism that echoes what occurs “in the organic world,” where everything consists of “overpowering, dominating” […] (Arrojo 2018, 69).

Esse lúcido raciocínio, acreditamos, poderia ser facilmente aplicado também à escrita de Mussa, numa afinidade que se prolonga a partir da ideia nietzscheana da vontade de poder. Como assinala ainda a especialista, no seu exame de diversas traduções e tradutores das Mil e uma noites, Borges “emphasizes the authorial will to power that inspired their work” (Arrojo 2018, 70). Tal como esses ambiciosos tradutores, o protagonista do romance de Mussa tem uma “discernible agenda” que privilegia os seus interesses, já mencionados, mas que nos parece oportuno lembrar e retomar no contexto dessas confluências com o pensamento borgesiano: a personagem do tradutor criado por Mussa traduziria agora para defender a sua credibilidade e prestígio como arabista, traduziria, além disso, como Lane ou Burton, contra os precursores, para afirmar a sua diferença relativamente aos borgesianos ‘inimigos’ – cabe destacar aqui tanto o desvio relativamente às versões canônicas dos poemas pré-islâmicos, quanto a emenda dos contos introduzidos por Galland nas Mil e uma noites operados no romance –, e traduziria, igualmente, para interessar o público contemporâneo brasileiro na sua versão romanceada dos poemas da tradição oral pré-islâmica.

E, além dessas razões, numa atualização dessa vontade de poder, o protagonista de Mussa traduziria para encontrar as suas raízes, como sujeito híbrido e parcialmente desterritorializado, como protagonista de um feliz entrecruzamento entre a ficção sobre tradução e a ficção migrante. Tal como foi assinalado por Klaus Kaindl, “translation has become a kind of master metaphor epitomizing our present condition humaine in a globalized and centerless context, evoking the human search for a sense of self and belonging in a puzzling world full of change and difference” (2014, 2) e talvez seja por isso que, significativamente, algumas das – relativamente raras – personagens que na literatura migrante brasileira assumem com convicção e entusiasmo a tarefa de redescobrir e honrar a memória familiar sejam tradutores.

Essas ficções distanciam-se, portanto, de uma tradição instaurada pelo extraordinário romance Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar, que inaugurou na literatura migrante brasileira de modo trágico e brilhante o topos da Queda, numa linhagem protagonizada por personagens jovens que, situadas no período fundador da vida, se revoltam contra os princípios, a moral e a memória identitária acarinhada de modo agónico pelas suas famílias no Brasil. Essa saga de descendentes de imigrantes é continuada pelas personagens adolescentes de, para citar apenas dois exemplos paradigmáticos de diferentes períodos, Relato de um certo Oriente (1989), de Milton Hatoum, ou Diário da queda (2011), de Michel Laub. Todas essas personagens, ao confrontar pela primeira vez o mundo exterior, o Brasil, situado fora dos preceitos e tradições da casa familiar e, ao descobrir as suas tentações, caem nelas, de modo permanente ou temporário, ou, quando menos, rejeitam a herança cultural familiar.

Desviando-se, portanto, dessa tendência, na obra de Mussa ou, para citar outro exemplo significativo, no romance Rakushisha (2009), de Adriana Lisboa,7 o passado se projeta no presente através da tradução. Assim, se os livros de Raduan Nassar ou Milton Hatoum são “libros de un tiempo pretérito imperfecto, porque en ellos no hay verbos en el futuro, igualmente innovadores son la visión de un pasado conjugado en pretérito perfecto y el réservoir de arabidad que se nos ofrecen en O enigma de Qaf” (Martínez Teixeiro 2013, 78) de Mussa ou as contemplações poéticas e as reflexões existenciais de matriz zenista que nos são apresentadas em Rakushisha.

CONCLUSÕES

Na obra de Mussa encontramos, portanto, uma narrativa em que a anterioridade se confunde com a interioridade de modos muito complexos e em que os pontos de referência são, igualmente, misturados,8 num dos movimentos caraterísticos da literatura migrante. De acordo com a proposta de Pierre Nepveu (1988, 199-200), no imaginário das personagens da literatura migrante, as hierarquias e os estatutos do próximo e do distante, do próprio e do alheio, do similar e do distinto confundem-se. E, por isso, afinal, nós, leitores, não conseguimos discernir se o tradutor é um erudito totalmente devotado aos poderes da tradução como instrumento de revelação da alteridade e, consequentemente, de melhor compreensão da outridade que faz parte da sua própria identidade, se é um original erudito-malandro, um filólogo-falsificador de linhagem beduína, um ardiloso orientalista ou, ainda, se o seu retrato é formado por uma mistura inextricável de todos esses perfis. Mas o que sim conseguimos compreender é a importância fulcral que o exercício da tradução criativa assume para o protagonista, que, nas linhas finais do romance afirma mais uma vez a sua visibilidade, (con)fundindo-se com a sua tradução: “Tenho medo de conhecer uma versão diferente da Qafiya. Tenho medo de conhecer outra versão de mim” (Mussa 2006a, 215).

Em conclusão, a evasiva arquitetura ficcional concebida por Mussa desestabiliza, num sentido positivo, os lugares-comuns associados à tradução pelo público. Apesar de insinuar o descrédito do papel do tradutor como mediador, a obra coloca o público, mesmo que de modo irónico, perante o inegável e fascinante poder criativo e inventivo da tradução e a indispensabilidade do tradutor como figura intermediária, tanto na descoberta da diferença, quanto no encontro de culturas próprios das dinâmicas das migrações e do transnacionalismo dos séculos xx e xxi. Afinal, o ambíguo romance de Mussa é uma celebração anti-iluminista, tipicamente pós-moderna, ou, se preferirmos, mitificada, à maneira antiga, da infidelidade inerente à tradução.

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Recebido: 08.12.2023
Aprovado: 25.06.2024

 

 

 


1 Neste sentido, podemos lembrar a identificação dos problemas da tradução “como recurso literário” nas obras de Mussa, apresentada por Pere Comellas num artigo em que destaca as poucas menções diretas à tradução presentes na obra do escritor brasileiro. Entre essas raras referências, “o autor explicita incompreensões provocadas pela tradução, ou melhor pela idiossincrasia das línguas, que por vezes estabelecem categorias diferentes sobre a realidade” (Comellas 2017, 188). Entre outros exemplos, o tradutor e professor catalão cita o caso de Yarub, personagem de O enigma de Qaf: “Yarub pretende achar termos distintos que tenham exatamente o mesmo significado, mas logo a empresa revela-se impossível. Como Yarub, o tradutor ideal tradicional pretende encontrar uma correspondência de significado exata com uma expressão em outra língua, ou seja, diferente. Mas nunca se sente totalmente satisfeito: sempre há “algum matiz, algo que escapa à acepção original”. Mas justamente essa falha, essa insatisfação dá origem à poesia! A literatura nasce do deslocamento de significados, na impossibilidade de reproduzir, na possibilidade de criar sempre um novo significado” (Comellas 2017, 193).

2 Semelhantemente, na epígrafe do primeiro capítulo do livro, atribuída a Xerazade, a verdadeira, encontramos a seguinte questão, que, facilmente, poderia ser aplicada ao exercício do tradutor, instaurando o relativismo e desafiando as conceções essencialistas do texto original: Quando conto uma mentira não estarei restaurando uma verdade mais antiga?” (Mussa 2006a, 9). No contexto da obra, essa pergunta retórica inicial parece evocar as reflexões contemporâneas sobre a necessidade de reconhecer – e mesmo valorizar – a importância das interferências associadas ao rol do tradutor e de compreender o seu poder na (re)construção de significados, de identidades e de alteridades, reflexões que, de modo metaforizado, inspiram a escrita de Mussa.

3 No romance surge outra implícita evocação da delicada tarefa filológica de fixação dos textos orais e das divergências resultantes desse complexo processo na mencionada nota de rodapé sobre o poema do Cid: de modo indireto, o narrador-tradutor chama a nossa atenção para as divergências e conflitos, exemplificados aqui pela presença ou ausência, em diferentes versões, da célebre lenda da batalha vencida pelo Cid depois de morto.

4 Esperamos que os leitores compreendam e desculpem o – pouco ortodoxo – jogo entre ficção e realidade que inspira essa hipótese, que simula a confusão presente na própria arquitetura ficcional da obra e que parte de uma informação factual: o romance de Alberto Mussa, O enigma de Qaf, foi traduzido para árabe (Lughz al-qaf, Egypt’s National Center for Translation, 2015) pelo Professor Waïl Hassan, uma figura central nos Estudos Árabes e nos Estudos Pós-Coloniais, conhecido pelo seu trabalho como crítico e tradutor – Hassan é autor, entre outras obras, da relevante Orientalism and Cultural Translation in Arab-American and Arab-British Literature (Oxford University Press, 2011).

5 A título de exemplo da ironia que domina o romance de Mussa a respeito dos possíveis papeis do tradutor e da potencial tarefa de ‘revelação’ que ele parece assumir, podemos recordar um dos dois capítulos – os capítulos décimo oitavo e vigésimo primeiro –, em que o protagonista explica certas etapas, estratégias e contribuições do seu complexo processo de reconstituição, interpretação e tradução. No primeiro desses capítulos, correspondente à letra ‘ayn, o tradutor explica que a sua “maior contribuição ao estudo da Qafiya al-Qaf foi seguramente ter conseguido reconstruir o raciocínio do rabino de Yathrib” (Mussa 2006a, 125). Esse rabino, de acordo com a história narrada no poema romanceado, teria decifrado “até a última palavra” de uma tabuleta e de um conjunto de pergaminhos que explicavam em árabe o enigma de Qaf, mas sem perceber o seu sentido (Mussa 2006a, 116). “[C]omo a maioria dos árabes da época, Abdurab não sabia nem ler nem escrever o próprio idioma. Como rabino, conhecia certamente o hebraico” (Mussa 2006a, 125) e, assim, o capítulo é dedicado à demonstração do processo de interpretação e tradução para hebreu do texto em árabe realizado pelo rabino. Nesse capítulo, em que todo o protagonismo é dado ao processo de tradução, para evidenciar a dificuldade e exigência do exercício realizado pelo protagonista, refletindo sobre as semelhanças existentes entre o hebraico e o árabe, ele menciona os nomes Mussa e Mosheh, indicando numa nota de rodapé que ambos podem ser traduzidos como Moisés em português.

6 Tal como foi destacado por Andréa Cesco: “O fato de que ele tenha escrito seus dois melhores ensaios acerca da tradução, sobre textos cujo idioma ignorava plenamente, é um exemplo da familiaridade irreverente com que Borges se movia pela literatura, mas explica também por que nesses dois casos [a Odisseia e As mil e uma noites] a fidelidade ao texto original não o preocupava em absoluto” (Cesco 2004, 88).

7 No romance de Lisboa encontramos duas personagens nikkei, um dos dois protagonistas, Haruki, e uma tradutora igualmente nipo-brasileira, Yukiko, com quem o protagonista manteve uma relação sentimental. Na construção das duas personagens encontramos uma clara oposição em termos identitários: se Haruki representa a recusa da herança cultural dos ancestrais, Yukiko encarna a sua sobrevivência. Yukiko é retratada por Haruki como uma “profunda conhecedora do Japão” e da sua língua e não só isso, como uma “tradutora de japonês”, que “tinha feito faculdade em Tóquio” (Lisboa 2009, 100), dedicada à tradução do clássico Diário de Saga, de Matsuo Bashō, traduzido para português pela própria Adriana Lisboa.

8 Outro exemplo paradigmático desse fenómeno, interessante para a reflexão proposta nestas páginas, pode ser encontrado no referido romance de Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente. Nele, encontramos in absentia, uma personagem, denominada Hanna, como o autor de alguns dos contos introduzidos por Galland na sua tradução das Mil e uma noites. Hanna foi o primeiro membro da família protagonista do romance a emigrar para o Amazonas. Como explica o seu sobrinho a um amigo alemão, as cartas que Hanna enviava do Brasil para o Líbano, provocavam o fascínio de todos os seus familiares e amigos. Isto porque, como podemos compreender a partir dos relatos desse sobrinho, numa procura de autoafirmação e legitimação da sua precária condição de migrante – ou, talvez, numa inventiva projeção do seu medo ao desconhecido, isto é, ao país de acolhimento –, na sua escrita epistolar, Hanna autorrepresentava-se como um aventureiro, misturando topoi de um Brasil historicamente exotizado pelo olhar europeu e do Orientalismo. É assim que, para só citar alguns exemplos, acompanhamos os “homens que degustavam a carne dos seus semelhantes como se saboreassem rabo de carneiro, palácios com jardins esplêndidos, dotados de paredes inclinadas e rasgadas por janelas ogivais que apontavam para o poente, onde repousa a lua de ramadã” ou “rios de superfície tão vasta que pareciam um espelho infinito” (Hatoum 1999, 94-95). Curiosamente, diga-se também que, noutro dos capítulos desse romance polifónico, Dorner, o amigo alemão a quem o sobrinho de Hanna relata as memórias familiares, diz ao seu filho: “O convívio com teu pai me instigou a ler As mil e uma noites, na tradução de Henning. A leitura cuidadosa e morosa desse livro tornou nossa amizade mais íntima; por muito tempo acreditei no que ele me contava, mas aos poucos constatei que havia uma certa alusão àquele livro, e que os episódios de sua vida eram transcrições adulteradas de algumas noites” (Hatoum 1999, 104).