DOI: 10.18441/ibam.25.2025.89.123-147
Evandro Fernandes
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-riograndense, Brasil
evandrofern@hotmail.com
ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-2990-740X
Os imigrantes alemães estabelecidos no Brasil a partir do século xix desenvolveram uma sociedade muito dinâmica e complexa no Rio Grande do Sul. Nela criaram diversas estratégias de luta pela integração e assimilação na sociedade brasileira e, em especial, sul rio-grandense. Se, num primeiro momento, a historiografia tradicional sempre enxergou os imigrantes como um “quisto étnico” dentro do país, manteve-se, durante muito tempo, a ideia equivocada de que sua localização geográfica promoveu seu isolamento político, social, econômico e cultural da sociedade luso-brasileira, criando uma resistência natural que os mantinha afastados da vida nacional.
Por gerações, os imigrantes alemães não teriam se interessado pelos assuntos nacionais, muitos por não dominarem a Língua Portuguesa, outros por se dedicarem exclusivamente ao comércio e às atividades industriais (Khote 2007, 391). A ideia de “quisto étnico”, amplamente difundida na historiografia imigrantista teria levado muitos historiadores, segundo Gertz, a tirarem conclusões apressadas sobre “[...] a falta de integração dos imigrantes, o perigo de dissociação da unidade brasileira, sobre uma racionalidade especificamente alemã determinando o comportamento das populações, sobre a sobrevivência de messianismos e hábitos exóticos e criminosos, como o racismo e anti-semitismo” (Gertz 1998, 10).
Contudo, as recentes pesquisas têm mostrado que, desde o início da colonização, os imigrantes alemães desenvolveram um sofisticado mecanismo de contato, assimilação e integração a sociedade brasileira. Eles adaptaram-se ao novo contexto no qual foram inseridos mobilizando-se para enfrentar as dificuldades impostas pelo não cumprimento das promessas feitas pelas autoridades brasileiras. Além disso, também adotaram uma série de práticas políticas, sociais, econômicas e culturais da sociedade luso-brasileira, entre elas, o uso do trabalho escravo que, durante muito tempo, foi negado por diversos historiadores imigrantistas.
A manutenção da escravidão no contexto imigrantista deve ser interpretada como uma ação política, social, econômica e cultural, como uma resposta à variedade e à complexidade das dificuldades apresentadas pelo contexto brasileiro. Ela indica que os imigrantes estavam preocupados na manutenção de seus interesses econômicos e de seus descendentes, além de possibilitar sua integração na sociedade brasileira. Neste sentido, a “teoria do isolamento”, que sugere a formação de um grupo organizado à revelia da sociedade brasileira e de sua estrutura jurídica, administrativa, econômica, cultural e social deve ser reconsiderada, pois não se sustenta mais (Tramontini 1999, 03).
Neste artigo propomos estudar a disseminação da escravidão na Colônia de São Leopoldo durante o Brasil Império, a luta dos escravizados pela sua liberdade, e as implicações destes conflitos entre senhores e escravizados para a assimilação do imigrante alemão no contexto nacional. Queremos discutir os elementos que fomentaram a manutenção desta instituição jurídica em meio aos imigrantes europeus, e que já vinha sendo questionada na Europa do século xix. Propomos destacar aspectos que contribuam para a desmistificação da ideia equivocada de que o trabalho europeu no sul do Brasil prescindiu do trabalho escravo, de que foi pensado somente como substitutivo da mão-de-obra escrava, de que os imigrantes alemães abominavam a escravidão e estavam imbuídos de uma cultura que somente valorizava o trabalho livre. Queremos entender como se deu essa rápida adoção de práticas locais por parte dos imigrantes alemães e de como a escravidão se confrontava com suas ideias de liberdade trazidas da Europa. Outrossim, também buscamos compreender como os imigrantes alemães, que provinham de um ambiente de lutas pela liberdade e contra a servidão da terra, conseguiram se adaptar à instituição jurídica da escravidão.
Consequentemente, pretendemos identificar as consequências da manutenção do regime escravista para a identidade étnica alemã no sul do Brasil, desmistificando a ideia de que os imigrantes alemães também eram avessos à miscigenação racial, formando uma comunidade etnicamente homogênea, e que foram bons senhores para os escravizados, sem lhes infligir maus tratos, não havendo conotações senhoriais nas relações entre os imigrantes e os africanos. No artigo questionamos a ideia de que os imigrantes alemães tinham uma visão moralizadora e regeneradora do trabalho em oposição à mentalidade escravista e colonialista portuguesa.
O estudo da escravidão em meio aos imigrantes alemães não implica em negar o relativo isolamento geográfico dos núcleos coloniais e a criação de uma comunidade e identidade étnica específicas, mas em perceber que a comunidade de imigrantes e sua construção identitária são o resultado de lutas políticas empreendidas no intuito de fazer valer seus direitos. Elas ocorrem a partir do contato, do confronto entre os interesses de grupos sociais, econômicos, políticos e culturais distintos pois, segundo Neto, “[…] as sociedades humanas caracterizam-se por serem sistemas abertos e sem fronteiras, isto é, possuem dinâmicas próprias que estão em permanente inter-relação com outras” (Neto 1987, 323).
Importante destacar que concordamos com Gertz quando afirma não ser possível explicar os objetos históricos relativos à imigração alemã no Brasil somente a partir de uma contraposição entre os interesses da população de origem alemã e a população de outra origem étnica (Gertz 1998, 11). A variável étnica é apenas um dos elementos subjacentes aos estudos a respeito da imigração alemã no Brasil. As diferenças internas do grupo étnico alemão e sua relação com o grupo étnico luso-brasileiro e os afrodescendentes também necessitam ser estudadas, pois implicam num confronto de interesses individuais e de classe distintos, que articulam diferentes formas de comportamento frente aos desafios que se colocam aos grupos envolvidos.
Durante muito tempo a historiografia procurou invisibilizar a presença de escravizados africanos na dinâmica de organização dos núcleos coloniais imigrantistas, ou tentou esvaziar sua importância para o desenvolvimento político, social, econômico e cultural das regiões ocupadas pelos imigrantes. Sabemos que os imigrantes tinham limites econômicos para adquirir cativos; entretanto, quando puderam, não prescindiram de seu uso na produção econômica, apesar da proibição do uso de mão-de-obra escrava em áreas destinadas à colonização determinada pela Lei Imperial n.º 514 de 28/10/1848. A referida lei estabelecia:
Art.16. A cada uma das Províncias do Império ficam concedidas no mesmo ou em diferentes lugares de seu território, seis léguas em quadra de terras devolutas, às quais serão exclusivamente destinadas à colonização e não poderão ser roteadas por braços escravos. Estas terras não poderão ser transferidas pelos colonos enquanto não estiverem efetivamente roteadas e aproveitadas, e reverterão ao domínio Provincial se dentro de cinco anos os colonos respectivos não tiverem cumprido esta condição (Iotti 2001, 108).
Para fazer face a este desafio de identificar a relação imigrante e escravizado, sua implicância na configuração política, social, econômica e cultural da Colônia de São Leopoldo no Brasil Império, faremos uso de bibliografia, fontes documentais encontradas em cartórios, livros de juízes de paz e registros eclesiásticos. Estes documentos nos fornecem subsídios para desvendarmos as imbricações da relação dos imigrantes alemães com a escravidão brasileira e em, especial, com os afrodescendentes.
Quando os imigrantes alemães chegaram ao Brasil e, em especial, na Colônia de São Leopoldo em 1824, se defrontaram com uma sociedade heterogênea integrada por brancos, africanos, ameríndios e com um contexto marcado por um alto grau de mestiçagem. De acordo com o pensamento racista e civilizador vigente na época, os africanos, enquanto grupos humanos, logo sucumbiriam ou seriam assimilados pelo progresso civilizatório do qual os europeus eram representantes (Correa 2012, 237). Diante disso, e das várias considerações que podemos fazer em torno da mestiçagem, nos deteremos no comportamento dos imigrantes alemães em relação aos africanos. Estes apresentavam características culturais muito específicas, dependendo de sua origem na África e, em especial, a cor da pele que era um marcador diferencial de sua condição de escravizados e de um extrato social muito específico (Weimer 1982, 160).
Se o fenótipo era a característica marcante e distintiva entre alemães e africanos, ambos apresentavam características semelhantes quanto a sua inserção como força de trabalho no Brasil, pois foram trazidos, em sua grande maioria, para exercerem atividades agrícolas. Imigrantes e africanos procediam de contextos no qual a atividade predominante era a agricultura complementada com a criação de animais. Importante salientar que ao fazermos esta constatação não estamos negando a chegada de imigrantes alemães pertencentes ao mundo urbano europeu, mas buscando elementos de aproximação para entendermos as relações entre os imigrantes e os africanos no contexto nacional.
Os imigrantes alemães, antes de sua vinda para o Brasil, passaram praticamente incólumes à experiência da escravidão. Na Europa Central do século xix, as submissões de um povo a outro até então conhecidas remontavam à servidão medieval, que se distinguia das relações escravistas pelo seu caráter. Estas implicavam em relações de servidão, no qual os soberanos estabeleciam o pagamento de tributos aos súditos que nunca chegaram, em situações extremas, à escravidão moderna. Importante destacar que estas relações também variavam de um lugar para outro, sendo que muitos imigrantes abandonaram a Europa justamente por considerarem a liberdade como um valor imprescindível para sua vida cotidiana, principalmente após a penetração das ideias liberais da Revolução Francesa em territórios germânicos (Weimer 1982, 161).
Além da ênfase na ética do trabalho dos imigrantes, usada para justificar sua presença em solo brasileiro, a substituição paulatina da mão-de-obra escrava pelo trabalho livre já vinha sendo defendida por representantes do Governo Imperial Brasileiro desde o ano de 1825. Entre eles podemos citar José Bonifácio D’Andrada e Silva, Ministro dos Negócios do Brasil no Reinado de D. Pedro I. Este condenou a escravidão em sua Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura de 1825 (D’Andrada e Silva 1825). Nela considerava que a escravização não se adequava ao projeto modernizador e civilizatório da sociedade brasileira pós-independência. Segundo Pádua, suas ideias inauguraram, mesmo que de forma incipiente, o pensamento social brasileiro ao elogiar a miscigenação racial, e acreditar que a mistura racial poderia promover o surgimento de um tipo humano positivo para desenvolvimento econômico e social do Brasil (Pádua 2002, 148). Tais ideias, por serem consideradas muito inovadoras, causaram muito desagrado às elites sociais da época e lhe custaram o apoio de correligionários políticos, aristocratas escravistas ligados ao Partido Brasileiro do qual fazia parte. Mesmo tendo introduzido imigrantes em sua fazenda em Santos para demonstrar a viabilidade da substituição da mão-de-obra escrava, para a maioria dos grandes proprietários de terra o projeto era impossível e inaceitável.
Estas ideias inovadoras confrontaram, com o decorrer do tempo, o trabalho escravo ao trabalho livre e passaram a criar uma antítese entre o escravo africano e o imigrante. Teorias raciais há muito tempo em voga na Europa chegaram ao Brasil a partir da segunda metade do século xix, sendo introduzidas e disseminadas pelos intelectuais e políticos brasileiros. Estes buscavam justificar o surgimento de uma civilização nos trópicos aos moldes europeus (Schwarcz 2009). Neste sentido, podemos afirmar que a imigração também tinha, por parte das elites imperiais, um claro componente racista e de branqueamento da sociedade brasileira. Fica, portanto, configurado um conflito de competência entre o trabalhador imigrante europeu que contribuiria para “regenerar” a sociedade brasileira e o africano, que era visto como um elemento pernicioso para o desenvolvimento do Brasil.
Também devemos considerar que o medo das elites brasileiras em relação à possibilidade de levantes e insurreições de escravos e populares também influenciou fortemente a opção pela mão-de-obra dos imigrantes europeus em detrimento aos nacionais escravizados e mestiços (Oliveira 2012, 269). As revoltas escravas foram o “pesadelo do tempo” da escravidão para a sociedade branca minoritária, na qual a concentração de “gente de cor” nas cidades e no mundo rural era enorme. A Revolução do Haiti, iniciada em 1791 e encerrada em 1804, influenciada pelos ideais da Revolução Francesa, havia derrubado a sociedade escravista e a classe dirigente local, demonstrando que as ideias francesas não eram um fenômeno exclusivamente europeu, mas que teve um alcance universal (Morss 2011, 139). No Brasil, a Revolta dos Malês, na Bahia, entre tantos outros levantes, revoltas e insurreições negras na América, alimentou fortemente o medo dos brancos em relação ao perigo que os africanos e mestiços representaram (Reis 2004).
Fato é que, em 1824, quando da chegada dos primeiros imigrantes no Brasil, as discussões em torno da imigração estavam apenas em gestação. A maior preocupação das autoridades era tornar exitoso um aspecto particular do projeto imigrantista no Brasil Meridional, ou seja, constituir uma camada de homens livres e portadores de uma mentalidade supostamente superior e civilizatória. Este projeto somente teria êxito, dentro das perspectivas da Coroa, se realizado por pessoas brancas e fortemente marcadas pelo caráter “industrioso” (Oliveira 2012, 272).
No que diz respeito ao comportamento dos imigrantes em relação aos africanos, não podemos concluir daí que todos os imigrantes alemães que aportaram no país a partir de 1824 eram adeptos das teorias raciais europeias do século xviii, ou do racismo científico em voga no Brasil a partir das últimas décadas do século xix e, por isso, eram racistas e se tornaram escravocratas. Mas é necessário considerar que a ideologia predominantemente racista da sociedade brasileira não lhes era desconhecida, fazendo com que pudessem ser influenciados por elas e, desta forma, também serem um elemento a ser considerado em sua adesão à escravidão africana. Temos de considerar que os imigrantes alemães mais pobres, tão logo suas condições sociais permitissem, buscavam adquirir escravos para que trabalhassem para eles. A legislação que procurava coibir o uso de mão-de-obra escrava nas áreas de colonização fornece elementos para considerar que os escravizados também se tornaram fator de progresso econômico em meio às colônias.
Na Colônia de São Leopoldo, localizada na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, sul do Brasil, a presença de escravizados não era desconhecida dos primeiros imigrantes europeus, pois ali funcionara, até janeiro de 1824, a Real Feitoria do Linho Cânhamo. Esta feitoria, de propriedade da coroa portuguesa, havia sido instalada originalmente no ano de 1783 em Canguçu Velho (que hoje abrange os municípios de Pelotas, Canguçu e Turuçu) e, posteriormente, em 1788, transferida para o Faxinal do Courita (São Leopoldo, Estância Velha e Portão), no Vale do Rio dos Sinos, onde viria a se estabelecer a Colônia de São Leopoldo.
Sua estrutura compunha-se de casa-grande e senzala, onde viviam os escravizados africanos que trabalhavam no cultivo de cânhamo, planta rica em fibras e utilizada para a fabricação de cordas e velas de navegação.1 Esta planta também era utilizada na produção de roupas, papel e forragem animal. Foi um produto muito importante para recuperar a combalida frota naval portuguesa após a Restauração da Independência em 1640, quando seu cultivo foi incentivado pelo decreto real de D. João IV, em 1656.2 A feitoria foi extinta em 1824, quando suas terras foram destinadas à colonização alemã. A casa utilizada para o empreendimento foi utilizada para acolher os primeiros imigrantes alemães transformando-se, como o decorrer do tempo, na atual Casa do Imigrante. Os escravos restantes foram enviados para o Rio de Janeiro a fim de serem vendidos, ou distribuídos em outros empreendimentos do Governo Imperial.
Alguns escravizados e ex-escravizados africanos permaneceram na região, principalmente na área denominada de Quilombo (locais de refúgio de escravizados africanos e afrodescendentes em todo o continente americano), que hoje pertence aos municípios de São Leopoldo e Novo Hamburgo. Estar num quilombo não era, necessariamente, tranquilo. Era um dos lugares de refúgio mais perigosos, pois havia possibilidade de recaptura pelos capitães-do-mato (Karasch 2000, 408). Esta toponímia no Vale do Rio dos Sinos indica que os escravizados que aí permaneceram eram, provavelmente, escravizados fugidos da feitoria e que, com o decorrer do tempo, permaneceram definitivamente na região, tendo contatos esporádicos com o núcleo de colonização alemã estabelecido na região. É possível que tenha sido um quilombo pequeno, nos mesmos moldes dos quilombos periféricos do Rio de Janeiro, sem uma estrutura política além de um bando de caça ou de nível de aldeia (Karasch 2000, 410). Hoje a região não é mais habitada por afrodescendentes de ex-escravizados. Muitos abandonaram a região dada às dificuldades de sobrevivência no local.
O surgimento de núcleos de ex-escravizados africanos e seus descendentes em áreas que viriam a constituir o futuro município de Novo Hamburgo, outrora distrito de São Leopoldo, que deram origem a bairros como o “África”, “Limpeza” e “Mistura”, atualmente denominados Guarani, Primavera e Rio Branco, também revelam a presença do elemento africano nas áreas urbanas da região nos primórdios da colonização e sua importância para a construção da riqueza, desenvolvimento e pujança das cidades da região. No bairro “África”, em Novo Hamburgo, estabeleceram-se ex-escravizados libertos das charqueadas de Pelotas. Estes tinham conhecimentos de tratamento do couro e colaboraram muito no desenvolvimento da indústria artesanal coureiro-calçadista, que viria a se tornar o principal vetor econômico da região. Muitos ex-escravizados e seus descendentes ali estabelecidos adotaram o sobrenome de seus antigos proprietários alemães e dominavam o idioma alemão (Schütz 2001, 66).
A área do bairro “Limpeza” ocupada por famílias portuguesas desde 1822 foi, posteriormente, o local destinado para que os escravizados depositassem os materiais fecais provenientes do núcleo urbano da cidade de Novo Hamburgo. A mudança do nome do bairro de “África” para “Guarani” no alvorecer do século xx, e do bairro “Limpeza” para “Primavera” na década de 1940, e que ocorreram por causa do estabelecimento de migrantes vindos do interior do estado para trabalhar na cidade, revela a dificuldade dos novos moradores em terem de lidar com os remanescentes de ex-escravizados estabelecidos na região. Muitos dos migrantes recém-chegados na cidade eram descendentes de imigrantes alemães oriundos das velhas colônias da região centro-norte do estado: Lajeado, Estrela, Teutônia, Santa Rosa, Santo Ângelo, Ijuí, etc.
O bairro “Mistura”, assim denominado pelas elites locais até 1940, dada a diversidade de sua população, acolhia famílias “tradicionais” de ex-escravizados e alemães. Entre os brancos que lá viviam havia as famílias Kieling, Lampert, Jäger, Streb, Selbach, Gehlen, Klaser, Lichtler, Kruse e Brenner. A família negra mais tradicional chamava-se Lara, cujos filhos também tinham o sobrenome Schmier (Schütz 2001, 146). Os movimentos de mudança do nome dos bairros feitos pelos novos moradores foram apoiados pelas elites políticas locais, que buscaram higienizar estas regiões com a remoção dos afrodescendentes para a periferia da cidade. Alguns destes “núcleos de famílias negras” resistiram e tornaram-se, na visão dos atuais moradores, verdadeiros “quistos” de pobreza que ainda necessitam ser “saneados”.
A forma como a história destes bairros é atualmente relatada por alguns historiadores locais, com o uso de uma linguagem que invisibiliza a presença dos luso-brasileiros e negros nestas áreas destacando que, “[...] com a chegada dos imigrantes vindos do interior estes locais passaram a ser habitados por uma população pacífica e ordeira e as áreas geográficas urbanizadas tornaram-se, gradualmente, um bom local para residir” (Schütz 2001, 66), demonstra a resistência das elites locais e seus representantes intelectuais em aceitar a presença de outras etnias na história da cidade. Dissemina-se, desta forma, uma narrativa histórica que propõe a manutenção de uma representação equivocada no imaginário social de Novo Hamburgo e de seus habitantes; de que devem sua prosperidade material e cultural ao legado herdado dos imigrantes alemães: o estabelecimento de uma sociedade ordeira, adepta da ética do trabalho e do trabalho livre. Esta representação limitada, e que apaga a presença de outras etnias como a luso-brasileira, indígena e negra na história local, já se evidencia nas primeiras estrofes do hino da cidade, composto por Délcio Tavares:
Foram poucos imigrantes
Vindos lá do fim do mar
Desbravaram estas terras
Trabalhando sem parar
Esta gente aventureira
Fez o vale prosperar
As indústrias e o comércio
Nossas riquezas sem par...3
Hoje os afrodescendentes se concentram no entorno da cidade, nos bairros Canudos, Santo Afonso, Kephas, Marrocos, Vila Kiepling, Roselândia, Boa saúde e Rondônia (Morro da Formiga), sendo a região central da cidade e as áreas mais valorizadas ocupadas pela população branca e descendente de imigrantes alemães. No bairro Primavera, antigo “Limpeza”, os descendentes de ex-escravizados criaram uma sociedade, Sociedade Cruzeiro do Sul, que era “exclusivamente de morenos” exceto para pessoas mais chegadas como grau de amizade (Magalhães 2010, 129).
O contato do imigrante alemão com os escravizados ocorreu, portanto, desde o início da colonização alemã no sul do Brasil e deixou fortes marcas na região do Vale do Rio dos Sinos. Este contato permitiu que os imigrantes alemães sobrevivessem à dura realidade na qual haviam mergulhado, se apropriassem dos conhecimentos necessários para o cultivo de plantas nativas a fim de poderem sobreviver, bem como dos costumes luso-brasileiros e africanos. A escravidão foi uma instituição que, desde o início, causou muito impacto aos imigrantes alemães. Entretanto, a medida que se apossaram das terras também incorporaram as práticas locais da escravidão, obrigando o Governo Imperial a definir normas que os qualificavam de imigrantes estrangeiros e, consequentemente, sem direitos plenos (Tramontini 1997). Houve, no início, limites econômicos para que os imigrantes alemães adquirissem escravos africanos; contudo tão logo puderam fazê-lo, não se esquivaram desta prática.
Fato é que a escravidão se tornara, em meio aos imigrantes alemães, uma prática cotidiana e aceita. Até mesmo aos clérigos protestantes da Colônia de São Leopoldo adotaram esta prática. Um dos primeiros pastores da localidade, Pastor Carl Leopold Voges (1801-1893), tornou-se, inclusive, comerciante de escravos, auferindo lucros com o abastecimento de mão-de-obra para os colonos de Três Forquilhas, litoral norte da Província de São Pedro de Rio Grande, onde se estabeleceu depois de 1826 para liderar a comunidade protestante local. Inventários e escrituras de compra e venda demonstram que a família Voges, assim como outras estabelecidas nas Colônias compravam escravizados e os mantinham em suas propriedades (Witt 2015, 67).
Carl Leopold Voges retornou a São Leopoldo em 1828 para se casar com Elisabetha Diefenthäler Zilda Françosi (Cardona 1977, 24). O casamento consta no registro de matrimônios da Comunidade Luterana de São Leopoldo e foi realizado pelo Pastor Johann Georg Ehlers (1779-1850), com quem havia tido uma série de desentendimentos por causa do ministério pastoral.4 Voges permaneceu ainda algum tempo na colônia, retornou para Três Forquilhas e, com a gravidez da esposa, voltou novamente a São Leopoldo em 1830 e, ali, permaneceu associado com seu sogro, Philipp Leonhard Diefenthäler, que possuía uma casa comercial (Cardona 1977, 24). Nesta casa comercial teve, provavelmente, contato com o comércio de escravizados, pois era através de casas comerciais que os escravizados chegavam às colônias e eram comercializados.
Ao retornar definitivamente para Três Forquilhas, em 1833, Voges continuou a dedicar-se às atividades pastorais e, anos mais tarde, em 1850, também ao comércio. Fundou um armazém de secos e molhados bem sortido, no qual realizava negócios inclusive aos domingos após o culto luterano (Hunsche 1983, 21). Dificuldades na aquisição de mão-de-obra levaram-no a comprar escravizados da colônia de Torres. Suas atividades de vendeiro e proprietário de escravizados mereceram censura por parte dos colonos (Hunsche 1983, 23). Além disso, sua atuação pastoral deixou a desejar, pois consistia, na maior parte das vezes, na leitura de formulários durante os ofícios, assim como de sermões de “antigos racionalistas” (Dreher 1984, 67), o que demonstra certo despreparo para o ministério pastoral e coloca em dúvida sua formação pastoral. Fato é que a Comunidade Luterana de Três Forquilhas, onde deu atendimento espiritual, também tinha um coral de escravizados que cantava em alemão para os membros que frequentavam os cultos dominicais.
Marcante na adoção da escravidão africana pelos imigrantes alemães é o fato de também procurarem inserir os cativos dentro de seu meio social e cultural, não só através da apropriação da Língua Alemã por parte dos escravizados, como também de sua inserção na comunidade religiosa. Muitos escravocratas alemães e protestantes da Colônia de São Leopoldo também batizavam os seus escravizados nas comunidades luteranas ou católicas.5
A retomada do projeto de colonização da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul a partir de 1845, que havia sido abalado pela Revolução Farroupilha, e que se associava com o lento e gradual processo de abolição da escravidão no Brasil através da Lei Bill Aberdeen, iniciou um debate em meio às elites políticas sobre a posse de escravizados por parte dos imigrantes alemães. Segundo Tramontini, a Lei Imperial n.º 514, de 28/10/1848, citada anteriormente, e a Lei de Terras de 1850 foram criadas para impedir que os imigrantes alemães pudessem adquirir terras e escravizados. Seus objetivos eram drenar os cativos para os setores preferenciais da economia, no caso as plantações de café, assim como limitar o seu uso por parte dos colonos alemães como mecanismo de enriquecimento dos “estrangeiros” e, desta forma, impedir que se transformassem em potenciais latifundiários que competissem com os setores centrais da economia imperial, no caso os cafeicultores, que eram os “senhores brasileiros” e que visavam a centralização da vida econômica e políticas das regiões coloniais (Tramontini 2000, 07).
Entretanto, houve tentativas de coibir o uso de escravizados por imigrantes antes da Lei Imperial. A Lei Provincial n.º 143, de 21/07/1848 que regulamentava a ocupação de terras a serem colonizadas por imigrantes proibia o uso de cativos. Não se reputava especificamente à Colônia de São Leopoldo, mas a uma colônia agrícola a ser estabelecida na Serra de Tapes, próximo ao município de Pelotas, a Colônia de São Francisco de Paula. Em seu artigo 5º determinava:
A cada colono, sem família ou com ela (devendo pelo menos duas terças partes deles tê-la) que em virtude dessa lei for estabelecer-se na colônia, o Presidente da Província mandará entregar sortes de terras que não excedam cem mil braças quadradas, passando-lhes títulos de venda, em os quais devem ir exaradas as condições constantes nos parágrafos seguintes: [...]
Parágrafo 4º: os colonos que fizerem parte desta colônia não poderão sob qualquer pretexto, empregar escravos em seu serviço, seja qual for a natureza deste.6
A Lei Imperial n.º 514, de 28/10/1848 procurou coibir o uso de escravizados em terras a serem colonizadas por imigrantes num sentido mais amplo. Esta lei determinava que as glebas destinadas ao seu cultivo não poderiam ser “roteadas” por escravizados. O Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Soares Andréa, durante sua gestão, sugeriu que houvesse uma lei provincial proibindo a posse de escravizados pelos imigrantes, o que foi apoiado pelo Diretor-Geral da Colônia de São Leopoldo, Dr. João Daniel Hillebrand. Esta lei foi criada após a Lei n.º 601 de 18/09/1850 (Lei de Terras), Lei Geral n.º 304 de 30/11/1854. Havia, neste período, cerca de 299 escravizados em São Leopoldo (Tramontini 2000, 7). A Lei Provincial mais incisiva quanto ao uso de escravizados por imigrantes no Rio Grande do Sul foi promulgada pelo Conselheiro Pimenta Bueno, Lei n.º 183 de 18/10/1850. Determina a lei:
Artigo 1º. É proibida a introdução de escravos no território marcado para as colônias existentes e para as que para o futuro se formarem na província.
Artigo 2º. Os escravos que atualmente existem no território das colônias, serão matriculados pelo Diretor ou seus agentes, em livro próprio dentro de dois meses, depois da publicação desta lei, fazendo-se no mesmo livro nota dos que falecerem.
Artigo 3º. Todas as pessoas que forem viajar às colônias ou residirem nelas temporariamente, poderão levar os escravos precisos para seu serviço doméstico, sendo obrigados a enviar ao Diretor ou seus agentes, uma relação dos mesmos escravos, e reconduzi-los para fora das colônias, quando se retirarem.
Artigo 4º. Os escravos que forem introduzidos nas colônias, em contravenção a esta lei, serão expelidos por ordem do Diretor, pagas as despesas pelos donos dos mesmos escravos.
Artigo 5º. As disposições acima referidas compreendem igualmente as colônias formadas por particulares [...].7
A Lei Provincial n.º 183 trouxe inúmeras inovações: proibia a introdução de escravizados nas áreas coloniais existentes e as que viessem a ser criadas; criava um censo de cativos cuja existência tinha de ser lançada em livro de registro próprio; estabelecia um prazo para realizar a contagem de cativos; controlava seus acesso às áreas de colonização, responsabilizando seus proprietários pela permanência nestas áreas; punia os proprietários de cativos que desobedecessem à legislação; além de que tratava com isonomia as colônias públicas e particulares. Além disso, cobrava uma taxa para cada escravizado que fosse introduzido na província.
No entanto, estas medidas que visavam coibir a posse de escravizados por parte dos imigrantes alemães foram questionadas por alguns políticos como o Deputado Provincial Luís da Silva Flores, que questionava a constitucionalidade da questão. Seu argumento: “Pode-se proibir alguém que empregue seu dinheiro como julgar conveniente?” (Piccolo 1989, 105). Ou seja, apelava-se ao campo legal a fim de garantir o direito de posse de escravizados aos imigrantes alemães e, desta forma, legitimar os princípios da sociedade escravocrata que permitia às pessoas dispor de seus “bens e capitais”. As leis Imperial, de Terras, Provincial e Geral tornaram-se letra morta, pois os colonos alemães continuaram a adquirir cativos, o que revelam os dados do Censo de 1848,8 levantados por Marcos Justo Tramontini, referentes a então Vila de São Leopoldo:
Local |
Brasileiros |
Alemães |
Escravizados |
Escravizados de Alemães |
Vila |
217 |
649 |
27 |
45 |
Feitoria |
20 |
370 |
3 |
22 |
Dois Irmãos |
– |
1929 |
– |
16 |
Guary |
– |
776 |
– |
4 |
Picada Blauth |
– |
116 |
– |
– |
Feliz |
– |
227 |
– |
– |
Campo Ocidental |
150 |
– |
49 |
– |
Padre Eterno |
– |
346 |
– |
– |
Mundo Novo |
– |
245 |
– |
– |
Totais |
387 |
4.658 |
(79 + |
87) = 116 |
Total |
5.211 |
A tabela apresenta a distribuição de escravizados na região compreendida pela Vila de São Leopoldo no ano de 1848, logo após a Revolução Farroupilha, num momento desenvolvimento da economia colonial. A região era habitada por distintos grupos, com foco em brasileiros, imigrantes alemães e escravizados. Observa-se que, de forma geral, a maior parte da população é de imigrantes alemães, seguida pelos brasileiros e escravizados. O número de escravizados na região é, relativamente, pequeno, refletindo uma dinâmica social e econômica local onde o trabalho era exercido na lavoura pelas próprias famílias de colonos. Entretanto, os dados mostram que algumas famílias, tanto de brasileiros quanto de imigrantes alemães, quando as condições econômicas e sociais possibilitaram, adotaram o trabalho escravo, sendo a maior parte dos proprietários de escravizados imigrantes alemães. Podemos comparar estes dados aos de 18459 e 1850:
1845 |
N.º de Fogos10 |
Escravizados |
Total |
|
Masculino |
Feminino |
|||
Povoação |
136 |
32 |
09 |
42 |
Feitoria |
35 |
12 |
03 |
15 |
Sedente |
56 |
|||
Guary |
56 |
03 |
01 |
04 |
Campo Oc. |
188 |
02 |
02 |
04 |
Campo Bom |
80 |
|||
Dois Irmãos |
149 |
04 |
07 |
11 |
Travessão |
25 |
|||
Picada Berghan |
91 |
|||
Picada 48 / Café |
91 |
|||
Picada Bernardino |
76 |
|||
Picada 14 |
17 |
06 |
01 |
07 |
Picada Nova |
31 |
01 |
01 |
|
Soma |
1.031 |
70 |
20 |
90 |
Moradores Brasileiros |
84 |
41 |
23 |
64 |
Total |
1.115 |
111 |
43 |
154 |
A tabela acima mostra que, em 1845, a escravidão fazia parte do cotidiano da Colônia de São Leopoldo, com uma presença de escravizados em várias localidades; ela nos oferece informações sobre a distribuição dos escravizados masculinos e femininos na região. A quantidade de escravizados masculinos é superior a de escravizadas femininas, e sugere que a mão-de-obra masculina era mais demandada nas atividades agrícolas da colônia, ou em outros tipos de trabalho executados na sede da povoação, como o comércio ou oficinas artesanais. Já as escravizadas eram mais demandadas nas atividades residenciais. A pequena quantidade de moradores de origem luso-brasileira convivendo com uma grande quantidade de imigrantes alemães na mesma região, acompanhado da dinâmica de trabalho forçado, indica que a prática do uso da mão de obra escravizada na economia colonial também era uma prática compartilhada pelos imigrantes alemães.
Podemos confrontar estes dados com as informações coletadas após a promulgação da Lei Provincial n.º 183 de 13/10/1850, que regulamentava a escravidão na província do Rio Grande do Sul:
Região |
Masculino |
Feminino |
Total |
Distrito no pé da Vila |
2 |
02 |
04 |
Feitoria Velha |
22 |
07 |
29 |
Sedente |
04 |
– |
04 |
Guary |
02 |
01 |
03 |
Picada Dois Irmãos |
11 |
07 |
18 |
Picada do Bom Jardim |
06 |
03 |
09 |
Picada de 48 Colônias |
02 |
01 |
03 |
Picada Hortêncio |
09 |
04 |
13 |
Campo Ocidental |
80 |
44 |
124 |
Mundo Novo |
11 |
– |
11 |
Vila de São Leopoldo |
38 |
32 |
70 |
Total |
187 |
101 |
288 |
Ao confrontarmos os dados das tabelas 2 e 3 percebe-se um significativo aumento de 87,01% no número total de escravizados na região de São Leopoldo, sendo que a maior parte deles se localizava nos trabalhos agrícolas do interior da colônia, no Campo Ocidental. A sede da Vila de São Leopoldo concentrava o segundo maior número de escravizados em atividades predominantemente urbanas. Também é perceptível o significativo incremento no número de escravizadas femininas, cerca de 134,88%, quando comparado com o de escravizados masculinos, que foi de cerca de 68,46%. Essa presença considerável de escravizadas femininas indica que houve um incremento nas demandas específicas do trabalho doméstico, ou outras atividades ligadas ao cuidado da casa e das famílias, além de possíveis implicações para a reprodução da força de trabalho escrava.
Por outro lado, os dados das tabelas 1, 2 e 3, que são contemporâneos e apontam para discrepâncias no número de escravizados da colônia, demonstram a precariedade no registro de escravizados na Vila de São Leopoldo, ou negligência no controle das autoridades públicas da entrada e saída de mão-de-obra cativa nas colônias. Da mesma forma, indicam que a promulgação da Lei Provincial n.º 183 de 13/10/1850, que foi um marco legal importante na história da escravidão no Brasil, pois tratava de questões relacionadas à organização do trabalho escravo, libertação gradual e outras regulamentações, surtiu algum efeito nas colônias e obrigou os colonos a regularizarem a situação legal de seus cativos. Muitos escravizados podem, provavelmente, ter entrado de forma ilegal nas colônias e, o medo de perder um patrimônio tão valioso, fez com que os colonos regularizassem sua situação perante as autoridades públicas.
Podemos afirmar, a partir dos dados levantados por Tramontini, que na Colônia d e São Leopoldo, embora a maioria dos imigrantes tenha sido inicialmente livre e tivesse uma relação mais distante com a escravidão, a proximidade com as grandes propriedades de terras escravistas criou situações de interdependência econômica. Alguns imigrantes alemães acabaram contratando escravizados ou mantendo relações comerciais com grandes fazendeiros escravocratas. Esse quadro evidenciou a dificuldade de um processo de transição para uma sociedade mais igualitária, já que a escravidão ainda influenciava, direta e indiretamente, as dinâmicas de poder e trabalho no Brasil durante o século xix, mesmo em contextos de colonização europeia.
A observação dos dados permite concluir que houve, durante este período, aumento da população escrava na Colônia de São Leopoldo, principalmente naquelas áreas ocupadas exclusivamente por imigrantes alemães, como Dois Irmãos e Feitoria. Segundo Tramontini, estes cativos eram utilizados nas mais variadas atividades artesanais, para muito além do comércio, o que demonstra que seus proprietários imigrantes desenvolveram, em terras brasileiras, boas condições financeiras para adquiri-los (Tramontini 2000, 09).
Outro aspecto que confirma a posse de escravizados por parte dos imigrantes alemães na Colônia de São Leopoldo, tão logo estes estivessem aptos a adquiri-los, são os inventários realizados após sua morte. Como exemplo, destacamos o inventário de um vendeiro, João Pedro Schmitt, que residia em Hamburgo Velho, analisado por Ângela Tereza Sperb. Seu inventário é significativo por se tratar de um indivíduo que ascendeu socialmente na colônia, abriu uma venda comercial e deu grande impulso ao comércio da região através de sua atividade de transportador de mercadorias e comerciante. No ano de 1868 o montante de seus bens atingiu a cifra de 85.005$510 (Sperb 1987, 17). Por se tratar de uma casa de comércio, tinha a sua disposição um plantel de cerca de 10 escravos, de diferentes idades, que realizavam as mais diversas tarefas, dependendo de sua idade e aptidão para o trabalho. Os cativos consistiam em cerca de 13,4% de seu patrimônio e tinha um valor total de 11.400$000. Eram os mesmos:
Nº |
Nome |
Idade |
Valor |
1 |
Manoel da nação Nagô |
55 |
200$000 |
2 |
João, crioulo |
26 |
1.800$000 |
3 |
Manoel, crioulo |
16 |
1.500$000 |
4 |
José, crioulo |
25 |
1.500$000 |
5 |
Guilherme |
14 |
1.400$000 |
6 |
Antônio |
12 |
1.400$000 |
7 |
Sahara |
50 |
200$000 |
8 |
Lúcia, com filho Carlos |
1.800$000 |
|
9 |
Sahara |
09 |
1.200$00 |
10 |
Guilhermina |
04 |
400$00 |
Percebe-se, no inventário de João Pedro Schmitt, que os escravizados mais novos eram mais valorizados, sendo que os mais idosos já tinham o seu valor bastante depreciado, dada as dificuldades de serem vendidos ou realizarem trabalhos mais pesados e que pudessem garantir uma renda mais substantiva para seu proprietário. Exceção é a criança de 04 anos que, pelo fato de ainda ser considerada improdutiva, tinha seu valor também depreciado. Contudo, com o decorrer do tempo, à medida que crescesse e fosse capaz de ajudar na lavoura, nas atividades domésticas ou ser utilizada como “escrava de ganho”, seu valor passaria a ser maior e também seria mais fácil de ser vendida.
O inventário do imigrante João Pedro Schmitt é um dos poucos existentes na Colônia de São Leopoldo entre os anos de 1863 e 1888. Num total de 65 inventários guardados no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul relativos à região de São Leopoldo, a maior parte é de luso-brasileiros, cerca de 53, sendo os de imigrantes alemães cerca de 12. Poucos foram os imigrantes que tiveram seus bens inventariados e, entre eles, deixaram escravos como herança para seus descendentes. Estes inventários registram a posse de poucos escravos.12
Entretanto, isso não significa que possamos concluir que os imigrantes alemães tivessem menos escravizados que os luso-brasileiros. A dificuldade de acesso aos registros cartoriais, a necessidade de alguém que intermediasse o registro em Língua Portuguesa junto aos escrivães, as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes alemães para obter o reconhecimento da cidadania brasileira, problema enfrentado até a Proclamação da República em 1889, foram elementos que dificultaram a procura dos cartórios pelos imigrantes alemães e a regularização de sua situação patrimonial.
Pesquisas mais recentes feitas por Moreira e Mugge (2023) através da análise de inventários post-mortem de São Leopoldo localizados no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS) revelam que os imigrantes tiveram uma relação íntima com a escravidão. Muitos possuíam cativos, os alugaram, açoitaram, venderam, alforriaram e os transmitiram em herança para seus descendentes. Dados levantados em inventários de imigrantes entre 1834 e 1888 revelam a intensificação a atividade escravista em meio aos imigrantes alemães na medida que a colônia foi se desenvolvendo.
Período |
Nº de inventários |
% |
Nº de escravizados |
% |
1834 a 1849 |
26 |
9,56 |
185 |
11,88 |
1850 a 1860 |
82 |
30,15 |
514 |
32,60 |
1861 a 1871 |
97 |
35,66 |
574 |
36,84 |
1872 a 1888 |
67 |
24,63 |
285 |
18,29 |
Total |
272 |
100 |
1.558 |
100 |
Os dados acima apresentados pelos pesquisadores mencionados revelam a constituição de uma sociedade escravista em meio aos imigrantes alemães da Colônia de São Leopoldo. Também permitem refutar uma historiografia apologética que destacou a imigração alemã como propagadora de novos valores morais e econômicos, e que vê o trabalho livre, artesanal ou na pequena propriedade rural e familiar, como causa do desenvolvimento político, econômico, social e cultural do sul do Brasil. Tal visão, ainda disseminada por alguns historiadores memorialistas, provoca um silenciamento a respeito da relação imigrante-negro nas áreas de colonização europeia, bem como desconsidera a participação do elemento afrodescendente na formação histórico-social das regiões de imigração alemã.
A mudança na legislação imperial brasileira relativa à cidadania e a escravidão também atingiu às colônias alemãs no sul do Brasil. O ideário liberal em voga na segunda metade do século xix, que influenciou na discussão da confecção do primeiro Código Civil do Brasil Imperial, e que levou muito tempo para ser finalizado, trouxe para o centro da discussão a condição escrava frente a possibilidade de ver os direitos de cidadania estendidos a todas as pessoas. A demora na confecção do Código Civil no Primeiro Império e sua implementação prática foi, muitas vezes, justificada pela manutenção da escravidão no Brasil após a independência. Contudo, a questão real foi a impossibilidade de conciliar a nova legislação de viés liberal, no qual os direitos de cidadania deveriam ser concedidos a todas as pessoas, com a manutenção do regime escravista que fazia distinção entre as pessoas livres e as mercadorias, aqui entendidos os escravizados. A existência de um Código Civil num país em que a maioria das pessoas não era considerada cidadã constituía-se num paradoxo (Grinberg 2002, 47).
O fato dos escravizados serem considerados propriedade dificultava que os mesmos pudessem estabelecessem relações jurídicas para reivindicar direitos, pois isso somente era possível aos cidadãos livres. Escravizados figuravam como bens pertencentes às pessoas, assim como qualquer outro tipo de propriedade. Eram, juridicamente, ao mesmo tempo, pessoa e mercadoria. Apesar de haver preocupação das autoridades e juristas como Teixeira de Freitas em resolver esta questão, ela se tornava muito complexa, pois a inclusão da escravidão no Código Civil poderia legitimar uma instituição que, há muito tempo, já vinha começando a se tornar obsoleta e fadada ao paulatino desaparecimento. Propostas de confecção de um Código Negro, que legislasse a condição dos escravizados foram, quando propostas, terminantemente rejeitadas pelos políticos (Grinberg 2002, 50).
A legislação em vigor concedia aos escravizados uma situação ambígua na sociedade vigente. Eles podiam ser responsabilizados penalmente por crimes cometidos, mas não poderiam jamais vender, comprar, estabelecer relações jurídicas por conta própria. Tornou-se, para os legisladores, muito difícil confeccionar uma lei que legislasse sobre pessoas e mercadorias ao mesmo tempo. Mesmo quando reconheciam que os escravizados podiam adquirir direitos e obrigações, como o jurista Teixeira de Freitas admitia, a transitoriedade de sua situação jurídica dificultava a tomada de uma posição mais enfática que pudesse garantir a cidadania plena aos mesmos. Não devemos nos esquecer de que muitos escravizados podiam comprar sua alforria e, desta forma, alcançar sua liberdade. No entanto, conquistar a cidadania era uma questão mais complexa (Grinberg 2002, 55).
Esta posição ambígua dos escravizados, de serem considerados pessoas e, ao mesmo tempo, propriedade, é perceptível nos processos crimes encontrados da Comarca de São Leopoldo entre os anos de 1763 e 1888. Em 04/05/1879, Justino Miguel, pardo, escravizado, solteiro, 30/38 anos, natural de Santa Catarina, roceiro e carpinteiro, junto com os escravizados Miguel e Ana, foi acusado de provocar ferimentos e outras ofensas a seu proprietário Senhor José Gonçalves de Mello Neto. Este foi esfaqueado por Justino com duas facadas no momento em que sofria castigo por ter maltratado os bois mansos de propriedade da vítima. O pardo Justino foi condenado a 50 açoites e a carregar uma argola de ferro no pescoço com uma cruz durante um ano.13
No dia 25/06/1884, o preto Daniel, ex-escravizado de Jacob Diefenthäler, junto com o imigrante João Techmann, foram vítimas de roubo e furto praticados pelo réu Balduíno José da Silva. O preto Daniel teve sua casa arrombada no dia 25/06/1884, sendo sua espingarda de um cano, uma calça, um facão e outros objetos roubados por Balduíno, que foi preso em flagrante. O mesmo já havia furtado, em 23/12/1883, uma serra, um machado e outros objetos da casa de João Techmann, onde trabalhara como peão. Além de ser condenado a uma pena de 4 anos e 6 meses de galés, Balduíno teve de pagar uma multa de 12% do valor roubado.14
Até mesmo conflitos entre os escravizados e ex-escravizados, que não envolviam necessariamente a relação senhor-escravizado, eram levados à justiça. Em 21/04/1879, a “crioula” Maria, 26 anos, solteira, que realizava serviços domésticos, propriedade da Sra. Constantina Rosa da Conceição, foi acusada de mandar incendiar a casa de Manoel, preto casado, 26 anos, crioulo da província, ex-escravizado de Bernardino José de Mello no lugar denominado Taimbé. O crime teria sido motivado por Miguel ter deixado Maria, sua amante, para se casar com outra. O processo foi arquivado.15
Estes processos revelam a condição ambígua dos cativos e alforriados. Se, por um lado eram “mercadorias” sujeitas a vontade de seus proprietários, por outro, eram pessoas, seja no papel de réus que cometiam crimes, ou de vítimas que se sentiam lesadas e buscavam reparo junto aos órgãos jurídicos. Os escravizados eram réus em processos quando cometiam delitos, e buscavam a justiça quando se sentiam lesados. O limbo jurídico no qual viviam, entre a condição de “mercadoria” e ser humano possibilitou a abertura de uma “brecha” para que pudessem instrumentalizar a legislação brasileira para defender seus interesses.
A Lei n.º 2.040 de 28/09/1871, também conhecida como “Lei do Ventre Livre”, e que regulamentava a possibilidade dos escravizados de conseguir sua liberdade por ressarcimento dos proprietários de seu valor avaliado, também teve seus reflexos na então Vila de São Leopoldo. Esta lei declarou libertos os escravizados da nação, os dados em usufruto à Coroa, os das heranças vagas e abandonados por seus senhores. Ela também criou uma matrícula especial que omitia a naturalidade dos escravizados, e que era um cadastro da população escrava do Império e título necessários para que pudessem exercer os atos da vida civil (Mamigonian 2006, 152). Por outro lado, a Lei de 1871 “[…] foi uma estratégia legal que atrelava diretamente a libertação dos escravizados à reordenação do trabalho e a transição para um mercado de trabalho livre” (Lima 2005, 302).
Os escravizados, mediante a contratação de seus serviços a terceiros, podiam negociar sua liberdade pelo tempo necessário para quitar seu valor nominal. Esta lei incrementou a competência jurídica dos escravizados e minou a autoridade moral dos senhores. Ela buscava garantir que as soluções que envolviam os escravizados e seus filhos pudessem ser resolvidos no âmbito das relações e arranjos domésticos de trabalho e compromisso recíproco (Lima 2009, 140). A Lei de 1871 também subtraía do proprietário o arbítrio senhorial da prerrogativa de autorizar ou não o arranjo, pois não eram uma forma nova de contratação. Estes arranjos e contratos já vinham acontecendo há muito tempo e em diversas regiões do Brasil (Lima 2009, 141).
A Lei n.º 2.040 de 28/09/1871 também abriu brechas para que os escravizados da Colônia de São Leopoldo pudessem negociar suas condições de trabalho, ou a liberdade com seus antigos senhores imigrantes. Podemos percebê-lo na escritura de contrato de locação de serviços da “preta” Angélica, cozinheira, datado de 21 de outubro de 1876, e que consta no Livro de Registros de Escravos Antigos do Instituto Histórico de São Leopoldo, celebrado entre o imigrante João Adão Dietrich e o luso-brasileiro Manoel Machado de Oliveira. Angélica era “preta”, com o duplo significado da sua origem africana e de sua condição escrava (Lima 2012, 388).
A escritura mostra que a escravizada Angélica tinha um contrato de prestação de serviços com João Adão Dietrich antes de sua transferência para Manoel Machado de Oliveira. Sua relação com o imigrante João Adão Dietrich, o vendedor, era recente, de 1875, e havia sido fixada por escritura pública pelo prazo de sete anos:
[…] E perante as quaes por aquelle vendedor (João Adão Dietrich) me foi dito que por escriptura publica lavrada em vinte e oito de Junho de mil oitocentos e setenta e cinco, era Senhor e legítimo possuidor dos serviços por sete annos da preta Angélica, matriculada, digo, da cor preta, com vinte e dois anos de idade, solteira, natural desta Província, de filiação desconhecida, capaz de qualquer trabalho, e com profissão de cosinheira, a qual esta matriculada na matricula geral do município de São Leopoldo [...].16
O contrato inicial, sugere que escravizada Angélica não foi comprada como propriedade absoluta, mas que, de alguma maneira, havia uma formalização legal de prestação de serviços por um período determinado: sete anos. Esse detalhe é relevante porque, em um sistema de locação de serviços, o “proprietário” (ou locador) não necessariamente comprava a pessoa, mas sim o direito de explorar o seu trabalho por um período específico. O contrato de prestação de serviços da escravizada Angélica com seu proprietário João Adão Dietrich rompeu-se antes de finalizado o prazo inicial contratado:
[…] tendo a referida preta já vencidos um anno e trez mezes, faltando para finalizar o contracto, cinco annos e nove mezes, de cujos cinco annos e nove mezes que faltam dos serviços da dita preta fazia (João Adão Dietrich) transferência por esta Escriptura a Manoel Machado de Oliveira pelo preço de trezentos e setenta e dois mil reis em moeda corrente [...] e desde já cede e transfere na pessoa do locatário todo o direito, ação, posse, domínio e Senhorio que elle locatário tinha nos serviços da referida preta Angélica, para que elle locatário a goze e disfrute os serviços da referida preta, pelo tempo a anno referido de cinco annos e nove mezes, […].17
O documento não traz as motivações que levaram João Adam Dietrich a ceder os serviços da escravizada Angélica para Manoel Machado de Oliveira. Sua permanência no lar do imigrante João Adam Dietrich durou pouco tempo: somente um ano e três meses. Apesar de haver indícios de rompimento no contrato, a escravizada Angélica estava vinculada a um contrato de prestação de serviços que não tinha o mesmo nível de autonomia que caracteriza um trabalhador livre, pois ela era tratada como uma propriedade, cujos direitos de trabalho e posse eram transferidos entre diferentes senhores. Entretanto, por outro lado, o contrato inicial com João Adam Dietrich, que não foi respeitado, aponta que havia uma liberdade de negociação das condições de trabalho por parte dos escravizados. Mostra que a escravizada Angélica tinha um “certo controle” sobre sua condição de trabalho, ou capacidade de negociar as condições às quais estava disposta a se submeter, e que podem ter ensejado seu desejo de sair da casa do imigrante João Adam Dietrich com todos seus filhos e, desta forma, garantir sua liberdade ao fim do novo contrato. As crianças de Angélica não eram escravizadas, nasceram de “ventre livre”, conforme determinava a Lei n.º 2.040 de 28/09/1871.
[…] Acompanharão a mencionada preta duas crianças livres suas filhas, sendo uma de sexo masculino, cor preta de nome Paulino, nascido no dia sete de Março do anno de mil oitocentos e setenta e trez, e matriculado em quatro de Junho do mesmo anno, sob numero cento e cinco na ordem da matricula das crianças livres filhos de mãe escrava, e outra de sexo feminino, cor preta de nome Maria, nascido no dia quatro de Janeiro e matriculada em primeiro de Abril de mil oitocentos e setenta e cinco, sob numero duzentos e trinta e trez na ordem de matricula [...].18
No documento, não há nenhuma indicação de que a escravizada Angélica tenha participado ativamente da negociação do seu trabalho ou tenha dado seu consentimento. O contrato é celebrado exclusivamente entre seus senhores (João Adão Dietrich e Manoel Machado de Oliveira), e a escravizada não é mencionada como uma das partes com capacidade de negociação ou decisão. O fato da “locação” ser associada à quantidade de anos que o “vendedor” ainda possuía sobre a escravizada, reforça o caráter jurídico da escravidão, que era essencialmente uma relação patrimonial. Contudo, restrições à mobilidade, impedimento de casar sem anuência do patrão, maus-tratos contra suas crianças ou contra si mesma, dificuldades de adaptabilidade, de conviver numa família de língua e costumes muito distintos, podem ter motivado a escravizada Angélica a preferir a mudança de casa senhorial, e perceber na legislação brasileira uma oportunidade de fazer valer sua “vontade”.
Em contrapartida, manter um escravizado e sua família insatisfeitos com as condições de trabalho dentro de casa era um risco que, provavelmente, João Adam Dietrich não estava disposto a correr, o que pode ter levado ambos a estabelecerem um acordo mútuo de que a escravizada cumprisse o tempo restante de serviços contratado com outro senhor, no caso o luso-brasileiro Manoel Machado de Oliveira. A transferência da escravizada Angélica, sendo a única escravizada da casa, pode ter sido uma tentativa de evitar tensões que comprometiam o bom funcionamento da casa. Ao realizar essa negociação, João Adam Dietrich preservava a ordem na propriedade e evitava conflitos internos que afetassem a convivência entre os membros da família.
Outro elemento interessante que merece nossa análise a respeito do cotidiano dos cativos da região do Vale dos Sinos, e de sua condição jurídica ambígua, de pessoa ou propriedade, são as relações que estabeleciam com seus proprietários. Estas podiam ser conflituosas, ou demonstrar afetividade, cumplicidade e fidelidade. Tão logo o proprietário viesse a falecer, estes gestos poderiam ser retribuídos em gratidão aos escravizados em seus testamentos. Na comarca de São Leopoldo, entre os anos de 1875 e 1882, localizamos dois testamentos de proprietários luso-brasileiros que beneficiaram seus cativos. Em 11/08/1875, a testamentada Felicidade Maria da Conceição19 beneficiou sua “crioulinha” Francisca Maria da Conceição com a quarta parte de seus bens e, em 24/07/1876, a testamentada Jacinta Maria da Conceição20 deixou para sua cativa Felisberta e as duas filhas Maria Luiza e Francisca, sua casa de moradia e terreno. Felicidade Maria da Conceição e Jacinta Maria da Conceição eram, provavelmente, parentes consanguíneas. Os testamentos foram registrados num intervalo de menos de um ano. O fato de Jacinta ter deixado sua casa de moradia e terreno para os cativos nos leva a crer que a mesma devia ser solteira, não tendo herdeiros diretos a quem pudesse deixar seus bens.
Estes testamentos revelam não só a manifestação da vontade senhorial, como também que os escravizados tinham acesso à propriedade. Este acesso à propriedade lhes possibilitava uma perspectiva de mobilidade social (Lima 2012, 382). A doação dos únicos bens dos senhores aos escravizados pode estar ligada a uma estratégia de vínculo senhorial de expectativa de sobrevivência na velhice (Lima 2012, 389). Sabemos que o conteúdo afetivo da doação de Jacinta é difícil de investigar. Entretanto, podemos inferir que a mesma se preocupava em ser cuidada por cativos de confiança que a tratassem bem em seus últimos anos de vida.
As fontes documentais estudadas revelam que os escravizados do Vale do Rio dos Sinos, da Colônia de São Leopoldo, estavam submetidos a diferentes arranjos familiares e de trabalho, mergulhados em distintas relações jurídicas. Estas fontes documentais nos levam a concluir que as relações senhor-escravo no Brasil do século xix, e em especial na região do Vale do Rio dos Sinos, eram muito heterogêneas. Isso influenciou a condição jurídica dos escravizados e ex-escravizados. Havia distintas experiências de escravidão e liberdade no Brasil Império e, por consequência, na região do Vale do Rio dos Sinos, onde se estabeleceram os primeiros imigrantes alemães no sul do Brasil.
A legislação que surgiu no Brasil a partir da proclamação da independência, e que colocou, paulatinamente, a instituição jurídica da escravidão em xeque, possibilitou aos escravizados obterem sua alforria através da negociação e de rearranjos nas formas de trabalho, que criaram condições que pudessem favorecer a obtenção de sua liberdade. O processo de obtenção da liberdade acontecia concomitantemente, no Brasil, mais do que em outras partes da América, com a manutenção da instituição jurídica da escravidão (Chaloub 2011, 04).
Havia situações intermediárias entre a escravidão e a liberdade que eram legalmente reconhecidas pelo Estado Imperial e a sociedade escravista. Havia uma fronteira incerta entre a escravidão e a liberdade que era condição estrutural da sociedade brasileira do século xix e que era nexo indispensável à reprodução das relações de dependência pessoal da ideologia paternalista. Isso ocorria tanto da parte dos trabalhadores livres, quanto dos escravizados e seus senhores (Chaloub 2011, 05).
Estas características do sistema escravista brasileiro e das relações senhor-escravo também se refletiram nas colônias alemãs do sul do Brasil, em especial na Colônia de São Leopoldo no Brasil Império. Os imigrantes alemães, inseridos no novo contexto nacional, adotaram a prática escravista herdada dos luso-brasileiros tão logo suas condições econômicas o permitiram, utilizando a mão-de-obra escrava para garantir sua sobrevivência, enriquecer e ascender socialmente. Consequentemente, também do Estado Imperial Brasileiro que, paulatinamente, foi criando espaços de negociação da liberdade entre escravizados e senhores. A Colônia de São Leopoldo e seus habitantes não viveram, portanto, às margens da ambiguidade do sistema jurídico brasileiro criado pelas elites que viam, na liberdade do escravizado, uma ameaça à manutenção da ordem social escravista.
Concluímos, portanto, que houve, por parte da historiografia imigrantista brasileira, um silenciamento e esquecimento da presença escrava nas regiões de imigração alemã no sul do Brasil, em especial na Colônia de São Leopoldo, localizada na região do Vale do Rio dos Sinos. Encontramos rastros da presença escrava numa região de imigração alemã que gerava tensões e colocava em risco a ordem vigente na colônia. Percebemos que, na relação senhor-escravo em meio às colônias alemãs, também houve a luta dos escravizados por sua liberdade. Gostaríamos que esta pesquisa fosse um estímulo para pensarmos numa história social dos escravizados e imigrantes alemães, assim como estimular a discussão dos problemas comuns propiciados pelas sociabilidades entre os senhores e escravizados, ou melhor, senhores alemães e escravizados afrodescendentes.
Cardona, Zilda Françosi. 1977. “O náufrago de Mostardas”. Novo Hamburgo: Universidade FEEVALE.
Chaloub, Sidney. 2011. “Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista (Séc. xix)”. Revista de História Social 19, n.o 14 (junho): 33-62.
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Recebido: 28.07.2023
Versão reformulada: 10.01.2025
Aprovado: 28.02.2025
1 A planta Cânhamo ou Cânhamo industrial é da mesma família da variedade Cannabis. Entretanto, não confundi-la com a marijuana, que tem alto teor de THC, substância psicoativa.
2 A tradição na fabricação de cordas e cabos perdura até os dias atuais, pois a cidade de São Leopoldo ainda mantém a maior indústria de produção de cordas do país, a Cordoaria São Leopoldo.
3 Hino do Município de Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, http://nhminhacidademeular.blogspot.com/p/simbolos.html (2 de dezembro de 2024).
4 Comunidade Evangélica de São Leopoldo. Registro de casamentos (1824-1844), p. 19.
5 Comunidade Evangélica de São Leopoldo. Registro de Batismos (1824-1874).
6 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Fundo legislação, códice 570.
7 AHRS-Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Fundo legislação, códice 570.
8 AHRS-Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. C. 332, Colonização. Em 1845 o levantamento da população escrava era:
9 AHRS-Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. C; Dados estatísticos da colônia, 1826-1853, Cx 289.
10 A expressão “número de fogos” nos documentos históricos geralmente se refere à quantidade de residências ou famílias em uma determinada área. O termo “fogo” é uma metonímia que remete ao fogo doméstico, simbolizando a casa ou a unidade familiar. Em contextos históricos, como censos ou registros administrativos, o “número de fogos” era utilizado para contabilizar a população de forma indireta, já que cada “fogo” representava uma família ou uma casa. Esse dado era importante para medir a população, a estrutura social e também a arrecadação de impostos ou a distribuição de recursos, especialmente em períodos onde não havia um censo detalhado de pessoas, mas onde se contavam as moradias.
11 AHRS-Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Diretoria Geral das Colônias de São Leopoldo, nos anos de 1850-1853, Códice: L:296 M.67.
12 APERS-Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Inventários: documentos da escravidão no Rio Grande do Sul. O escravo deixado como herança. Setembro de 1763 a maio de 1888. Vol. IV-Subfundo I-Vara de família.
13 APERS-Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Processos Crimes. Documentos da escravidão no Rio Grande do Sul. O escravo como vítima ou réu. Setembro de 1763 a maio de 1888. Subfundo Tribunal do Júri. Processo n.º 134.
14 APERS-Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Processos Crimes. Documentos da escravidão no Rio Grande do Sul. O escravo como vítima ou réu. Setembro de 1763 a maio de 1888. Subfundo I Vara Cível e Crime. Processo n.º 152.
15 APERS-Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Processos Crimes. Documentos da escravidão no Rio Grande do Sul. O escravo como vítima ou réu. Setembro de 1763 a maio de 1888. Subfundo I Vara Cível e Crime. Processo n.º 3090.
16 MHVSL-Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, São Leopoldo. Livro de registros de Escravos Antigos-12 de setembro de 1873 a 23 de julho de 1879-Santa Ana.
17 MHVSL-Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, São Leopoldo. Livro de registros de Escravos Antigos-12 de setembro de 1873 a 23 de julho de 1879-Santa Ana.
18 MHVSL-Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, São Leopoldo. Livro de registros de Escravos Antigos-12 de setembro de 1873 a 23 de julho de 1879-Santa Ana.
19 APERS-Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Testamentos-Documentos da escravidão no Rio Grande do Sul. O escravo deixado como herança. Setembro de 1763 a maio de 1888. Subfundo II Vara de Família. Processo n.º 709.
20 APERS-Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Testamentos-Documentos da escravidão no Rio Grande do Sul. O escravo deixado como herança. Setembro de 1763 a maio de 1888. Subfundo II Vara de Família. Processo n.º 713.